Com esta primeira reportagem, Século Diário abre uma série com os cinco candidatos a prefeito de Vitória. A proposta é traçar um perfil do candidato na rua, em contato direto com eleitor. A série é aberta com o candidato do Solidariedade Amaro Neto; Lelo Coimbra (PMDB) estará na reportagem desta quinta-feira (29); e o prefeito Luciano Rezende (PPS) na de sexta (30). A reportagem ainda não tem a confirmação das datas das matérias de André Moreira (PSOL) e Perly Cipriano (PT), que devem ser publicadas no sábado (1).
“O que é isso?!”. Aquele ajuntamento de gente vestida de laranja, adesivos no peito, um carro de som com um jingle insistente, ao lado da escola àquela hora da tarde, atiçou a curiosidade infantil da menina. “É o Amaro. Ele vai subir o morro”. Os olhinhos já vivos de curiosidade ganharam, então, um brilho ainda mais intenso, onde se lia surpresa, alegria e ansiedade. “O Amaro! Ai, meus Deus, isso não vai dar certo!”.
A pequena estudante de apenas 10 anos acabara de sair da Edna de Mattos Siqueira Gaudio, a escola municipal de ensino fundamental de Jesus de Nazareth, quando foi surpreendida pela novidade. Ficou um minuto suspensa, saboreando-a. Depois foi circular entre as cerca de 40 pessoas que, fazia uma hora, aguardavam o deputado estadual e candidato líder nas pesquisas a prefeito de Vitória Amaro Neto (SD) para iniciar na tarde da última sexta-feira (23) mais uma “Caminhada Coragem e Coração”, como a campanha batizou o corpo-a-corpo com moradores nos bairros.
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É um tanto surpreendente o clima, ainda que difuso, de expectativa que havia no local. Primeiro: era uma tarde de dia útil, as pessoas trabalham ou dedicam-se a afazeres domésticos, cuidando de filhos, limpando a casa. Segundo: a ojeriza pós-Lava Jato à política e aos políticos. Terceiro: uma reforma eleitoral que exauriu receitas de campanha antes habitualmente graúdas e, ironia, revigorou o velho corpo-a-corpo justamente em tempos de Lava Jato.
Amaro Neto apareceu às 15h20. O carro parou em frente à escola, ele desceu e foi para a calçada cumprimentar com beijos e abraços apertados um grupo de cabos eleitorais. Ao redor, algumas pessoas contemplavam pasmadas o candidato; a nossa menina lá de cima correu para dentro da escola, vexadíssima. Um grupo de crianças mais desinibido agitou-se e, em segundos, o cercou para inaugurar uma cena que se repetiria ad infinitum: a foto com celular.
Ali, uma dezena de pessoas – Amaro ao centro, aquele sorriso aberto, marcante, que lhe expõe as gengivas – posou para fotografia inaugural.
Em seguida, se dirigiu aos moradores do Condomínio Mar Azul, iniciativa de habitação social do Projeto Terra Mais Igual entregue pela prefeitura em 2010 para abrigar moradores antes alocados em áreas de risco e de proteção ambiental do morro. Amaro percorre uma a uma as entradas dos apartamentos do residencial e, aqui, já é possível detectar uma característica de seu trato com as pessoas: ele é ágil e afável, presteza e cortesia, rápido sem ser, ou mesmo parecer, indelicado. “Obrigado pelo carinho”, diz.
Cumprimenta um pai de família com um aperto de mão, beija a criança, enfia o rosto na janela gradeada para saudar a dona de casa. Não demorou para alguém repetir à brinca seus bordões dos tempos de Balanço Geral, programa da TV Vitória do qual se licenciou – “Toca a buzina que eu tô passando!”, gritou um. É o bordão mais famoso: buzina na mão, ele anuncia que está assumindo a proa na liderança de audiência.
Na calçada do último apartamento duas senhoras de saias talares e cabelos grisalhos presos descendo pelas costas o aguardavam. Amaro parou na frente delas e amenizou a rotação dos movimentos: deu um longo e cuidadoso abraço em cada uma. Enquanto trocava palavras em voz baixa com uma, a outra deitava-lhe um olhar suave e terno.
Quando Amaro despontou na Helena Müller, rua a poucos metros do Mar Azul que dá acesso ao morro de Jesus de Nazareth, a claque já havia sido encorpada por moradores e, especialmente, crianças – uma dezena que o acompanhou por praticamente todo o percurso. A claque que subia a rua teve que esperar porque o candidato ainda estava no interior de uma obra em construção cumprimentando um a um os operários e, de novo, tirando foto.
“Você é o xodó do Nicolas”, diz o pastor de uma igreja mais à frente, enquanto abre o celular para mostrar a foto do Nicolas. Amaro aguarda com paciência. Duas casas adiante, uma mulher em um bar quis uma foto, mas o celular falhou. Com igual paciência, Amaro esperou ela entrar e pegar outro aparelho. Adiante, a mulher que acompanha a amiga com a filha no colo solta um grito ao divisar Amaro entre o cortejo e é correspondida com um beijo e um “Obrigado pelo carinho”.
A caminhada chega à Unidade de Saúde do bairro e Amaro dirige-se ao local, onde um grupo de mulheres observa o cortejo passar. Ele pousa o pé direito sobre o ressalto da calçada e inclina-se como um trovador medieval para beijar a mão de cada uma. Elas sorriem. Alguns passos depois, alguém o chamou de volta. “Ela tem 88 anos e é doida para ver o Amaro”. Amaro deu um pique numa íngreme subida lateral paralela à rua para oferecer um afetuoso abraço à senhora.
Afora cabos eleitorais vestidos de laranja distribuindo santinhos e adesivos, poucas bandeiras e um carro de som reproduzindo o jingle compõem a comitiva de campanha. A caminhada também é despoluída de candidatos a vereador – um ou dois. A estrela do evento é a buzina do famigerado bordão – apenas uma, acionada por um garoto da claque. Emite um som alto e estridente como a do programa para anunciar que Amaro “está passando”.
Os moradores aparecem nas janelas e sacadas: sorriem e acenam para o candidato, algumas batendo no lado esquerdo do peito com o punho direito fechado, reproduzindo o gesto-marca da campanha. Amaro acena de volta: “Oi, meu amor!”, “Oi, paixão!”. A energia infantil das crianças ao redor ajuda a incendiar o evento: elas correm e gritam, cobertas de adesivos.
Ele entra em um beco e quando volta é apresentado a um senhor de basto bigode. Cumprimenta, porém, mesmo avisado sobre quem é o homem, a ficha não parece cair: trata-se de Bigode, dono do bar e restaurante fixado no bairro que leva seu codinome e um dos mais tradicionais e requisitados de Vitória. Minutos depois, fica face a face com um vendedor ambulante de pão de queijo: não é possível entender o teor, mas é uma conversa franca, estão colados de frente um para o outro, o trabalhador parece sondar o compromisso do candidato. “Faz por nós” e “O meu e o da minha família” é o que deu para ouvir do homem.
Entre a população de baixa renda, Amaro parece ser um político sem as nódoas da política. Ali parece funcionar seu discurso de que não é ligado a “grupos políticos ou empresarias” – embora, como se sabe, haja mais digitais do governador Paulo Hartung (PMDB) em sua campanha que pó preto no ar de Vitória. Isso ainda que ele se esforçasse para transmitir que, antes de tudo, quem estava ali era o político e não o apresentador; este assomou raras vezes, em brincadeiras ou repetição dos bordões, mas ficou apagado.
O que talvez o diferencie do político médio é o nível de cumplicidade que estabelece com outro ao primeiro contato. O mero fato de ser um reconhecido apresentador de programa popular não explica a exultação com que é acolhido; tampouco o domínio de gírias ou os funks que canta.
No trato pessoal, Amaro demonstra uma sensibilidade impressionante, segundo o prisma do político médio, para decodificar a sensibilidade desses moradores. O sorriso é largo, o aperto de mão é forte, os abraços são apertados, há sempre olho no olho, e, o mais importante, Amaro costuma trocar palavras em voz baixa com o outro, um gesto que individualiza, que demarca a existência de um morador que, provavelmente, vive um cotidiano de invisibilidade. Gesto recorrente é aninhar a cabeça do eleitor entre suas mãos, posicionando seus olhos à altura do outro.
Há uma diferença no trato a homens e mulheres. Ele parece ser mais atencioso com elas, talvez porque as pesquisas indiquem uma predileção de certa fatia do eleitorado feminino pelo candidato. Para os homens, costuma mandar um: “Fala meu garoto!”, seguido de um aperto de mão ou um abraço. Às vezes solta um “Chefe é chefe, né, pai” para um trabalhador em melhor posição na comunidade – como o fez para o dono de uma oficina mecânica.
Amaro atende todas as mulheres. Jovens, maduras, idosas. Beija o rosto, ou as mãos, e abraça, sempre respeitoso, finalizando com um “Obrigado, meu amor” dito em modulação suave. Por vezes, deixou o cortejo para subir sozinho em um pique longas escadas e becos estreitos apenas para cumprimentar eleitoras. “Aguenta que ele vai aí dar um abraço na senhora”, disse um morador para a mulher que aguardava no portão. Às vezes, o próprio Amaro abria o portão da casa para entrar. Algumas exultavam com um singelo aceno.
A caminhada seguiu. Após atravessar um longo trecho de becos e escadas estreitas onde o cortejo se transformou numa legítima fila indiana, a caminhada desaguou novamente em uma rua. Amaro viu um homem magro que recolhia vergalhões espalhados na via e os depositava dentro de uma casa por um buraco. Parou para cumprimentá-lo e experimentou pela única vez em toda a caminhada o gosto do constrangimento.
“E, aí, meu bom, beleza?”, disse Amaro, erguendo a palma da mão para o cumprimento. Com uma mão ocupada pelo vergalhão, o homem mostrou a palma da mão suja. Amaro contemporizou, passando a mão na nuca do trabalhador: “Que isso, você é trabalhador, rapaz. Deus te abençoe, tá, meu irmão”, disse, e virou-se para seguir caminho.
Deveria ter sido um elogio, mas Amaro reavivou uma ferida dentro do homem. “Mas, antes, para você, eu era vagabundo, né?”. Amaro acusou o golpe; o sorriso de sempre amarelou. “Por que, ficou agarrado?”, perguntava, surpreso. Um grupo formou-se à volta para assistir o diálogo. “Você falou que eu era vagabundo na televisão. Fui preso, filmaram minha cara e falaram que eu era vagabundo. Sou trabalhador, Amaro”.
Amaro voltou a erguer a palma da mão – “Que isso, toca aqui” – o homem correspondeu, mas finalizando: “Agora você sobe o morro aqui e fala: ‘Ah, eu sou legal’”. Amaro riu e finalmente voltou as costas para seguir caminho.
Dali a caminhada seguiu até um ponto mais alto do morro, quase sob as torres de transmissão de energia. Desceu, então, até a Castanheira, seguiu pelo píer e terminou, duas horas depois de iniciada, no mesmo Mar Azul. Amaro não sinalizava cansaço.