A pesquisa foi realizada pela Clínica de Direitos Humanos da Divisão de Assistência Judiciária da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com recursos arrecadados pelo Coletivo Rio de Gente e gerenciados pelo Greenpeace. “O rompimento da barragem e a lama inviabilizaram o uso do rio pelos Krenak”, afirma a ONG.
Os 14 direitos dos Krenak violados pelo rompimento da barragem de Fundão identificados pelo estudo foram: Direito à vida digna e à integridade física, psíquica e moral; Direito à água, Direito à informação e à participação; Direito à consulta prévia e ao consentimento prévio, livre e informado; Direito à alimentação; Direito ao trabalho e à renda; Direitos sociais, em especial direito à saúde; Direito a um ambiente saudável; Direito de acesso à justiça; Direito dos povos indígenas à propriedade ancestral; Direito à melhoria contínua das condições de vida (ou desenvolvimento progressivo dos direito econômicos, sociais e culturais); e Direitos dos idosos.
Os autores explicam que essa lista, “além de sintética, não se pretende exaustiva justamente em razão do entendimento de que os danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão não cessaram. Eles perduram e se agravam no tempo enquanto não forem tomadas medidas de mitigação e, principalmente, de reparação integral dos danos”.
Atuação da Renova é nociva
Além disso, afirmam, os danos “se intensificam pelas práticas atuais das empresas na tentativa de solucionar a questão o mais brevemente possível e, também, de voltar a operar”, citando, como exemplo, as tratativas para tentativa de acordo sem a participação dos atingidos e atingidas, e, mais recentemente, a tentativa de entrada da Fundação Renova para implementação de seus programas na terra indígena Krenak, sem que eles fossem anteriormente consultados acerca de seus anseios e expectativas.
“Concordar com a entrada da Fundação legitimada pelo 'Acordão' firmado sem a devida participação popular e colocar o próprio ‘lobo para cuidar das ovelhas’. E, também a isso estaremos atentos”, alertam os pesquisadores da UFMG.
Outro exemplo é a distribuição de água potável e não potável na aldeia, “que tem produzido efeitos danosos ao modo de vida coletivo deles, a ponto de a presença cotidiana da empresa no território indígena se tornar uma ameaça à coesão social da comunidade”, informa a reportagem, destacando ainda a expansão vertiginosa de cercas na terra indígena. “Alguns membros das comunidades relataram que esse aumento se deveu especialmente às brigas entre vizinhos em razão do acúmulo de lixo e garrafas PET de água mineral vazias. Narraram que na aldeia não passa caminhão [de lixo] e antes não tinha tanto [lixo]. Alguns lamentaram o aumento das cercas, dizendo que antes “não tinha o meu e o seu, tudo era de todo mundo”, escreveram os pesquisadores.
O relatório cita também o falecimento do pajé da aldeia, Sr. Euclides. “Apesar dos inúmeros desafios que a vida lhe impôs, era sempre vigoroso. Construiu sua casa com as próprias mãos no último ano de sua vida, mas já não queria “descer e ver o rio” e, sem rio, já na o quis viver”.
Danos espirituais são irreparáveis
A pesquisa foi composta de três visitas à comunidade, com objetivo de abrir diálogo, coletar dados e avaliar os danos para além da esfera socioambiental e econômica, considerando, sobretudo, os prejuízos culturais e espirituais, para que, a partir dos resultados, se busque formas de reparação ou compensação. “Os danos espirituais são irreparáveis, porém temos tentado construir e consolidar a memória coletiva em relação ao rio para que essa espiritualidade possa ser reconstruída a cada dia”, diz a coordenadora do estudo, Letícia Soares Peixoto Aleixo.
De acordo com Fabiana Alves, da campanha de Água do Greenpeace, “o estado de Minas Gerais está tão dependente de mineradoras e omisso nessa situação, que a alternativa é pressioná-lo para não permitir que a ganância pelo lucro continue violando os direitos de povos indígenas”.
No relatório, os pesquisadores classificam o rompimento da barragem de Fundão como “o maior desastre tecnológico ambiental da história do Brasil e o maior do mundo envolvendo barragens de rejeitos, de proporções inéditas e ainda crescentes”. E ressaltam o significado da expressão “desastre tecnológico”, segundo o Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA/UFMG): “desastre atribuído em parte ou no todo a uma intenção humana, erro, negligência, ou envolvendo uma falha de um sistema humano, resultando em danos (ou ferimentos) significativos ou mortes”.
O Povo Krenak
Habitante das margens do Rio Doce, entre as cidades de Resplendor e Conselheiro Pena/MG, o povo Krenak tinha naquele rio sua principal fonte de água para consumo humano e animal, pesca e, principalmente, seu elemento sagrado. O Watu, como é conhecido o rio na língua Krenak, é elemento essencial da identidade coletiva do povo, uma forma de elo entre o passado, o presente e o futuro.
“Para muita gente era só uma água que corria ali, mas para o meu povo era um borum, era um Krenak, um irmão que tomava conta da nossa saúde, da nossa religião, da nossa cultura. O que mais me deixa triste é que meu povo, ao longo de muitos anos, vinha alertando a sociedade sobre as maldades que estavam sendo cometidas em nosso rio, mas ninguém nos ouviu”, desabafa Shirley Krenak, uma das lideranças da comunidade.