Ficam plantadas no chão
Em Jardim Camburi, a simpática casa de muro e portões róseos tem a Mangueira e a Tento Carolina como destaques na história de amor construída com o reino vegetal. A mangueira já existia quando o terreno foi comprado e cresceu ao longo desses 18 anos. A Tento Carolina foi plantada, a partir de sementinhas encontradas na Mata da Praia. A memória da infância, encantada com as bolinhas vermelhas, que a criança aprendeu como “falso pau-brasil”, tornou irresistível o impulso de semeá-la na frente da casa nova.
De dentro de uma repartição municipal de meio ambiente, uma servidora pública coleciona inúmeros casos de salvamento de árvores por toda a cidade. Seu amor pelas árvores é fonte de inesgotável argumentação e poder de convencimento, que conseguem mudar um projeto arquitetônico aqui, permitir um plantio ali, impedir um corte acolá …
No mínimo, 12m² por habitante
A recomendação das Organização das Nações Unidas (ONU) é de que as cidades disponham de, no mínimo, 12m² de área verde por habitante. É um dos principais indicadores de qualidade de vida.
Vitória atende à recomendação, com um índice entre 12 e 15 m² per capita, segundo o último Plano Diretor de Urbanização, de 2012. Mas o pedestre, o ciclista e o cadeirante, que transitam pelas ruas da capital capixaba, sentem na pele que esse percentual é mesmo o mínimo, um ponto de partida para tornar a mobilidade de qualquer cidade de fato mais sustentável.
A capital capixaba retrata bem isso. Apesar de atender à recomendação mundial, a distribuição das áreas verdes é muito desigual entre as regiões. A zona norte, a partir da Praia do Canto, que concentra os bairros mais planejados, concentra também as árvores. Ao sul do bairro nobre, a situação vai ficando mais árida. Mas mesmo em meio à maior presença das “irmãs de copa larga”, a situação dos transeuntes não é tão confortável quanto se gostaria.
A explicação é cultural. Ainda impera, na mente de cidadãos e dos gestores públicos brasileiros, uma visão arcaica da importância da arborização urbana. A jornalista Cristina Almeida se viu envolvida num episódio que comprova isso. A mãe, idosa, tropeçou em uma calçada quebrada em Jardim da Penha e quebrou duas costelas. Processaram o edifício em frente e a prefeitura. A solução judicial foi pelo corte da árvore, o que as deixou muito decepcionadas. “Era tudo o que a gente não queria”, lamenta Cristina.
Raquel, uma das moradoras do Edifício Bramante, é testemunha dessa cultura exterminadora de verde. Na vizinhança, os prédios, em sua maioria, estão desprovidos das árvores predecessoras à construção, que, via de regra, são cortadas no início das obras ou logo que os edifícios são inaugurados. Resultado: os moradores convivendo com o alto preço do calor e da aridez da paisagem, que é muito mais elevado que o valor de um conserto de calçada de tempos em tempos. Nos últimos quatro anos, período em que a artista plástica vive no Bramante, foi feito apenas um conserto, com adaptação para a calçada cidadã.
Alice Linhares, a bióloga e servidora pública protetora das árvores, há 20 anos preenche seu cotidiano de trabalho com esses dilemas. Afirma que guarda mais conquistas do que perdas. Certamente, fruto de sua determinação amorosa. E ela nunca se cansa. Xixi, namorados, ladrões, sujeira e trincados nas calçadas … o arsenal de argumentos contra as árvores já é bem conhecido. E a bióloga, pacientemente, compassivamente, se debruça sobre cada caso, investiga as possibilidades, expõe, conversa, negocia … muitas vezes a solução é mudar o projeto arquitetônico de construção ou reforma, como o de um prédio comercial em Jardim Camburi, recentemente.
A predisposição em adaptar a arquitetura ganhou uma força em Vitória com uma determinação municipal em repassar, ao proprietário o custo da retirada de uma árvore que já existia antes do projeto de construção ou reforma. Fica entre R$ 2,5 mil e R$ 4.mil. “A gente senta com o arquiteto, adapta o projeto, salva a árvore”, conta Alice.
Comunicação direta
Muita gente diz que adora o verde, mas parece que só gosta do verde no vizinho, brinca a gestora de áreas verdes. “Até que ponto, onde está a divisória: a calçada é de quem? Do munícipe ou do dono da casa? Na rua são milhares de pessoas”, argumenta. É preciso apelar para a beleza, para a sensibilidade, ensina a bióloga.
Jovana Aparecida Demoner, a Nineaoum*i, sabe bem o que é isso. A miniagrofloresta que tem no seu quintal de um lote em Jardim Camburi é impressionante. As árvores que plantou nas calçadas e no terreno baldio vizinho, com autorização do proprietário. Até plantação de batata e amendoim! Já colheu muito alimento saudável na cidade de pedra e asfalto. Atualmente, cuida das pequenas placas de papel plastificado que colocou em suas filhas-árvores na rua.
O objetivo é tocar o coração das pessoas. “Já vi vizinhos elogiando, já vi pessoas, homens e mulheres passeando com suas crianças, e lendo e conversando. Já aconteceu estudante jornalismo me abordar, muita gente fotografando … mas também já teve depredação lá do outro lado. O meu objetivo não é confronto, é chamar pelo coração”, explica.
A inspiração maior veio dos ensinamentos de Mahatma Gandhi para “sermos, nós, a mudança que queremos ver no planeta”. A Tento Carolina está levantando a calçada novamente e, mais uma vez Nineaoum*i vai consertá-la. Ela tem consciência também de que a calçada é muito pequena. Já era, originalmente, e ficou ainda menor depois da pavimentação da rua.
Enfim, hoje, tanto as árvores precisam de caixas maiores ao redor quanto os pedestres precisam de mais espaço para caminhar. Temendo que a “solução” para o dilema fosse o corte das árvores, a cuidadora de árvores colocou as plaquinhas. “Não quis lutar com nenhum órgão nem com ninguém, só quis demonstrar o que está no meu coração”, relata. A solução, afirma, passa por adaptar todo o resto à existência das árvores. “O deserto é a pior consequência possível”, alerta.
Certamente as árvores sentem o amor de Nineaoum*i e o retribuem, incessantemente. No dia a dia, são várias as manifestações, as “provas” de comunicação com elas. Uma fruta que cai quase no colo no exato momento em que ela a identifica lá no alto inacessível, uma flor que se abre atendendo a um pedido íntimo de encantar a visão, enfim … só quem consegue se abrir para “ouvir” as árvores, conseguem de fato receber suas mensagens e agradecimentos.
Esta repórter mesmo já foi testemunha de alguns momentos mágicos assim. Provas científicas ainda não tenho, mas “só sei que é assim”.