O SURGIMENTO DA PEÇA
Pequenos Burgueses foi concebida em 1900, e Máximo Gorki levou um tempo neste trabalho, até que se atingisse uma forma que desse à peça sua versão definitiva. O título inicial era até outro, Cenas em Casa dos Bessemenov, que consistia num esboço dramático feito em quatro atos. E é bom lembrar, que no seu conteúdo, a peça não segue uma linha reta ou única na sua ação, pois foi feita como um tipo de mosaico em que as situações são multilaterais e que têm como linha comum, para se dar o caráter da peça e o sentido de sua unidade, apesar do complexo de ações, personagens com um tipo de linha constante, que é a construção realizada com êxito de caracteres (sem o sentido aqui do termo para a comédia) de figuras sociais representativas da vida russa da época, e que era, portanto, uma peça com o espírito de seu tempo e repleta de sentido político e social, com conteúdo diretamente relacionado à vivência e dilemas do contexto russo do início do século XX.
INTRODUÇÃO AO SENTIDO DA PEÇA
Por sua vez, entrando na esfera específica da peça, temos fatos reveladores da visão do próprio autor, o que podemos ver numa carta de Máximo Gorki para Stanislavski, na qual afirma que as personagens principais de Pequenos Burgueses são Nil e Pólia. Sendo, entretanto, o caráter geral da peça o retrato da situação da lenta e progressiva deterioração da pequena burguesia, a qual conduz até no título.
A peça, portanto, se faz como as reflexões de Gorki sobre o mundo pequeno-burguês. O que inclui um conteúdo universalizante e geral que se refere desde a própria vida ou vivência desta classe, indo para as expectativas materiais classistas, a construção psicológica dos personagens que refletem, por sua vez, tanto o caráter de conduta como de cosmovisão dominante, e os valores que são expostos em suas contradições e tipos diversos de hipocrisia e faces sub-reptícias da ação e das situações e contextos de significações. O que, ao fim, denotam com acuidade fundamentada e artisticamente bem realizada a chamada “multidão cinza e entediada”, embora Gorki alcance nesta peça uma expressão riquíssima e bem mais discernida na profundidade e vitalidade que ele confere ao proletariado em suas observações.
Mas tal discernimento e profundidade, que tem mais este sentido positivo de vitalidade, revela, contudo, um paradoxo. Pois o proletariado, não só nesta peça, como em grande parte da obra de Gorki, tem um certo sentido ideal, uma forma chapada e acrítica, que revela caracteres que, embora mais bem construídos, são por isso, contraditoriamente, linhas regulares numa montagem didática, na constância de caráter e vitalidade que são a força do proletariado em Gorki, e que tem como efeito colateral o fato de revelar, ao fim, seres sem contradições, numa retidão que é nada mais do que o artifício ideológico de Gorki para mostrá-los em suas virtudes irrepreensíveis, e que são nada mais que o retrato de uma marcha pretensamente triunfante na direção da vitória final, ápice universal em que não resta nada do que poderia ser um caráter particular e real.
OS PERSONAGENS DA PEÇA
Os personagens de Pequenos Burgueses, no contexto geral da peça, vivem num meio de mesquinhez, numa confrontação com o sentimento de impotência para superar as barreiras desse meio, o que se dá, então, em níveis diversos, mas que são o dilema geral das situações retratadas e dos personagens. O velho Bessemenov, ponto de confluência da peça, aparece como alguém que está perdendo a autoridade para se impor diante de sua própria família, e a dedicação acéfala da velha Akoulina, por sua vez, se revela como um esforço patético de manter uma ordem que se torna cada vez mais imaginária e fora da realidade, numa tentativa desesperada de impedir os choques inevitáveis entre os vários membros da família. Tatiana e Pietr, por sua vez, são o elemento real de tensão diante deste mundo ideal de Akoulina, que têm cada um os seus motivos para se debater contra esse contexto asfixiante e artificial do círculo familiar.
Na carta supracitada de Gorki para Stanislavski, Gorki pontua tal problemática dentro do seio familiar dos Bessemenov: “Akoulina está toda no amor aos filhos e ao marido, no desejo de ver os que a rodeiam amarem-se uns aos outros …”. Por conseguinte, Akoulina aqui é o aspecto extremo do artifício que visa por todos os meios cumprir com a sua imaginação e dissociação acrítica e irreal, com o fito único e forçado de evitar as discussões familiares. Ela, então, neste esforço patético e demasiado, adota a política dos “panos quentes” o tempo todo, e com isso decide se colocar entre os demais para receber todos os golpes.
Mas, Akoulina, no seu amor à família, é profundamente egoísta. Sua imaginação de ser generosa, ao absorver todos os impactos de seu meio, não é nada mais que um apego egoísta de manter uma ordem que já não obedece a sua vontade. E nesta falsa generosidade, Akoulina faz um movimento de marginalizar os “de fora” e não hesita em se portar de maneira vil e injusta na defesa dos seus familiares, o que de defesa não tem nada, pois ganha o sentido de uma cilada em que ela enreda os mesmos que visa defender. Contudo, Akoulina, apesar de nunca perceber, pois vive na sua imaginação, não consegue realizar o seu empreendimento, e apesar de sua vontade de impedir rupturas, não consegue, contudo, qualquer união no seio da família, e tanto soçobra como comete um erro crasso de avaliação, por ser irreal. Pois, na peça toda, os personagens encontram-se sozinhos, este sim o elemento real das situações da peça, de pessoas que se veem isoladas por um muro forçado de falsos deveres e de obrigações acéfalas e automáticas.
OS CONFLITOS DOS PERSONAGENS DA PEÇA
O velho Bessemenov, por sua vez, “está numa situação absurda, desoladora. Viveu o diabo sabe quanto, trabalhou sem descanso, trapaceou para reforçar o resultado do trabalho e, de repente, vê que tudo foi em vão!”. Ele aparece neste embate clássico de gerações que se sucedem, no qual há uma incompreensão dele do tempo em que vive, de sua época, e que é, por fim, a ignorância absoluta sobre as novas gerações, com seus hábitos e comportamentos próprios.
Bessemenov, neste contexto, reage à nova realidade com mistificações, colocando tudo em termos extremados e passionais de desacato, imoralidade, e ao fim como sinais apocalípticos. Sua distância da realidade, então, é um pouco diversa da de Akoulina, pois enquanto esta imagina uma ordem, Bessemenov só enxerga desordem, num ímpeto intransigente, imutável, inflexível, conservador, e que é a imagem do patriarca frustrado, que imaginou e viu outra realidade, ao passo que Akoulina imaginou e se perdeu em sua imaginação. O chefe de família falido aparece na peça como aquele que não consegue, apesar de todo “sacrifício” pelo bem-estar da família, ver concretizadas algumas de suas expectativas em relação aos filhos, pois Pietr está suspenso da Universidade, por suas atividades políticas, e se apaixonou por Elena, a quem o velho atribui uma conduta imoral; e Tatiana, com 28 anos, é uma solteirona que ele desejaria ver casada, pelo menos para evitar as insinuações dos amigos.
Bessemenov, como um típico burguês, pensa na própria reputação, e se incomoda com a opinião alheia sobre seu fracasso como pai. Pois, no seu contexto particular, não consegue obter de Pietr senão promessas frívolas e vagas de que um dia fará qualquer coisa: e, por fim, a situação piora para Bessemenov, pois Pietr o provoca quando decide viver ao lado de Elena, o que o deixa aturdido. De Tatiana, por sua vez, ele recebe a presença constante, mas ela está numa situação delicada entre a tensão de permanecer próxima, por devoção familiar, embora isto seja o disfarce de uma sombra em que ela se vê amargando uma vida medíocre.
Bessemenov e Akoulina se veem condenados a um tipo de solidão existencial, esta que não é a solidão física, mas a de ideias, de aspirações, pois não desejam nada mais que manter valores anacrônicos, e decidem imprecar contra o mundo novo toda a sua má sorte de ver a dissolução familiar. Eles, pois, entram numa fase tenaz de negação psíquica, na qual não se veem como são, entidades opacas, e perdendo vitalidade, diante do caos que Bessemenov percebe, e se enfraquece, e que Akoulina finge não ver, sendo então o elo mais fraco de todos, no sentido psicológico, justamente por sua cegueira voluntária. Portam-se, o casal de velhos, numa clausura em que estão apenas as suas ideias, seres imersos que são na morbidez e na incompreensão, em que o sentido da vida é uma aparência, um sentido que por ser artificial, é como a solidez que se desmancha no ar, ideia esfumaçada, evanescente, e que está implodindo, e a solidez que é ar, justamente como o esforço final dos dois de responsabilizar e acusar todos quantos se oponham às suas ideias.
MAIS PERSONAGENS
E Nil, o filho adotivo da família, aparece aqui como o caráter dileto de Gorki na peça, junto com Pólia, e se torna o bode expiatório, pois é da classe operária, e quando se fala de Gorki, aparece na sua forma ideal, repleta de virtudes, no movimento contrário do caráter dominante da família Bessemenov. E Nil, aqui também, aparece como uma das esperanças evanescentes de Tatiana, que sonha em se casar com ele. “Nil” escreveu Gorki, “é um homem tranquilamente convicto de sua força e do seu direito de reconstruir a existência de acordo com sua própria compreensão das coisas (…) Irritando-se, fala firme e distintamente, como quem dá machadadas. A indignação, a ira, tudo nele é firme, sadio …”.
Por sua vez, Nil não ama Tatiana, e sim ama Pólia, que é uma semelhante, e com quem ele crê ser feliz. Nil lhe diz: “Nós vamos viver muito bem; você vai ver. Você é uma boa companheira. Você não tem medo da pobreza”. Gorki, então, faz também uma descrição de Pólia, que aparece para o autor como alguém “simples, modesta e capaz de qualquer heroísmo, sem nenhuma ostentação. Se ama é para a vida toda; se acredita em algo, também.” Teteriev, de forma colateral, é a figura mais solta da peça, e é nada mais do que um filósofo vagabundo, imerso em seu niilismo, e que está sempre incapacitado de lutar ou de fazer algo por si mesmo, e se torna, portanto, não um intelectual como o epíteto de filósofo pode fazer crer, mas sim um espectador passivo da vida que passa. Teteriev diz: “Eu sou um homem um pouco estranho”, e diz a Tatiana; “não participo muito dos acontecimentos terrenos … Vivo por pura curiosidade …”.
Teteriev nutre admiração por Nil, este que é o seu oposto, cheio de vitalidade, uma força da natureza, com alegria de viver, amando Pólia, a qual Teteriev também ama, e o filósofo também aprecia Elena, esta em toda a sua exuberância e generosidade; e que é, contudo, condescendente com Chichkin, mas ao mesmo tempo, apesar de ser um homem errático, fala a Tatiana que ela se encontra enterrada viva, e por fim acha os velhos Bessemenov e Akoulina detestáveis, e não tem nenhuma esperança em relação ao mais errático que ele até, Pietr.
No fim da peça, temos uma das partes mais emblemáticas do texto da peça, que é quando o velho Bessemenov, que se vê desesperado com o filho que está indo embora com Elena, ouve as seguintes palavras de Teteriev, este na sua tentativa de persuadir o velho de que Pietr voltará: “E será, com o tempo, tão avarento quanto você, tão seguro de si mesmo como você … Tão mau como você …”. Por sua vez, “Teteriev”, diz Gorki, “quis ser herói, mas a vida o alquebrou, amassou-o e ele a odeia por isso. Considerando-se muito dotado, trata as pessoas de cima para baixo (…) Odeia profundamente os pequenos burgueses, considerando-os, com toda razão, como inimigos dos homens que pensam e sentem livremente, como destruidores da vida”.
E Elena, por fim, atua como uma espécie de sal da existência na casa dos Bessemenov. Pois é uma viúva que desfruta da própria liberdade, e que, segundo Gorki: “ela sorri com clara alegria, tem muitos gestos vivos, gosta de que lhe façam a corte e de que a vida, em volta dela, ferva de alegria e de risos. Ama Pietr por compaixão, ou melhor, nem o ama, porém quer contaminá-lo com a felicidade da existência, quer que ele ria”. Elena, Pertchikin, Chichkin, Tzvetaieva, Nil e Pólia fazem parte daquela multidão dos que sentem e pensam livremente, dos que se opõem aos pequenos burgueses, àquilo que é velho e falido. Para Máximo Gorki, eles serão os herdeiros da Terra e os motores da vitória final da nova sociedade. Há aqui um embate de classes que, no sentido de valores, é a tensão mais que conflitiva entre liberdade e conservadorismo.
CONTEXTO CRÍTICO DA PEÇA
Gorki escreveu sua primeira peça, “Pequenos Burgueses”, devido a pedidos insistentes dos “pais fundadores” do Teatro de Arte de Moscou – K. Stanislavski e V. Nemiróvitch-Dantchenko. Portanto, segundo as palavras de Stanislavski, Gorki se tornou “o principal iniciador e criador da linha sócio-política no teatro”, e isto se estendendo, por conseguinte, ao que viria a ser o drama moderno. Gorki, como dito, inicia a confecção de sua peça em 1900, e dizia que, neste início, para ele, na peça “havia muito barulho e nervos”, mas “faltava fogo”. E como também dito, a peça teve inicialmente outro título que era “Cenas na casa dos Bessemenov. Esboço dramático em 4 atos”.
Gorki, quando fez este primeiro esboço, enviou um de seus primeiros exemplares para que Anton Tchekhov desse uma opinião, no que o autor famoso de peças como “A Gaivota” e “Três Irmãs” respondeu de pronto, e sem delongas, que, embora a peça fosse “muito boa, tinha sido escrita à maneira de Gorki: muito original e muito interessante, mas havia nela um defeito, um defeito visivelmente incorrigível, como são os cabelos ruivos na cabeça de um ruivo: o conservadorismo da sua forma. O senhor faz os novos e interessantes personagens cantarem novas canções, mas seguindo partituras que apresentam um aspecto gasto, batido: há na sua peça quatro atos, e os personagens se estendem em lições de moral, sente-se um temor diante das prolixidades, etc, etc…”.
Contudo, após uns meses, em uma carta dirigida ao ator Iújin, Tchekhov observa que havia um mérito na peça, que era o fato de Gorki “ter sido o primeiro, na Rússia, e até no mundo inteiro, a começar a falar com desdém e repulsa da mentalidade pequeno-burguesa, justamente no exato momento em que a sociedade estava preparada para este protesto. Do ponto de vista cristão, ou econômico, ou de qualquer outro ponto de vista que fosse, a mentalidade pequeno-burguesa não passa de um grande mal; ela é igual a uma barragem no rio que sempre serviu apenas à estagnação…”.
MONTAGEM DA PEÇA
O texto de “Pequenos Burgueses”, no entanto, sofreu diversas censuras, e teve, portanto, seu conteúdo original retalhado muitas vezes, o que foi uma luta de Gorki contra as “tesouradas” czaristas, no que, ao fim, foi bem sucedido. E, voltando à visão de Tchekhov, a forma estrutural de “Pequenos Burgueses”, como ele observara no início, era bastante tradicional, vinculada ao tipo bem disseminado de “drama familiar”. E, em seu artigo intitulado “Notas sobre a mentalidade pequeno-burguesa”, Gorki escreve que esta mentalidade consiste de “uma estrutura da alma do atual representante das classes dominantes. As principais particularidades da mentalidade pequeno-burguesa são: um senso de propriedade, distorcido, um desejo tenso de que sempre haja tranquilidade dentro e fora de si, um medo intenso diante de qualquer coisa que possa, de uma forma ou de outra, perturbar esta tranquilidade; e uma aspiração, persistente, de poder encontrar uma explicação para tudo aquilo que venha a fazer oscilar este equilíbrio que se estabeleceu na alma, ou que possa destruir os pontos de vista, já estabelecidos, sobre a vida e as pessoas”.
No entanto, apesar dos rumores de que a peça de Gorki poderia se tornar uma espécie de arena política e de propaganda ideológica foi amenizada pelo diretor Stanislavski, o qual não tinha a intenção de criar um espetáculo “engajado” e dava-se conta, perfeitamente, de que “a tendência e a arte são incompatíveis, um exclui o outro. Logo que alguém se aproxima da arte com intenções tendenciosas, com propósitos utilitários ou outros que não sejam artísticos, ela fenece, como a flor nas mãos de Siebel. Em arte uma ideia estranha, uma tendência, deve transformar-se em sua própria ideia, realizar-se em sentimento, tornar-se uma aspiração sincera, uma segunda natureza do próprio artista. Neste caso, ela integrará a vida do espírito humano do ator, do papel, da peça como um todo e deixará de ser apenas uma tendência, tornando-se o próprio credo. E, por sua vez, o espectador terá que tirar suas conclusões e criar sua própria tendência a partir do que percebeu no teatro.”
MAIS IMPRESSÕES DA PEÇA
E também, para finalizar, podemos citar as impressões sobre a peça em Leonid Andreiev, que era mais um dramaturgo famoso e contemporâneo de Gorki, que veio a publicar uma resenha sobre o espetáculo, na qual, escreve: “As peculiaridades da primeira peça de M. Gorki é que nela não existe aquilo que se chama de ação dramática e não há, também, personagens secundários. Retrata-se um pedaço do quotidiano, tal como ele é, com sua ação lenta, marcando passo… enquanto isso, as personagens envelhecem, geram filhos, morrem, aparentemente sem realizarem qualquer “ação”… Bebem, comem, conversam, brigam, se separam, participam de “acontecimentos”, no meio de uma enorme massa inquieta, movendo-se para adiante e sem destino certo. E só quando se percebe quão longe todos eles avançaram, e que o fim não se assemelha ao início, então é aí que se sente e se compreende que, atrás desta ausência aparente de ação, ocultam-se poderosas forças de uma vida que destrói, pune, julga e cria. Esta historicidade artística da vida, que fora primeiramente introduzida no drama russo por Tchekhov, é levada ao total e brilhante desenvolvimento em “Pequenos Burgueses”, o qual o autor chamou, a meu ver, de modo totalmente infundado, de esboço dramático…”.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.