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Quem quer ser vizinho de uma siderúrgica?

Praia de Carapebus, na Serra, é um dos bairros que fazem limite com a face norte da Ponta de Tubarão, onde funciona um dos maiores complexos minero-siderúrgicos do mundo, formado pela ArcelorMittal Tubarão – uma das maiores unidades do maior grupo siderúrgico do mundo – e uma das principais plantas da Vale, maior mineradora do planeta. Instaladas a partir da década de 1960, ambas empresas dobraram de tamanho entre os anos de 2007 e 2008. O que já era ruim, portanto, ficou muito, muito pior.

Maior produção significa, sim, maior poluição. Apesar das propagandas institucionais das empresas, afirmando que as tecnologias mais avançadas permitiram dobrar a produção sem aumentar a emissão de poluentes, o relato uníssono dos moradores diz exatamente o contrário, tanto com relação ao pó quanto ao barulho quem vem da fábrica.

E olhe que se trata de duas empresas consideradas referência em gestão ambiental e social, acumulando prêmios no mundo corporativo. O que não impediu, obviamente, de que uma delas, a Vale, seja coautora do maior crime socioambiental da história do país, o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana/MG. E não tem impedido que sua vizinha e cliente, ArcelorMittal Tubarão, seja a principal algoz dos problemas de saúde respiratória – e limpeza doméstica – dos bairros com os quais faz limite.

O barulho também incomoda, principalmente à noite, por não deixar os moradores esqueceram por nenhum minuto a proximidade com o gigantesco complexo industrial. Alguns tremores e odores também, eventualmente, assustam os residentes. “Já senti o chão da casa tremer, junto com o barulho de máquinas. Já senti cheiro de queimado, muito forte, que sei que não é de queimar mato, colocar fogo em quintal”, relata Patrícia Maria Martins de Oliveira.

“A gente morava em Jacaraípe e, quando chegou aqui, sentiu muita diferença, não só do pó, mas também do barulho”, relata. O mirante, que também serviria de quarto de dormir, emoldurado pelas estrelas, perdeu a função, em virtude dos assustadores ruídos. “A gente parou de dormir lá”, lamenta o marido de Patrícia, o arquiteto e bambuzeiro Adilson Pereira de Oliveira.

Piorou muito

Se o barulho, especialmente nas áreas mais próximas do limite com a fábrica, incomoda bastante, é sobre o pó preto, indiscutivelmente, que recaem as maiores queixas. “Na minha infância e adolescência, não tenho essa lembrança de ficar preta de pó ou da minha mãe reclamar. Nem quando me casei e mudei pra casa que moro hoje. Piorou muito foi de alguns anos pra cá”, relata a professora Joice Mara Martins Lemos, nativa de Praia de Carapebus.

A filha, de três anos, sofre com alergia permanente contra o pó. O refúgio, quando o vento sul sopra e a saúde da criança se agrava, é a casa dos avós, em Jacaraípe, a cerca de 15 km dos muros da siderúrgica e do bairro natal. “Ela melhora quando vai pra Jacaraípe. Mas é só chegar em casa e volta”, relata a professora.

Quando a fuga não é possível, em função da rotina de trabalho do casal, o jeito é se enclausurar dentro de casa, fechando portas e janelas e marcando mais uma ou várias faltas da pequena na escola.

Infelizmente, a filha de Joice não é uma exceção à regra em Praia de Carapebus. “A maior parte das crianças da creche tem alergia”, afirma. “É só chegar o vento sul e muitas faltam aula”, emenda a também professora da creche e moradora local, Cecília Navarro. “Não é porque a temperatura cai, é por causa do pó”, sustenta Joice. Estudos que comprovem a relação entre o pó e a saúde dos pequenos são desconhecidos pelas educadoras. “Nunca viu nenhum estudo sobre isso”, lamenta.

Nem temperatura nem pressão do ar

O pequeno João, de três anos, é um dos casos mais graves. “Asma, bronquite, bronquiolite … os médicos já disseram que ele tem tudo isso”, conta a artesã Suellen Loyola Machado, sobre o filho João, de três anos, nascido em Carapebus. A mãe conta que a primeira pneumonia foi aos sete meses de idade e, numa das piores crises, o pequeno ficou internado por seis dias. “Queria ter oportunidade de estar com ele em outro lugar, sem tanto pó, pra ver se são mesmo a mudança de temperatura ou de pressão que provocam as crises quando chega o vento sul, como dizem os médicos”, desabafa. A considerar a estratégia usada pela família de Joice, porém, Suellen também deve chegar à conclusão que o problema trazido pelo vento sul no bairro é, na verdade, o pó preto.

Além das crianças, os idosos são outro grupo a sofrer mais intensamente com o pó preto cuspido das chaminés e varrido sobre as pilhas de carvão, minérios e outros “ingredientes” das panelas e fornos da siderúrgica. Haverá também partículas vindas dos pátios da mineradora, na face sul da Ponta de Tubarão? Ninguém no bairro sabe, a informação não chega e, se alguém sabe a completa composição do insustentável pó, não a revela à população.

“Minha mãe veio da Bahia me visitar, pra ficar um mês, e cuidar de mim depois de uma cirurgia. Mas não aguentou ficar oito dias. Tossia demais, ficou sem voz. Foi embora”, conta a doméstica Marivalda Santos de Jesus.

'Imagina dentro da gente!'

Longe, porém, de ser “privilégio” de idosos e crianças, o pó preto incomoda a todos. É um dos assuntos principais entre os moradores, nas rápidas conversas na padaria ou no ponto de ônibus. No vento sul, então, os lamentos são lançados ao vento, junto com o pó. “Só abro a casa um pouquinho de manhã, e fecho logo, pra não entra o pó”, descreve uma mãe enquanto espera o filho acabar o treino de futebol. “Passo pano três vezes por dia, com o vento sul”, reclama outra, no mercado. “Eu cheiro pó, pó, pó de minério…”, brinca um artista local, entoando antiga canção da extinta banda capixaba Nós Moscados. E por aí vai. Reclamações contra o pó se ouve a encher com a pá, igualzinho o próprio, preto, brilhante, terrível. “Se suja a casa assim, imagina dentro da gente”, assusta-se uma outra mãe.

O doutorando Maurício Alejandro, natural da Colômbia, estudante na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) por meio de um programa de interação entre os países da América Latina, ainda tem dificuldade de se adaptar, física e civicamente, com a emissão imoral de poluentes atmosféricos sobre a população. “De manhã sinto mais forte, quase não consigo respirar. Como fazer uma carta ou um pronunciamento para a prefeitura ou a empresa?”, pergunta, levantando outra faceta da poluição local: a falta de canais de comunicação para que a população reclame, receba informação, assistência. Sabe-se que eles existem, mas pouca gente os conhece.

É realmente difícil entender como o ser humano se adapta a situações tão desconfortáveis. Por mais frequente e consensual que seja a reclamação contra a poluição, não se vê nenhum protesto dos moradores, nenhuma insurgência. E a empresa, comodamente, também não toma qualquer iniciativa própria para pesquisar e reduzir os impactos negativos gerados por sua busca insaciável de crescimento de produção e lucros. Igualmente omisso é o poder público, só pra caracterizar dois dos atores sociais citados pelo estudante inconformado.

Os incomodados que se mudem?

Aliás, muitas vezes é mesmo preciso um olhar externo, de um estrangeiro, pra sacudir o comodismo de quem é sedado, ao longo dos anos e das décadas, com a misteriosa nuvem química de poluição. Misteriosa, não quanto à origem, há de se ressaltar, mas sim quanto à completa composição.

Diferentemente de outros bairros afetados por Tubarão, principalmente na capital, onde o tráfego de veículos e a construção civil acrescentam ainda mais particulados ao volume produzido pelas duas indústrias, em Praia de Carapebus, fica muito nítida a contribuição esmagadoramente majoritária do complexo minero-siderúrgico. “Quanto o vento é nordeste, a gente limpa a casa e ela fica limpa muitos dias. Mas é só virar o vento sul e o pó impregna tudo”, compara Joice.

A professora relata outro exemplo da incompreensão “estrangeira” quanto à passividade dos moradores diante de um de seus maiores problemas. “Fui ao posto de saúde e uma médica, nova aqui, estava indignada, passando mal com alergia por causa do pó, e perguntava: ‘Vocês não fazem nada? Isso é um absurdo!’”, relata a nativa. “A gente se acostuma”, reconhece.

Há quem não se acostume. O arquiteto Adilson conta que, além de não dormir mais no mirante da própria casa, planeja vende-la e se mudar de Carapebus. “Muita poluição, muito barulho”, reclama. 

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