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Por que ler os clássicos? Ítalo Calvino (parte 1)

O livro de Ítalo Calvino “Por que ler os clássicos” contém artigos e ensaios do autor sobre o que ele considera os seus clássicos, e que são os escritores, poetas e cientistas que mais o marcaram em vários períodos da sua vida. Segundo Calvino, quando ele abre o livro e sua reflexão, os clássicos são aqueles livros que se pode dizer que : “Estou relendo …” e nunca “Estou lendo …”.
A reiteração tem um sentido muito importante, pois Calvino constata, e isso para qualquer adepto da leitura em geral é um fato inexorável, de que muitos se “envergonham de admitir não ter lido um livro famoso”. Mas isso é o fato principal e mais normal para todo grande leitor, pois para Calvino “bastará observar que, por maiores que possam ser as leituras “de formação” de um indivíduo, resta sempre um número enorme de obras que ele não leu”.
E Calvino exemplifica o drama, bem normal, quando nos diz: “Quem leu tudo de Heródoto e de Tucídides levante a mão. E de Saint-Simon? E do cardeal de Retz? E também os grandes ciclos romanescos do Oitocentos são mais citados do que lidos.” Diz que, embora Balzac seja muito lido na França, não acontece o mesmo na Itália, e que os leitores de Dickens neste país configuram apenas uma pequena elite fora da curva. E tal fato nos diz que a qualidade da leitura de um autor passa pela influência local, isto é, também cultural e que envolve identidades que são tanto geográficas como históricas.
E neste aspecto de sentido histórico, Calvino nos diz: “Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)”. No que temos esta valência tanto para os clássicos antigos quanto para os modernos. E a chave de leitura dos clássicos tem um quesito muito importante para Calvino, que é o de que a leitura direta dos textos originais é o recomendável, e não, como alguns supõem, sua bibliografia crítica, comentários e interpretações.
E um problema prático se apresenta, quando Calvino nos alerta com o seguinte: “não posso mais adiar o problema decisivo de como relacionar a leitura dos clássicos com todas as outras leituras que não sejam clássicas”. Tal problema vem com a hipótese de que “uma pessoa feliz que dedique o “tempo-leitura” de seus dias exclusivamente a ler Lucrécio, Luciano, Montaigne, Erasmo, Quevedo, Marlowe, o Discours de la méthode, Wilhelm Meister, Coleridge, Ruskin, Proust e Valéry, com algumas divagações para Murasaki ou para as sagas islandesas. Tudo isso sem ter de fazer resenhas do último livro lançado nem publicações para o concurso de cátedra e nem trabalhos editoriais sob contrato com prazos impossíveis. Essa pessoa bem-aventurada, para manter sua dieta sem nenhuma contaminação, deveria abster-se de ler os jornais, não se deixar tentar nunca pelo último romance nem pela última pesquisa sociológica. Seria preciso verificar quanto um rigor semelhante poderia ser justo e profícuo”. E sabemos, que nas condições atuais, este leitor privilegiado simplesmente não existe.
Um exemplo de leitor ideal Calvino nos dá com o escritor Leopardi, este que “dada a sua vida no solar paterno, o culto da antiguidade grega e latina e a formidável biblioteca doada pelo pai Monaldo, incluindo a literatura italiana completa, mais a francesa, com exclusão dos romances e em geral das novidades editoriais, relegadas no máximo a um papel secundário, (…) mesmo suas enormes curiosidades científicas e históricas, etc.” E vemos que hoje tal educação clássica como a do jovem Leopardi é impossível, pois para Calvino “sobretudo a biblioteca do conde Monaldo explodiu. Os velhos títulos foram dizimados, mas os novos se multiplicaram, proliferando em todas as literaturas e culturas modernas.”
 
ODISSEIA
 
Calvino, no livro então, abre sua compilação de artigos e ensaios com a Odisseia, e a coloca no contexto de uma narração épica do retorno, nos dizendo que “o início do poema, a Telemaquia é a busca de uma narrativa que não existe, aquela narrativa que será a Odisseia.” E o fato crucial é da propriedade da narrativa, que nos aparece fluida, pois há uma transmissão de tal órbita quando Calvino nos diz: “Menelau aparece com uma fantástica aventura: disfarçado de foca, capturou o “velho do mar”, isto é, Proteu das infinitas metamorfoses, e obrigou-o a contar-lhe o passado e o futuro. Certamente Proteu já conhecia toda a Odisseia de ponta a ponta: começa a relatar as aventuras de Ulisses do mesmo ponto que Homero, com o herói da ilha de Calipso; depois se interrompe. Naquela altura, Homero pode substituí-lo e continuar a narração.”
Ulisses, que ouve um aedo cego como Homero, ouve a Odisseia como o relato de sua viagem e retorno, e o herói explode em lágrimas; e depois se decide a narrar ele próprio. E Calvino nos dá a chave de leitura que fundamenta a Odisseia, que é o sentido de que “este retorno-narrativa é algo que já existe, antes de se completar: preexiste à própria atuação. Já na Telemaquia, encontramos as expressões “pensar o retorno”, “dizer o retorno”.”
E Calvino conflita isto com a ideia de perda da memória, na qual Ulisses se arrisca quando “uma das primeiras etapas da viagem contada por Ulisses, aquela na terra dos lotófagos, comporta o risco de perder a memória, por ter comido o doce fruto do lótus. Que a prova do esquecimento se apresente no início do itinerário de Ulisses, e não no fim, pode parecer estranho. Se, após ter superado tantos desafios, suportado tantas travessias, aprendido tantas lições, Ulisses tivesse esquecido algo, sua perda teria sido bem mais grave: não extrair experiências do que sofrera, nenhum sentido daquilo que vivera.”
E tal “perda da memória é uma ameaça que nos cantos IX-XII se repropõe várias vezes: primeiro com o convite dos lotófagos, depois com os elixires de Circe e mais tarde com o canto das sereias.” E Calvino conclui, e que é o sentido do retorno para este poema épico: “Ulisses não deve esquecer o caminho que tem de percorrer, a forma de seu destino: em resumo, não pode esquecer a Odisseia.” E a viagem e retorno de Ulisses tem o sentido não de uma regressão, mas sim de uma restauração.
Tais aventuras marítimas estão concentradas em quatro livros centrais da Odisseia, e que é uma rápida sucessão de encontros com seres fantásticos, e que fazem contraste com o restante do poema, em que, segundo Calvino “dominam os tons graves, a tensão psicológica, o crescendo dramático gravitando sobre um objetivo” e que “também aqui se encontram motivos comuns às fábulas populares, como o tecido de Penélope e a prova de arco e flecha, mas estamos num terreno mais próximo dos critérios modernos de realismo e verossimilhança: as intervenções sobrenaturais concernem somente às aparições dos deuses olímpicos, em geral encobertos por feições humanas.” E que configuram, por fim, uma fronteira que Calvino afirma como o fato de que “só nos resta atribuir as diversidades de estilo fantástico àquela montagem de tradições de diferentes origens transmitidas pelos aedos e depois desembocadas na Odisseia homérica, e que no relato de Ulisses na primeira pessoa revelaria seu substrato mais arcaico.”
E Calvino afirma também que mesmo antes da Odisseia e da Ilíada, Ulisses sempre fora um herói épico, e que tais heróis épicos não costumam ter aventuras fabulares do gênero do início da Odisseia, na base de conflito com monstros e encantos diversos. Mas como Ulisses está numa passagem de dez anos em exílio, tal recurso ao fantástico e sobrenatural é um modo de contar este exílio, e que, segundo Calvino, “para tal extrapolação dos territórios da épica, o autor da Odisseia recorre a tradições (estas, sim, mais arcaicas) como as peripécias de Jasão e dos argonautas.” E Calvino conclui, então, nos dizendo: “Portanto, constitui a novidade da Odisseia ter colocado um herói épico como Ulisses às voltas “com bruxas e gigantes, com monstros e devoradores de homens”, isto é, em situações de um tipo de saga mais arcaico, cujas raízes devem ser buscadas “no mundo da antiga fábula e até de primitivas concepções mágicas e xamanísticas”.” Portanto, as raízes da Odisseia e de sua narrativa estão no mais profundo recôndito do mundo arcaico, num tempo perdido da História e do mito.  
 
AS METAMORFOSES
 
Ovídio, na abertura das Metamorfoses, aproxima o mundo celeste dos deuses do mundo cotidiano romano, incluindo, como nos diz Calvino, seu “urbanismo, divisão em classes sociais, hábitos cotidianos”. E Calvino também afirma que Ovídio também faz isso “enquanto religião: os deuses mantêm seus protetores nas casas onde residem, o que implica que os soberanos dos céus e da terra tributam por sua vez um culto a seus pequenos deuses domésticos”.
As Metamorfoses de Ovídio nos apresenta um universo em que as formas estão densamente povoando o espaço, com um intercâmbio intenso de qualidades e dimensões, com o fluxo do tempo ocupado na proliferação dos contos e ciclos de contos que compõem a narrativa de Ovídio. Segundo Calvino “as formas e as histórias terrestres repetem formas e histórias celestes, mas umas e outras se entrelaçam reciprocamente numa dupla espiral”. Há, portanto, uma contiguidade entre deuses e seres humanos, pois são parentes dos deuses e objeto de seus amores compulsivos, e tal relação de contiguidade é um dos temas dominantes das Metamorfoses, com tal fusão incluindo também tudo o que existe, ou seja, fauna, flora, reino mineral, e até o firmamento, criando um espaço comum em que tudo se relaciona com tudo. Pois, para Calvino “a mescla deuses-homens-natureza implica não uma ordem hierárquica unívoca mas um intricado sistema de interações em que cada nível pode influir sobre os outros, mesmo que em medidas diferentes. O mito, em Ovídio, é o campo de tensão em que tais forças se defrontam e se equilibram”.  
Do Oriente, por exemplo, por meio do romance alexandrino, Ovídio absorve a técnica “de multiplicação do espaço interior à obra mediante os relatos encadeados uns nos outros, que aqui fazem aumentar a impressão de densidade, de aglomeração, de enredamento. Assim, continuamente se decantam nas Metamorfoses novas concreções de histórias”. E Calvino pontua: “a paixão que domina seu talento compositivo não é sistematicidade mas a acumulação, que anda junto com as variações de perspectiva, as mudanças de ritmo”.
As Metamorfoses configuram um poema em que tudo se sucede com rapidez, o ritmo acelerado de acumulação sem sistema é um caldo em que “cada imagem deve sobrepor-se a uma outra imagem, adquirir evidência, dissolver-se”. E também temos, por outro lado, os momentos em que o relato se torna menos célere, num andamento mais calmo, e neste momento Ovídio suspende o tempo numa apreensão dos detalhes que ele narra, numa descrição de coisas miúdas, e “mais adiante excitada e impaciente por saturar o maravilhoso da fábula com a observação objetiva dos fenômenos da realidade natural”. E, por fim, Calvino nos diz que Ovídio também prima por uma característica que é o seguinte: “uma lei de máxima economia interna domina esse poema aparentemente voltado para o dispêndio desenfreado. É a economia própria das metamorfoses, que pretende que as novas formas recuperem tanto quanto possível os materiais das velhas”.
Para Calvino “Ovídio quis dar uma sistematização teórica a essa filosofia natural, talvez em sintonia com o bem distante Lucrécio (…) mas talvez a única coisa que conte para nós seja a coerência poética no modo que Ovídio tem de representar e narrar o seu mundo: esta efervescência e acúmulo de histórias tantas vezes similares e sempre diferentes, em que se celebra a continuidade e a mobilidade do conjunto”. Portanto, Ovídio tem uma narrativa de conjunto, de multiplicidade, nunca de um sistema acabado, que é a junção dos elementos diversos e suas mudanças, isto nas relações intrincadas que dão o sentido principal de As Metamorfoses.  
 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor 

Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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