Foto: Gustavo Louzada/Porã
Em 2015, durante as discussões do Plano Diretor Urbano de Vitória (PDU), enquanto muitos sugeriam o aumento de vagas de garagem em novas edificações com a nobre intenção de poupar as ruas, Detinha manifestava a mesma nobreza, mas em direção contrária. A solução tinha que ser radical: ao invés de aumentar, ela propunha reduzir o número. Radical e lógica. Como as duas últimas décadas nos ensinaram, mais prédios significam mais carros; portanto, a restrição ao transporte individual passa inexoravelmente pela restrição ao número de vagas de garagem.
A cicloativista e educadora ambiental Detinha Son era crítica contumaz da carrocracia e defensora intransigente do direito à cidade. A bicicleta era seu principal argumento. Claro, não via nela a solução decisiva dos achaques da mobilidade, mas, muito menos, apenas a imagem doce da opção de lazer dominical.
Com seu quê de fresco e jovem, o hábito de trocar o carro pela bike devia, e muito, a uma mulher tarimbada. Detinha já trazia significativa bagagem de luta na questão ambiental quando se tornou figura central da popularização da bicicleta como meio de transporte na Grande Vitória, costume antes restrito a trabalhadores e trabalhadoras de baixa renda, mas acolhido pela classe média especialmente nos últimos três anos.
Em Detinha, pedalar era um ato revolucionário, com potência suficiente para auxiliar o reequilíbrio das relações de força entre os agentes urbanos – carros, pedestres, ciclistas – e a mudança do nosso padrão de deslocamento. Via as pontes e viadutos do século XX pelo retrovisor da bicicleta; não aceitava que a cidade fosse projetada apenas e tão-somente para o transporte individual motorizado.
Foi em meio à fumaça lacrimogênea das manifestações de junho de 2013 que criou com amigos um dos mais ativos grupos cicloativistas capixabas, o Ciclistas Urbanos Capixabas (CUC). Em um ano marcado pelo clamor geral por políticas públicas de mobilidade, os ciclistas capixabas se consolidaram como atores políticos e ergueram alto a bandeira por infraestrutura cicloviária, ou seja, cobrando do poder público medidas para a consolidação da bicicleta como opção de transporte.
A mineira de Caratinga participou da gestação de todos os recentes projetos que elevaram o patamar de infraestrutura cicloviária de Vitória: o Bike GV, o Mapa das Ciclorrotas, a ciclovia entre a Ponte da Passagem e a Praça dos Namorados, na Praia do Canto, a ciclovia das Docas, no Centro de Vitória, e, por fim, do Bike Vitória. Participou também das discussões de propostas ainda em trâmite – como as ciclovias das avenidas Leitão da Silva e Rio Branco – e, ainda, das suspensas, como o projeto de ciclovia na Terceira Ponte.
Não demonizava o carro; defendia a harmonia. Cobrava políticas igualitárias a ciclistas, pedestres e motoristas, postura que se refletia no foco de suas recentes preocupações, que eram menos a construção de mais ciclovias do que a elaboração de campanhas de educação no trânsito, justamente para apaziguar o convívio entre uns e outros.
Em Vitória, cobrava sobretudo medidas para diminuição da velocidade dos carros, sugerindo para tal a implantação de medidas de acalmamento de trânsito nos interior dos bairros. “Não é possível que a gente tenha carros passando a 80 Km/h dentro dos bairros e não haja fiscalização”, disse, em um debate público. Festejou a elaboração do Mapa das Ciclorrotas, mas sempre reivindicava a delimitação dos itinerários, com sinalização vertical e horizontal, para garantir a segurança do ciclista em uma região de rede cicloviária falha.
Com esses princípios organizou com os amigos do CUC em agosto de 2013 uma intervenção urbana no Centro de Vitória que chamou a atenção para a necessidade de implantação da Ciclovia das Docas, trecho então apinhado de carros estacionados, mas que, como alertava a cicloativista, recebia cerca de 1,5 mil viagens diárias de ciclistas, trabalhadores em maioria absoluta, vindos da região sul da capital, Cariacica e Vila Velha, que ficavam à mercê de um trânsito frenético. Seis meses depois, a ciclovia seria inaugurada.
A crença na bicicleta como elemento de transformação urbana a levou também a ser instrutora do projeto Escola Bike Anjo no Espírito Santo. Era uma entusiasta dessa iniciativa de abrangência nacional que ensinava gratuitamente crianças e adultos a pedalar. No estado, costuma acontecer aos domingos, geralmente na Praça do Papa, em Vitória, ou na Prainha, em Vila Velha.
Acreditava na construção coletiva de ideias e projetos, razão pela qual era presença certa em audiências e debates sobre mobilidade. Expressava-se com clareza, defendia suas opiniões com consistência e lucidez. Costumava poupar rodeios. Na audiência pública sobre a ciclovia da Rio Branco, pontuou que, na falta de recursos, havia a opção das ciclorrotas: “É plaquinha, tinta e vontade política”, disse.
Teve participação fundamental na luta pela preservação da Praça do Cauê, em Santa Helena, no segundo semestre de 2013, um dos capítulos mais emocionantes da história recente de Vitória de defesa do direito à cidade. Projeto de governo e prefeitura previa abrir o espaço e fazer uma ligação direta entre a Terceira Ponte e a Reta da Penha para melhorar o trânsito local. Junto a moradores e cicloativistas, Detinha manifestou posição apaixonadamente contrária.
Primeiro, pela razão óbvia de que tirar a Praça do Cauê significaria apenas transformar engarrafamentos curvilíneos em retilíneos. Segundo porque trocar um espaço de convívio pelos carros em pleno século XXI seria o cúmulo do embrutecimento. E eis aí duas coisas que Detinha nunca foi: óbvia e embrutecida. O Cauê continua de pé. Detinha foi uma das que rebatizaram o espaço: quando as nuvens se abriram, a Praça do Cauê virou a Praça do Ciclista.
Com iguais argumentos, rejeitou a transformação dos históricos armazéns da Codesa, no Centro, em estação do Sistema BRT (vias exclusivas para ônibus).
Este ano, Detinha se preparava para alçar novos voos. Em abril, anunciou que disputaria uma vaga na Câmara de Vitória pelo PSB. Procurada por vários partidos após ter seu nome citado em sondagens eleitorais, aceitou a empreitada, embora relutando inicialmente. Usaria anos e anos de atividade em movimentos sociais para discutir políticas públicas de forma coletiva.
Detinha cultivou viva a chama do pensamento crítico. Sabia que reivindicar a bicicleta como modo de transporte era reivindicar o direito à cidade. Ou seja, parafraseando o geógrafo David Harvey, ela identificava nesse veículo de engenharia singela uma espécie de “poder configurador” dos processos de urbanização. Sabia que a construção do tipo de cidade que queremos é umbilicalmente ligada ao tipo de pessoas que queremos ser.
Isso movia a cicloativista a tomar assento em mesas e mais mesas de debate para discutir a construção de uma cidade para as pessoas. Foi o que fez quinta-feira (30), durante a 6ª Conferência das Cidades, em Vitória.
Deusdete Alle Son deixa o marido, Luiz Son, e as duas filhas, Nunah e Noran Alle Son.