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O Castelo de Franz Kafka

INTRODUÇÃO

Uma das grandes questões que surgem na fortuna crítica da obra de Franz Kafka é o fato de ele não ter concluído nenhum dos seus três projetos de romance. Este fato abre uma lacuna na conclusão ou até numa possível racionalidade na apreciação destes trabalhos, é como se abrisse um abismo material (a obra inacabada) somada ao indefinido da narrativa insciente que domina a obra kafkiana. O menos célebre desses romances inacabados é “O Desaparecido”, que Max Brod trouxe à luz em 1927 sob o título “América”, sendo que o próprio Kafka publicou apenas o primeiro capítulo, “O Foguista”. Uma visão geral e clarividente da moderna sociedade industrial, o romance trata então pelos capítulos em que se narra o trabalho do herói, do labiríntico hotel “Occidental”, desorientação espaço-temporal que também terá forte carga nas opacas hierarquias de magistrados e funcionários de “O Processo” e “O Castelo”.

No romance O Castelo, por sua vez, não falta aqui nenhum dos elementos e temas que costumam povoar o que se chama pelo adjetivo de “kafkiano” que são, por exemplo, a obscuridade e indefinição moral e existencial da culpa e da punição, o paradoxo, e a espera interminável e absurda. E como dito, não falta a O Castelo a sensação que a narrativa provoca como se fosse uma estrutura de labirinto, no qual os fatos são apreciados por todos os ângulos, tendo como efeito a própria percepção labiríntica, de desorientação, e com o resultado objetivo e material de uma trama que se torna em um emaranhado inextricável.

Na narrativa de O Castelo, por sua vez, temos como um dos momentos do romance o de quando a narração está prestes a ganhar nova ambiguidade, que é então o momento em que Olga diz nunca saber quando a irmã está falando a sério ou com ironia, e K. lhe corta a palavra bruscamente com a exclamação: “Deixe de lado as interpretações!”. Tal exclamação, por sua vez, pode ser associada diretamente ao nono capítulo de “O Processo”, o qual se passa na atmosfera sombria da catedral em que o sacerdote da penitenciária conta ao acusado Josef K. a famosa parábola “Diante da Lei” que é a história de um homem do campo que espera a vida toda, diante de uma porta guardada por um porteiro, para ingressar na lei, até que no momento da morte o porteiro lhe diz, como resposta à sua derradeira pergunta, que a porta estava destinada apenas a ele, fechando-a em seguida. Então, ambos analisam a história por diversos ângulos, mas sem nunca atingir uma interpretação correta ou segura.

CRÍTICA À OBRA

A história contada no romance O Castelo trata basicamente das desventuras do agrimensor K. em uma vila subordinada a um castelo. E a narrativa já começa lacunar pelo fato de K. ter vindo de outro lugar, mas que nunca se sabe de onde e que aparece também como um personagem aparentemente sem passado visível, já que o romance não o coloca tal passado em pauta. Contratado para trabalhar na medição de terras para um conde ou para algum alto funcionário subordinado ao conde, na aldeia, no entanto, temos na narrativa uma completa ausência de informações precisas sobre como estas pessoas são governadas pelos indivíduos do castelo, e ainda de informações sobre assuntos administrativos de menor importância, como a contratação de K.

O fato lacunar da trama kafkiana se agrava também pelo fato de que ninguém consegue contatar pessoa alguma no castelo para saber sobre as tarefas a serem atribuídas a K. ou onde e como hospedá-lo. Por sua vez, K. sabe que um alto funcionário de nome Klamm tem mais informações sobre as suas funções e tenta, portanto, encontrá-lo de todas as maneiras para esclarecer o assunto. Mas então nos deparamos com o tema principal do romance, que é então as complexas artimanhas pelas quais as pessoas que detêm algum poder utilizam para provocar o medo, e que usam a autoridade para confirmarem que têm poder.

Em O Castelo podemos compreender tais relações de poder como a imagem de um imenso aparato burocrático que serve como força desagregadora e que impõe inúmeras dificuldades nas ações dos profissionais, e que mantém, por fim, uma estrutura hierárquica rígida e estática. O Castelo pode ser entendido, portanto, como a ideia de uma sociedade que tem a burocracia como esta estrutura que mantém as relações de poder como são e estão, numa constante imutável entre superiores e subordinados, numa realidade em que a mobilidade social é sufocada pelo aparato complexo das normas e da própria escala administrativa. Tal fato em O Castelo, na reflexão sobre a hierarquia e de sua inacessibilidade, se dá quando ninguém sabe como fazer para conversar com Klamm e todas as tentativas de K. em ter contato pessoal com este alto funcionário vão aos poucos se mostrando inúteis e infrutíferas, quanto mais K. tenta isso, mais o abismo se abre.

O Castelo é, por sua vez, a demonstração enigmática dos meandros de uma sociedade de líderes estranhos e autoritários, com uma burocracia de esfinge que é como uma criptografia indecifrável que culmina com a imagem de um castelo que ninguém sabe como é administrado, mas que tem autoridade sobre a aldeia que o cerca, o impressionante é que tudo funciona, mas ninguém sabe como. A narrativa de O Castelo é nada mais que esse extremo da completa ausência de informações seguras sobre um cotidiano que tem suas regras, mas estas não são decifradas enquanto funcionamento racional, tal razão das coisas é bem objetiva e funcional, mas nunca se tem o conteúdo de como todas estas coisas se dão, mesmo que sejam efetivas na vivência da aldeia na sua relação com o castelo. E tal rigidez das relações de poder estão, contudo, quando se fala dos personagens de O Castelo, sempre com este desejo clássico da ascensão social como tema e, por vezes, ele acontece, mesmo com toda a burocracia estática no que consta do fato administrativo dominante que é o cada vez mais evanescente castelo e sua cúpula invisível.

O Castelo é um romance que também pode ser entendido como uma narrativa dividida em duas partes distintas, pois nos primeiros capítulos ele apresenta a chegada de K. à aldeia do castelo e sua relação com diversos personagens, enquanto os capítulos que seguem na segunda metade do romance são povoados por elucubrações teóricas sobre as motivações que levaram os personagens, na primeira metade da obra, a tomarem certas decisões. Ou seja, temos uma narrativa que começa objetiva, com relações humanas, e depois uma narrativa que se aprofunda no caráter especulativo que cerca sobretudo esta presença incompreensível do castelo.  

Começando com a entrevista com o prefeito da aldeia, o herói K., por sua vez, se vê diante de uma sala abarrotada de processos, autos, dossiês etc, e é nesse mundo protocolado e arquivado, que K., então, fica conhecendo os meandros incontáveis da administração do castelo, com instâncias emaranhadas e infinitas que contam com autoridades de controle, além de funcionários tão implacáveis como o italiano Sordini, e a existência de um Sordini e de um Sortini, assim como a semelhança dos dois ajudantes de K., está inserida nesta técnica e estratégia da narrativa de dissolução da nitidez com a multiplicação das contradições, abrindo um campo especulativo repleto de dúvidas, buscando a relativização implacável dos fatos.

ELABORAÇÃO DO ROMANCE E INFLUÊNCIAS

Kafka, em relação a O Castelo, realizou um feito impressionante, para não citar a impressão da própria narrativa em si, uma vez que o autor a redigiu em apenas seis meses, entre o fim de fevereiro e o começo de setembro de 1922. E tal romance aparece sob a influência declarada por Kafka em cartas de obras como Temor e tremor, de Kierkegaard; O outro lado, de Alfred Kubin; Educação sentimental, de Flaubert; passando por uma lista enorme de autores, chegando então até A divina comédia, de Dante; e, por fim, a obra Afinidades eletivas, de Goethe.

Ao nos depararmos com O Castelo, por conseguinte, notamos algo poderoso, uma estrutura tangível (como ela é imaginada, diga-se), que embora se assemelhe ao aspecto intangível do poder apresentado em O Processo (uma burocracia que parece engolir tudo), o castelo tem todo o poder, e permanece por todo o romance como algo inatingível. K. pretende, contudo, de qualquer forma, alcançá-lo, numa luta vã e labiríntica, a mesma de Josef K. em O Processo, que é a do enfrentamento de um homem contra um emaranhado em que o excesso de racionalidade, ao invés de trazer esclarecimento, produz o mais profundo abismo de obscurecimento, o que pode ser bem entendido pela ideia de labirinto ou desorientação. E o leitor pode se perguntar, então, se tal castelo existe, se ele é real, ou a produção delirante de uma espécie de ilusão coletiva, já que não resta dúvida na narrativa de que os aldeões acreditam na sua existência real.  

Por sua vez, tanto O Castelo quanto O Processo são romances inacabados de Kafka, com o primeiro terminando bruscamente no meio de uma frase, e que, por conseguinte, precisou de três ou quatro versões para alcançar a Versão hoje tida como definitiva. E aqui temos como fato dito pelo próprio autor desses escritos que ele não sabia exatamente onde chegaria quando começou a escrever ambas as obras e que elas fluíam de forma natural na elaboração do material, como se sendo moldadas por “si mesmas”, sem um roteiro pré-definido ou ponto previsível de chegada. Aqui temos, portanto, a demolição da ideia grega do início-meio-e-fim por este que foi um dos maiores escritores do século XX.

PERIPÉCIAS DO ESPÓLIO

Apesar do tamanho considerável, O Castelo, de Franz Kafka, chegou à luz como fragmento, no que temos, ao fim, as 495 páginas da edição crítica alemã que terminam, como dito, bruscamente no meio de uma frase, numa redação frenética do autor que durou cerca de seis meses, de fins de fevereiro a fim de agosto/começo de setembro de 1922. 

O livro, contudo, embora já redigido por Kafka, mesmo sem conclusão, foi publicado somente como obra póstuma, pouco antes de 9 de dezembro de 1926, por iniciativa pessoal de Max Brod, seu amigo e responsável pelo espólio do mesmo. E um fato radical e extremo é que tal obra esteve a ponto de ser queimada, por vontade expressa do autor, no que Max Brod conseguiu evitar a tragédia, conservando estes escritos, dentre outros mais. Numa visão de conjunto, mesmo com Kafka vivendo apenas 40 anos e 11 meses, seu trabalho literário tem uma dimensão de quantidade de material considerável, e que se consumam com três obras principais que sustentam tal edifício que são, então, no plano concreto da “Weltliteratur”, O Castelo, O Processo e A Metamorfose. 

Os manuscritos de O Castelo, que cobrem numerosos cadernos e folhas soltas com os garranchos de Kafka, ficaram, como dito, na posse de Max Brod após a morte do escritor. Com Brod salvando os originais por duas vezes: a primeira ao recusar expressamente a destruí-los, contrariando o desejo do autor; e a segunda, quando as tropas nazistas ocuparam Praga em março de 1939 e ele conseguiu escapar da cidade para Tel Aviv, levando consigo o espólio literário de Kafka. E foi esse ato de resgate que possibilitou a reedição dos escritos no período pós-guerra, entre os quais O Castelo. E quando, em 1956, o Oriente Médio se viu ameaçado pela guerra, a maior parte dos manuscritos de Kafka foi enviada para a Suíça; e de lá chegou, em 1961, por desejo dos herdeiros, a Oxford, sendo depositada na Bodleian Library, onde se encontra até hoje. E foi com base nesse material que surgiu, por fim, em 1982, a edição crítica do texto de O Castelo.

 

INTERPRETAÇÃO E FORTUNA CRÍTICA

O problema crucial levantado no romance é saber o que significa o vaivém compulsivo do personagem central, K., entre a aldeia e as proximidades do castelo. Kafka reitera, por sua vez, que está “sempre tentando explicar algo que não pode ser explicado”; e então temos que esta ficção kafkiana representa o esforço do herói (ou anti-herói) para descobrir o significado de um fato central na sua existência, que é aqui o temor sem explicação. No romance os acontecimentos se dão em sua simples sucessão, mas numa dinâmica em que nada é explicado, tudo fica deliberadamente para além da compreensão, a objetividade do acontecimento não traz a sua razão, o que temos é um fato sem razão, uma relação também entre os personagens sem um fundamento que não seja a administração evanescente e obscura de um castelo, o objeto frio do acontecimento em O Castelo vem sempre numa cortina de fumaça, esta que é a própria ideia crítica que se tem da burocracia.  

As interpretações de O Castelo têm volume e diversidade incomparáveis, e o ponto de partida obrigatório é a exegese teológica de Max Brod, para quem o ziguezague espiritual do herói é a demanda de clemência e reconhecimento a um “deus absconditus”. Brod afirma, também, que Kafka teria declarado pessoalmente a ele que o romance terminaria num desenlace no qual K., já no leito de morte, cercado pelos habitantes da aldeia, receberia uma mensagem no sentido de que as autoridades do castelo permitiriam que ele permanecesse na aldeia, embora sem o direito de reivindicar tal permanência. A interpretação fez carreira, ditando regra durante muito tempo, mas a virada veio quando Alfred Döblin refutou a ideia de que O Castelo representasse uma alegoria dessa natureza, sendo no máximo o início de uma boa análise. E ainda nos anos 1930 a obra foi concebida, no entanto, como a alegoria do homem comum (“Jedermann”), no contexto do moderno mundo burocrático.

Contudo, o maior golpe contra a versão religiosa de interpretação de O Castelo foi desferido por Siegfried Kracauer, quando ele sustentou que as autoridades do castelo não podem ser equiparadas aos poderes divinos, mas sim aos do inferno. E diante do impasse moderno da perda de noção de totalidade, o narrador, em Kafka, não sabe nada ou quase nada sobre o que de fato acontece quando narra, tanto quanto os personagens e o herói do romance. E não faltam, por outro lado, inúmeras análises existenciais (como as de Camus e Sartre) e psicanalíticas de “O Castelo”. Valendo a pena lembrar que, no caso das últimas, a aldeia seria o nível consciente de K. e o castelo o seu inconsciente. E temos também leituras que veem objetivadas em K. a situação do judaísmo que aspira inutilmente a ser aceito pelo mundo não-judeu. E numa visão ainda diferente das anteriores, temos um K. visto não como um cavaleiro da fé à la Kierkegaard, mas como um rebelde contra a ordem estabelecida.

Já em 1934, Walter Benjamin declarou inconsistente o jogo alegórico de inclinação teológica e psicanalítica e elaborou uma versão pessoal de O Castelo, sugerindo que as autoridades que esmagam K. não podem ser identificadas nem com forças obscuras nem com divindades, mas com a burocracia real do mundo empírico e social. E as análises técnicas de composição do livro têm início mais tarde, quando Friedrich Beissner encara a questão do narrador kafkiano, que é idêntico à figura principal e incapaz de abrir para o romancista um espaço seja ao lado, seja sobre o personagem K. (o escritor, inclusive, escreveu as primeiras 46 páginas do “Castelo” em primeira pessoa; a partir desse ponto passou para a terceira, refazendo a primeira parte também sob esse ângulo).

O narrador inventado por Kafka, então, é uma formalização literária do estado de coisas contemporâneo, uma vez que ele deixa a sua onisciência tradicional para mergulhar num completo estado de insciência. E isto se consuma então como o impasse moderno da perda de noção de totalidade, em que, no romance O Castelo, aquele que narra, em Kafka, não sabe nada ou quase nada sobre o que de fato acontece, tal qual o personagem.

E Kafka teria tomado, por fim, todas as precauções possíveis para dificultar a interpretação de seus textos, como observa Walter Benjamin em 1934. E Adorno, que ao longo de 13 anos gestou algumas páginas a que deu o modesto título de “Anotações sobre Kafka”, refere-se também a “uma arte de parábolas para as quais a chave foi roubada; e, mesmo quem buscasse fazer justamente dessa perda a chave, seria induzido ao erro”.


Gustavo Bastos, filósofo e escritor

Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

 

 

 

 

 

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