A mulher de meia idade, cabelos ruivos e um elegante lenço ao pescoço passeia os olhos pela banca de frutas. “Essa é orgânica mesmo?”, pergunta, a maçã na mão, Marcus. Trabalhar com produtos orgânicos ainda hoje é um rito cotidiano e paciente de romper um véu de desconfiança. Pioneiro no Espírito Santo no comércio de produtos orgânicos, ele cada dúvida com um orgulho alegre e diligente, rompendo esse véu que, a bem da verdade, já foi longo e espesso.
Não é mais por obra e arte do próprio, que há seis anos comanda a Só Orgânicos, loja especializada no gênero localizada no Hortomercado, na Enseada do Suá, Vitória. As frutas são o melhor exemplo de como foi lento esse trabalho de conquista da confiança do consumidor. “Quando comecei a trazer fruta, trazia embalada, para não dar margem do consumidor ser enganado”, explica.
O selo de certificação orgânica visível na embalagem garantia credibilidade ao produto e a confiança de um consumidor até então habituado a ver frutas como a maçã apenas nas prateleiras dos supermercados convencionais. Maçã orgânica parecia lenda. Marcus, hoje, dispensa a embalagem e, entre grãos, sucos, leites, chás, temperos e cosméticos, as frutas viraram as meninas dos olhos da Só Orgânicos. A lenda virou realidade.
A Só Orgânicos guarda uma história exemplar de altos e baixos, vontade de desistir e estímulo para prosseguir. A expansão da loja, inaugurada em agosto deste ano, é menos reflexo da luminosa projeção de crescimento de 30% do mercado de orgânicos em 2016, como prevê Marcus, do que fruto de um espírito de empreendedorismo e perseverança. A rigor, essa expansão começou 16 anos atrás, quando Marcus penava como representante para vender apenas arroz e açúcar para grandes redes varejistas.
Filho de um corretor de imóveis e de uma professora, Marcus Aurélio Teixeira Gonçalves sempre atuou na área comercial. Formado em Administração e recém-casado, iniciou a carreira em 1987 vendendo anúncios nos classificados de A Gazeta, emprego que lhe garantia uma renda mensal segura e confortável.
Uma década depois, o cenário começou a mudar. Em 99, uma palestra na Rede Gazeta sobre a internet e seus impactos na vida social, acendeu-lhe a luz amarela. Um diretor da Rede Gazeta bateu em seu ombro e disse, solene e profético: “Esse negócio vai acabar com o jornal”. Marcus prontamente se mexeu para arrumar um plano B. Folheava ao acaso uma edição da revista Exame, da qual era assinante, quando se deparou com uma matéria sobre orgânicos.
Leu e gostou do que leu. A matéria tinha entre seus personagens representantes da Native e Volkmann, hoje duas grandes empresas de alimentos orgânicos (a Native tem o açúcar estrela; aVolkmann, o arroz biodinâmico), mas, à época, incipientes no ramo. Marcus nunca tinha ouvido falar em orgânico; desconhecia por completo o mercado capixaba no segmento. Via, ali, apenas uma oportunidade de renda. Ainda assim, arriscou: pegou o telefone e fez contatos com ambas. O que poderia fazer para vender os produtos? A Native propôs a representação e a Volkmann, a distribuição. Aceitou. “Está no meu espírito aceitar desafios, né?”, diz, rindo.
Um desafio e tanto. Mas passou praticamente um ano tentando vender açúcar e arroz orgânicos para as grandes redes varejistas; rodou o estado de norte a sul em vão. Motivo: a ignorância. Enfrentou gerentes que nunca tinham ouvido falar em orgânicos e, aí, lá ia Marcus romper o véu da desconfiança, explicando que alimentos orgânicos eram produzidos sem agrotóxicos ou qualquer outro tipo de aditivos químicos. “Um não acreditava. O outro falava que era coisa de bicho-grilo”, lembra.
Marcus cometera um erro que, desditosamente, reconheceria tarde demais: achar que conhecer pessoalmente os donos das grandes redes de supermercado seria uma espécie de chave-mestra. Foi um ano de dedicação absoluta. Marcus ainda não abandonara a venda de anúncios: cuidava de uma pela manhã e de outra pela tarde. Em vão. Estava quase desistindo, tão fraca era a demanda. Aí, então, conheceu a feira de orgânicos do Barro Vermelho, a primeira do gênero na Grande Vitória, realizada aos sábados pela manhã.
A feira naquele ano de 2002 registrava poucos meses de vida. Engatinhava. “Era bem fraca, com alguns produtores já pensando em desistir”, lembra. Marcus conheceu um produtor e manifestou interesse em montar uma barraca ali. “O que você tem?”, perguntou o homem. “Açúcar, arroz e suco de laranja”, respondeu Marcus. O produtor gostou do que ouviu e prometeu que abriria um espaço ao lado da barraca dele partir do sábado seguinte. Seu nome era Waldemar Flegler, um dos pioneiros da produção orgânica em Santa Maria de Jetibá, região serrana do estado.
Marcus chegava às 5h30, montava a pequena barraca e vendia tudo, açúcar, arroz e suco de laranja. As coisas melhoraram, apesar da comissão magra da venda do açúcar – “não pagava nem o pedágio da ponte, que eu era caro”. O arroz gerava lucro ainda tímido. A história de Marcus com a feira, no entanto, durou apenas seis meses: foi retirado sob a acusação de violar o estatuo da feira.
Ele explica bem-humorado: ele vendia também uma cachaça, orgânica e certificada, produzida em Carangola (MG), que oferecia para degustação. E os que mais se dispunham a degustá-la eram os próprios feirantes – o que afrontava ainda mais o estatuto. Marcus saiu da feira, mas montou uma arguta estratégia para entrar nos supermercados: como já havia formado uma clientela na feira, pedia, especialmente às donas de casa, que questionasse os supermercados do porquê não vendiam orgânicos.
Demorou, mas funcionou. Aos poucos, os produtos ganharam as prateleiras dos supermercados. Nessa época, Marcus já estava seduzido pela dinâmica comercial do mercado orgânico. “Tem que ser justo para todos. Sempre ouvi isso e preguei isso. Afinal de contas, você tem que ter lucro financeiro e deixar um ativo para a sociedade, e não um passivo para o meio ambiente. Você só explora o ambiente e não dá nada em troca?”, pondera.
Mas o lucro não vinha. Marcus já tinha montado sua primeira loja, com o mesmo nome, em Santa Lúcia. Ceder produtos em bonificação para as grandes redes significou cavar a própria cova. “Quando fui ver, um buraco embaixo. Uma conta enorme para pagar, sem nada para receber e sem estoque em casa”, diz. Não deu outra: quebrou, sem mercadoria, devendo a fornecedor e a supermercados, que cobravam pelos produtos não vendidos. Pegou um empréstimo com um irmão vendeu o carro e negociou as dívidas com os fornecedores. A Native o encorajou: não desistiria de seu primeiro representante fora do eixo Rio-São Paulo.
Marcus recebeu a oferta de ajuda de uma cliente dos tempos de feira para manter a loja. Ele não cedeu. Preferiu fechar a loja e diminuir a compra com fornecedores. Levou um ano para se reerguer.
Uma nova chance viria em 2010. Já membro da CPOrg (Comissões de Produção Orgânica), fórum de representantes da rede de produção orgânicas do estado ligada ao Ministério da Agricultura, foi indicado pelo grupo para gerenciar um evento para a promoção de produtos orgânicos no Hortomercado. O evento foi tão exitoso que a então gerente do espaço ofereceu uma loja para Marcus, que, claro, não aceitou prontamente. Conversou, explicou sua situação. Como resposta, recebeu uma sedutora proposta comercial. Lembrou, então, da antiga cliente da feira que se dispusera a manter de pé a loja de Santa Lúcia.
Era uma bancária aposentada que estabelecera uma relação de absoluta confiança com Marcus, a quem confiava até o cartão-alimentação para a compra de orgânicos em supermercado. Propôs uma sociedade: ela montava a loja e ele entrava com os produtos. Montou planilhas de projeção de vendas, planilhas de custos e perguntou: se com 12 meses a loja não atingir o valor fixado, tem que vender ou fechar. Topa? Ela topou. Acreditava muito no negócio.
Em agosto, abriu a Só Orgânicos no Hortomercado. Em dezembro, recebeu o primeiro bom sinal em uma década de labuta: a loja se pagou. Com o país em bom momento econômico, Marcus com significativa experiência no segmento orgânico e o comércio do setor começando a ganhar musculatura no estado, o futuro prometia ser luminoso. “O mercado orgânico não cresce mais por falta de produtor. O consumidor demanda muito”, diz, sobre o momento atual.
Hoje um profundo conhecedor do segmento, reunindo na loja as principais do país (Ecobio, Volkmann, Vitalin, Native, Viapax, Mãe Terra, biO2 Organic, entre outras), ele identifica uma mudança fundamental no perfil do consumidor. “Era esse aqui”, diz, apontando o balcão vazio. è que Marco Ortiz, fundador do Restaurante Sol da Terra, outro pioneiro em alimentação orgânica no estado, acabara de deixar a loja. “Era o naturebão, cabeça aberta, que conhece o que quer e paga pelo que quer”, diz.
Marco Ortiz foi um dos clientes de Marcus na feira, de quem comparava o arroz. Por uma dessas fatalidades da vida, Marcus não se tornou também fornecedor do Cio da Terra, outro restaurante pioneiro no setor no estado. Marcus já tinha marcado um encontro com Geraldo Oscar de Paula, fundador do restaurante, para apresentar uma lista de produtos. Dias depois Geraldo faleceria em um acidente de carro em Guaçuí.
Com a expansão das feiras orgânicas na Grande Vitória, esse perfil médio mudou e passou a ser o consumidor acima de 40 anos com alta renda. Hoje, se transformou mais uma vez: o perfil do consumidor de orgânicos dilatou-se em termos socioeconômicos. Mas, ainda assim, há um perfil recorrente: casal jovem, de 22 a 30 anos, com filho pequeno.
Com o lançamento de um site de clube de compras, em que, mediante o pagamento de uma taxa, o assinante tem acesso a produtos com preços abaixo do mercado, iniciou um projeto que, se depender dele, evoluirá para uma cooperativa de consumo, projeto que ele já prepara para apresentar ao Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).
A ideia reuniria associados produtores e consumidores, o que, ao final, alargaria a oferta de produtos – capixabas, por exemplo: a Só orgânicos conta com apenas sete itens locais em uma oferta que ultrapassa 500 – e baratearia o preço. “A proposta do site é essa: você diminui o trabalho do produtor, que vai trabalhar de segunda a sexta, com planejamento e vender com preço justo”, explica. O objetivo, claro, é sempre ser justo, feliz e sustentável.