Abro essa reportagem com os filósofos Adorno e Horkheimer. Para eles, a humanidade, em vez de entrar numa condição verdadeiramente humana, afunda num novo tipo de barbárie, como o caso dos índios Krenak, das margens do rio Doce, na região de Resplendor, em Minas Gerais, atingida recentemente pela tragédia de Mariana, melhor seria dizer, pelo crime ecológico de Mariana, de responsabilidade da Vale-Samarco-BHP.
Esse rio tem um significado de vida para esse núcleo indígena de origem Botocudo, resistente a toda sorte de violência para permanecer junto a ele, principalmente as ocorridas em meados do século 20, quando o governo resolveu entregar suas margens aos fazendeiros para transformar as matas ciliares e a floresta contígua em propriedades agrícolas, mudando totalmente o perfil da região.
Para que os fazendeiros pudessem ser assentados, foi preciso retirar os Krenak, praticamente os últimos botocudos que nela permaneceram, já que os demais foram massacrados ao longo de sua existência. A presença deles nas matas em torno do rio, com sua índole guerreira, impediu por muito tempo atividades de ocupação e até da passagem dos exploradores de ouro para Minas Gerais. Atenho-me nesta reportagem a contar a história de um velho e resistente índio.
A morte da centenária figura da tribo dos índios Krenak, da nação dos Botocudo, chegou quando ele encontrava-se ainda em plena gastança dos seus 105 anos de existência, calando uma das últimas referências regional da vida indígena na selva: Euclides Krenak.
Viveu em um dos mais belos trechos da Mata Atlântica, quando os índios ainda se encontravam em estágio de absoluta inconsciência coletiva, aliado também à liberdade de suas crenças e ritos. Esse modo de vida seria abalado com a chegada dos invasores europeus, saqueando suas matas, escravizando sua gente, ainda, com ações nítidas para roubar-lhe até a própria alma, numa inconsequente catequese ministrada pela Companhia de Jesus, dos padres Anchieta e Nóbrega.
Ternura da floresta…
Excetuando-se esses vinte e tantos anos de floresta, por lá de tanga, ou mesmo nus, desprovidos de quaisquer receios ou medo, desfrutando dessa privilegiada etapa de vida de alimentação farta e saborosa de gêneros da própria floresta, a longevidade de índios contribuiu para que atravessassem as piores provações que lhes impostas: de epidemias a armadilhas insanas, visando extingui-los, como o ataque às árvores, considerada uma tragédia cujas proporções ultrapassaram a compreensão do próprio ser humano. Os Tupis, que receberam os invasores europeus, as consideravam privativa dos seus espíritos e animais.
O historiador Sérgio Buarque de Holanda, no seu livro Raízes do Brasil, faz estes registros, notadamente os ataques à floresta tropical que a nação dos Botocudo defendera por quase 300 anos, repelindo os vândalos reunidos pelo próprio governo, na busca insaciável por madeira e terras agricultáveis. Além de tombarem as árvores, incendiavam até o seu entulho: “A história florestal brasileiro (escreveu Buarque nesse livro) é da exploração e da destruição. O avanço da espécie humana fundava-se, portanto, na destruição de florestas“.
No caso específico da Mata Atlântica e no que diz respeito particularmente aos Botocudo, Buarque Holanda lembrou que, em cada hectare, encontravam-se 270 espécies acompanhadas por diversas outras, principalmente epífitas, parasitas, e animais invertebrados. Certos beija-flores, sanhaços, marsupiais, preguiça, saguis, pererecas, inúmeros outros limitados à Mata Atlântica. Numa complexidade extrema por se tratar de um sistema único.
Guardiões invisíveis…
Outro que tratou do mesmo assunto foi Eduardo Viveiro de Castro. O antropólogo prefacia o livro “A Queda do Céu – Palavras de um Xamã Yonomami”, de David Kopenawa e Bruce Albert. Nesse prefácio, Castro se refere à floresta como uma máquina do mundo por ser um ser vivo composto por outros incontáveis seres vivos. “Um superorganismo constantemente renovado pela atividade vigilante de seus guardiões invisíveis”. Assegurando, ainda, que a floresta é dos humanos índios com os seus Sapiri, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o sol. E tudo que veio da existência. Vedada para os brancos, por justa razão de serem eles os carrascos delas. Quanto aos Sapiri (espírito do bem), Castro os atribuem à própria defesa da floresta como agentes da profecia xamânica.
A retirada dos indígenas do seu habitat, tornou as florestas estranhas e carentes do próprio ser humano. Mas um desses que a respeitou e contribuiu para sua preservação enquanto por lá se encontrou, foi, sem dúvida alguma, o personagem central dessa reportagem, que eu haveria de vê-lo pela primeira vez numa aldeia Krenak, às margens do rio Doce (foto acima, que os índios chamam de Borum Watu), na ocasião em que procurava conhecer os efeitos do crime ambiental que dizimou o rio Doce.
Depois da floresta…
E num cenário bem apropriado ao momento vivido por eles. Debaixo de uma frondosa mangueira, com Euclides assistindo à meia distância seus sobrinhos narrando as consequências dessa tragédia ecológica da Samarco, que praticamente destruiu o rio Doce. Chamou minha atenção a diferença física dele dos demais Krenak. Enquanto meus interlocutores eram jovens e de baixa estatura (cerca de 1,60m), com idade em torno dos 30 anos; o outro era mais alto, em pelo menos uns 15 centímetro.
Julguei importante mostrar esses dois momentos dos índios Krenak. Do tempo da vida na floresta e depois em aldeias em terras servidas por meros núcleos de mata. Melhor dizendo, em descampados. Um quadro que melhor se expressaria através de imagem, mas quando recorri à câmara fotográfica para registrá-la, o velho Krenak fez cara de desaprovação. Desisti de imediato, perdendo uma cena real desse contraste do povo Krenak, composto de jovens índios sarados, com os seus cabelos compridos contra um outro de uma geração relativamente corpulenta. Pensei, na hora, com meus botões, vou ter de voltar em outra oportunidade para contar a história de Euclides. O que o faria oito meses depois (esse primeiro encontro foi em dezembro de 2015).
Ainda sobre esse primeiro encontro imaginei o velho Krenak com idade entre 60 e 70 anos idade, mais para 70. Surpreendi-me, porém, quando me disseram que ele encontrava-se na veneranda idade dos 104 anos. Esse encontro resultou, inclusive, na reportagem “Agoniza o Rio Doce para Desespero dos Krenak”, juntando-se a outra mais antiga, dos anos 1980, “O Amargo Rio Doce”.
Transpondo barreiras…
Todo o meu interesse jornalístico ficou realmente para a figura desse centenário Krenak. Busquei conhecer sua vida com os seus sobrinhos e também com a irmã dele – Deija pajé (foto à esquerda) da sua aldeia. Quando fiquei sabendo que ele havia nascido ao raiar do século 20, quando a Mata Atlântica ainda estava no melhor de suas condições, sobretudo na região do rio Doce ainda gerando pleno encantamento aos viajantes europeus, que a frequentaram por mais de três séculos.
Euclides foi, sobretudo, uma história de resistência às ciladas armadas contra os índios brasileiros que dizimaram milhares deles. Atribui, entre inúmeros fatores que guarneceram sua existência, a alimentação natural e o tratamento da saúde pelas mãos tão somente dos pajés. Sem que houvesse experimentado qualquer medicamento ou mesmo se submetido a qualquer tratamento com médicos. Era na base do pó das árvores e das ervas. Ele não chegou a ser uma espécie de síntese da história do seu próprio povo, mas a imagem da própria resistência Botocudo, já que os Krenak foram os últimos dessa raça a alcançar a região do rio Doce.
Longo exílio…
Euclides passou por algumas aldeias até exilar-se nos Terena, no Estado de Mato Grosso, onde praticamente permaneceu por mais de 50 anos. Quando retornou ao seu lugar de origem já estava pela casa dos 90 anos. Não encontrou mais as suas duas mulheres, muito menos os seus três filhos que deixou quando o tiraram das margens do rio Doce. Eles já haviam morridos de velhice. Quanto aos demais descendentes, tomaram destinos ignorados, provavelmente tocados pela diáspora ocorrida com os Krenak. De sua família havia a irmã Deija, à frente de uma das seis aldeias dos Krenak na região do rio Doce.
Nessa sua longa trajetória distante milhares de quilômetros de sua tribo, não se rendeu aos hábitos e a natureza dos Terenas. Incorporou-se à nova paisagem humana formada por diferentes tribos, sendo que dos Krenak que lá se encontravam só sobrou ele mesmo. Os demais morreram e por lá mesmo foram enterrados. Apesar da adversidade, do trabalho escravo nas fazendas vizinhas da aldeia dos Terenas, ele resistiu a tudo. Condição que ele próprio atribuiu à convicção de que um dia voltaria à sua terra de origem. As noites, invariavelmente, traziam o reencontro com a família que havia deixado no rio Doce. Costumava ouvir também os cantos dos espíritos da floresta que proviam das árvores, e passava também por momentos nostálgicos.
Eterno saque…
Para melhor situá-lo nesse seu período de vida na floresta, que julgo o mais atraente de sua história, como a de todo indígena brasileira, faço referência de quando eles ocupavam o litoral e os rios que correm para o Oceano Atlântico. Suas terras foram tomadas pelos fazendeiros e pela Vale do Rio Doce, que cortou seu território com uma linha férrea.
Com a atual crise hídrica na região do rio Doce, Euclides começou a temer precisar recorrer a medicamentos farmacêuticos e de entregar-se ao tratamento médico. A presença agressiva do homem estava acabando com as ervas medicinais que plantava.
No nosso último encontro, em meados de 2016, ele deixou claro que desejava morrer como viveu, praticamente sem conhecer dores físicas, pois as que havia conhecido até então, foram meramente sofrimentos de natureza sentimental.
Fim desejado…
Mas andou a pique de cair nas mãos médicas quando no dia 26 de dezembro último, profundamente debilitado, foi levado às pressas a um hospital. Mas mal chegado a ele, pediu de imediato à pajé Deija o ritual de despedida da vida. No que foi prontamente atendido. Morreria no dia seguinte, 27 de dezembro, sem que tenha experimentado qualquer intervenção médica, inteiramente fiel à condição de vida que se propôs: como um índio puro sangue, levado para outra vida sob os cantos dos espíritos das florestas que havia guardado por anos a fio em sua mente.