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Saudável, saboroso e sem veneno

Fotos: Gustavo Louzada/Porã
 

A tarefa de defender um modelo sustentável de produção de alimentos é uma jornada de 12 horas e 200 quilômetros. Começa às 4h30 da manhã, quando Roni Januth e Rafael Antolini, dois jovens camponeses de Domingos Martins, acordam para pegar um caminhão, deixar o frescor do campo e meter-se por ruas e avenidas da Grande Vitória, onde, entre 9h e 15h, irão entregar cerca de 50 cestas de alimentos e produtos agroecológicos, isto é, produzidos sem a utilização de veneno por famílias de Domingos Martins e Santa Maria de Jetibá. Ao final, exibem cansaço e satisfação.

 
“É o lugar mais chato de entrar”, diz Rafael, depois de orientar Roni, o motorista. Ele se refere à Rua Wilsom Freitas, no Centro de Vitória, onde fica a sede do Sindicato dos Bancários (Sindibancários-ES), endereço da primeira entrega. A via inclinada, estreita, sem saída e de mão única exige perícia, paciência e sorte do motorista, que tem que entrar de ré e rezar para não se deparar com um carro em direção contrária.
 
A funcionária do sindicato os recepciona e pergunta se “lá em cima choveu”. “Nada. Só chuviscou”, responde Rafael, em tom resignado, prancheta na mão, conferindo os itens da cesta. Produtor familiar que vive o problema da escassez hídrica que há muito aflige toda a região, foi surpreendido por uma chuva constante e fria na Grande Vitória no último dia 22. Mais tarde comentaria: “Ah, se chover assim lá…”
 
Rafael não é integrante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), mas poderia ser facilmente confundido com um, tamanho o zelo e presteza com que se dedica ao trabalho. Dentro do caminhão, guia Roni pelas ruas da Grande Vitória. Com o veículo estacionado, pega a prancheta e deixa a cabine para chamar o cliente, conferir os produtos, receber o pagamento. Vive no distrito de Perobas, onde se dedica ao cultivo de café e à criação de tilápia, com a esposa, Deiviani de Oliveira, integrante do movimento. 
 
Foi a pedido dela que integrou-se ao projeto. “Aceitei mais para conhecer aqui embaixo”, diz. E conheceu. Demorou, enfrentou percalços típicos de quem se mete em lugares desconhecidos, mas conheceu. Ele e Roni hoje rememoram aos risos as primeiras viagens, evocações leves de situações penosas de quando volteavam por bairros inteiros, os labirintos de asfalto de Soteco, em Vila Velha, ou de Laranjeiras, na Serra, sem dar no destino – mesmo com a moderna mãozinha do GPS. Eram tempos em que chegava em casa por volta da 0h.
 
A Barra do Jucu, em Vila Velha, é a próxima parada. 
 
Não foi apenas por ser consumidora convicta de produtos orgânicos e frequentadora assídua de feiras do gênero que a professora de ioga Roberta Lé filiou-se ao projeto do MPA. Basta olhar a filha de apenas um ano e oito meses passeando com naturalidade entre as cestas pousadas na garagem da casa para encontrar a razão. “Ela come de tudo, conhece e reconhece os alimentos. E ama beterraba”, derrama-se a mãe, que, com o marido, mantém uma dieta ovolactovegetariana em casa. 
 
Roberta entrou no projeto graças ao Zalika, grupo capixaba criado em 2012 para discussão virtual e presencial sobre maternidade ativa e parto humanizado que, por incorporar também o tema da alimentação saudável, se tornou um dos principais incentivadores do projeto do MPA.
 
Uma das fundadoras do Zalika, a assistente social Graziele Rodrigues, explica que de início as cestas ficavam restritas a alunos e professores da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) durante a feira agroecológica. Quando o projeto cresceu e incrementou a capacidade de entrega, foi apresentando por Graziele a outras participantes, geralmente mães em primeira viagem. 
 
Resultado: o Zalika já representou cerca de 140 cestas, cujos produtos integraram a fase de introdução alimentar de muitos bebês. “A criança ficava em contato com o próprio alimento”, diz Graziele. O número de cestas caiu, mas o Zalika ainda é representativo para o projeto. Cinco dos seis pontos de referência na entrega acompanhada pela reportagem são de remanescente daquela fase inicial. 
 
Roberta é uma dessas remanescentes, tanto pela comodidade de continuar recebendo produtos saudáveis na porta de casa quanto pela crença de que está incentivando a produção de pequenos agricultores. “E, com a cesta, você aprende a fazer o alimento que a terra oferece”, complementa. 
 

Frase esclarecedora. A cesta é uma composição generosa de hortaliças, legumes e frutas, complementada com sacos de pó de café, feijão, fubá, porém não estável, justamente por respeitar os princípios da produção agroecológica, regida pelas leis e dinâmicas da natureza. A cesta abriga o que ambiente e o clima permitem produzir no período.

 
“Uma das necessidades do veneno é para produzir algo que não é daquela época”, explica Leomar Honorato Lírio, um dos coordenadores estaduais do MPA. 
 
Um parêntesis. Na tribuna popular de segunda-feira (4), na Assembleia Legislativa, Demétrius de Oliveira Silva, da Associação de Programas em Tecnologia Alternativa, afirmou que 71% dos alimentos que chegam à mesa do capixaba vêm da agricultura familiar. Apesar disso, contrapôs, o Espírito Santo ocupa um triste terceiro lugar no ranking nacional do consumo de agrotóxico. Só perde para o Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul – o que de certa forma torna melancólica a posição capixaba.
 
Frutos naturais da luta histórica do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) no Espírito Santo contra os agrotóxicos, a feira e a entrega de cestas são elementos de um mesmo projeto de promoção da agricultura familiar promovido em parceria com a Incubadora Tecnológica de Empreendimentos de Economia Solidária (ITEES), da Ufes. A feira acontece toda quarta-feira; a entrega de cestas, também às quartas, mas de 15 em 15 dias. 
 
Os projetos começaram a tomar corpo em 2011, com a ideia de oferecer alimentos limpos a preços acessíveis aos trabalhadores da cidade. A parceria firmada com a ITEES impulsionou a iniciativa, tanto no plano teórico quanto no prático. Cinco produtores do MPA que lidam diretamente com a feira e a entrega de cestas prestaram vestibular e hoje são alunos do curso de licenciatura em Educação no Campo da universidade. Quatro são bolsistas do projeto de extensão. 
 
O diálogo com outros parceiros, como sindicatos, vide o dos Bancários, para estabelecer uma relação mais direta e regular, deu mais força às iniciativas. Aqui nasce a entrega de cestas. 
 
As cestas são oferecidas nos tamanhos P, M e G, com uma composição estável de alimentos que pode variar conforme a época; o que muda é a quantidade de itens. As entregas são confirmadas até na sexta-feira anterior. Os produtos são recolhidos nas casas camponesas na segunda e terça-feira anteriores.
 
Por inviabilidade econômica, o projeto não realiza entregas individuais. Estas são recebidas por grupos organizados em bairros, coordenados por voluntários que possam reunir um número mínimo de pedidos na própria residência. Roberta é uma que recebe pedidos para si e para clientes da região. Os pontos hoje estão no Centro, Praia do Canto e Jardim Camburi, em Vitória, Barra do Jucu e Soteco, em Vila Velha, e Laranjeiras, na Serra.
 

Encontrar voluntários para ampliar o projeto é o grande desafio. Leomar reconhece que voluntários não ficam a vida inteira à disposição de um projeto. Uma das formas que o movimento encontrou para contornar o problema é reforçar os vínculos. Pelo menos duas vezes por ano, eles são convidados a visitar as propriedades camponesas para conhecer as famílias e o sistema de produção, processo que o movimento chama de “certificação participativa”.

 
Roni, Rafael e Thalles Knack Benevitz, outro jovem camponês da região, chegam por volta das 8h ao campus de Goiabeiras da Ufes para montar a barraca da feira, realizada no corredor ao lado dos prédios do Centro de Ciências Humanas e Naturais, antes de partir para as entregas. Indo e vindo, alunos, professores e servidores já passeiam os olhos por verduras, tubérculos, legumes e frutas.
 
Responsável pela feira, Thalles é um jovem que encara as quase 10 horas de trabalho com um sorriso inexaurível no rosto. Acorda às 4h da manhã. Monta a feira, embala produto, pesa produto, recebe dinheiro, dá troco; ao mesmo tempo, diz o que tem, o que não tem, por que não tem e se terá na próxima feira. Só para mesmo por volta de 13h, quando retira a marmita de dentro da mochila, senta no banquinho com mesa junto à feira e almoça.
 
A montagem não toma muito tempo. Mel, temperos, queijos, pó de café, fubá, geleias, pães, bolos e biscoitos são espalhados sobre um tampo de madeira sustentado por dois cavaletes. Verduras, tubérculos, legumes e frutas ficam expostos logo ao lado em caixotes de plástico. Mexerica, laranja, limão, banana (prata, da terra, nanica…), batata-doce, cebolinha, salsa, espinafre, taioba, almeirão, alface, rúcula, couve, cenoura, beterraba, entre outros itens livres de pesticidas.
 

Quando um cliente vê as folhas de ora pro nobis sobre o balcão, pergunta para que serve. Thalles oferece didática explicação e conclui “É chamada de proteína dos pobres”, finaliza. Outro se aproxima e pergunta se tem taioba. Thalles lamenta: “Acabou cedo hoje”. A seguir, embala duas embalagens de bolo de banana para um estudante de expressão famélica – deve ter acabado de sair da aula. 

 
Oriundo de uma família de camponeses do MPA de Alto Tijuco Preto (Domingos Martins), o técnico agrícola trabalha na sede do movimento em Ponto Alto, no mesmo município, com planejamento de produção e organização da feira, o que significa acompanhar a produção das famílias, analisar o solo, identificar problemas, apontar soluções, especialmente aquelas em fase de transição do sistema de produção convencional para o agroecológico. 
 
“Por exemplo, se o produtor tem alface e dá problema, identifico o problema e ajudo a solucionar”, explica. Thalles também auxilia o produtor que busca inovação, ou seja, cultivar o que nunca cultivou na propriedade. A própria família está em transição, processo é lento e gradativo. “A mudança brusca não é bem recebida pela terra”, explica. Dedicam-se a essa caminhada desde 2006 e, agora, acredita ele, alcançaram um nível de 70% de produção agroecológica.  
 
Segundo Leomar, as famílias em transição para sistema agroecológico produzem hoje o que não produziam três anos atrás, especialmente para se adaptar à demanda – mas, destaca, sempre seguindo o princípio da agroecologia. 
 
O resultado é uma feira bem provida. O público é formado sobretudo por alunos, professores e servidores da Ufes. “Compro aqui porque acho mais saudável do que comprar no supermercado”, explica uma estudante de Oceanografia. A moradora de república saiu com espinafre, batata-doce, mexerica e cenoura. Há professores que saem toda semana com as mãos cheias de sacola. Entre os alunos, o bolo de banana faz um sucesso clamoroso: vende como água no deserto por combinar sabor e preço acessível.
 

A chuva aperta na Barra do Jucu. O caminhão toma a beira-mar, onde uma finíssima lâmina d’água já cobre o asfalto, chamando a atenção de ambos. Mas a situação se normaliza à medida que se afasta do litoral. Entrega feita, a missão canela-verde é concluída. São 11h e Rafael reclama de fome. Os dois decidem: fazem a entrega na Praia do Canto e voltam para a Ufes em pausa para o almoço.

 
Satisfeitos e revigorados, Roni e Rafael partem para Jardim Camburi. Cesta sobre os ombros, Rafael sobe cinco lances de escada até o apartamento de Jamile Bonfá. Uma estante apinhada de livros, um retrato de Che Guevara na parede e um berço montado para o filho ainda de colo se destacam na sala. A enfermeira recebe a cesta por comodidade e ideologia. “A gente sabe que quem realmente produz alimento é o pequeno agricultor”, diz. 
 
Na última entrega, em Laranjeiras, encontramos Davi, um lépido menino de dois anos que adora inhame. “Se deixar ele come todo dia”, diz, orgulhosa, a mãe, Jhenifer Menezes, responsável por receber as cestas. Ela começou a receber as entregar quando Davi tinha oito meses, fase em que iniciava no menino o processo de introdução alimentar com verduras e filhas picadas. 
 
“Hoje ele come verdura mais por causa da cesta”, explica. Cozido, assado ou sob qualquer outro método de preparo: não importa, Davi quer inhame quase que impreterivelmente. Banana é outra pedida certa. O fruto de todo esse zelo alimentar é um menino saudável. “O Davi nunca ficou doente de precisar correr para o hospital”, pontua Jhenifer
 
Missão cumprida. Ao volante, Roni não dá sinais de fadiga, mesmo após seis horas de viagem sob chuva constante. Aos 28 anos, vive um momento de esperança na sua propriedade em Rio Ponte (Domingos Martins), em que planta milho, feijão, banana, batata, inhame, alho e arroz, e tenta provar para si mesmo que estava certo ao permanecer no campo ao invés de seguir o conselho dos pais e tentar a sorte na cidade.
 
Ele ainda era um menino quando ouviu uma palestra de integrantes do MPA na escola em que estudava. Aquilo jogou raio de esperança na vida do adolescente, que até então só conhecera as agruras da vida no campo. “Não via futuro, nem esperança. Meus pais sempre diziam que a vida no campo era difícil”. 
 
A decisão de integrar o MPA não mudou o sentimento em casa. Pelo contrário: foi recebida com resistência. Achavam que o filho viraria baderneiro, ia fazer bagunça na rua, ser preso. Roni conta isso com desdém, contrariado por ter visto a família reproduzir nele clichês preguiçosos montados pela mídia tradicional. Roni insistiu. Hoje tem o apoio irrestrito dos pais. “Aos 16 anos, conseguiram fazer a minha cabeça. Agora, consegui fazer o inverso”, diz, aos risos.
 
A demanda atual, que já atingiu 120 cestas, estabilizou-se em 50 a 60 cestas. Notícia ruim? Nada. Os projetos estão gerando renda para os pequenos produtores. “As famílias que tem comercializado tem conseguido receber o dobro do que geralmente recebem vendendo para o atravessador”, conta Leomar. Para o cliente, também vale a pena: o preço dos itens são até 15% mais barato que no supermercado, uma vez que fica imune a oscilações delirantes de preço. 
 
“Não é só a venda do produto agroecológico, mas também que ela seja um instrumento para debater um modelo de produção. Por que o alimento está caro, por exemplo?”, questiona Leomar.

Serviço

As cestas podem ser solicitadas no telefone 9.9879-3360. Falar com Deiviani. A cesta P é R$ 48; a cesta M é R$ 60; e a cesta G, R$ 84. Formas de pagamento: depósito bancário ou no ato do recebimento.

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