“Não teve o representante desta Fundação sequer o cuidado de visitar as roças já em produção e pelo menos arguir os membros sobre suas atividades laborais (…). Trata-se de uma retomada quilombola e como tal está em processo de organização das residências”, relata Jurema.
O documento reafirma que os requerentes são nascidos e residem no Território Quilombola do Sapê do Norte, do qual “a comunidade rural intitulada culturalmente Córrego da Angélica” faz parte. E, com ela, “mantém laços familiares, econômicos, sociais e culturais”, nela labutando “dentro do princípio da produção familiar”.
O coordenador de Proteção ao Patrimônio Afro-Brasileiro, Tiago Cantalice, no entanto, em correspondência a Século Diário, reafirmou o posicionamento expresso durante a reunião do dia 5, detalhando as razões que levaram a Fundação a optar pelo arquivamento do processo de certificação da Comunidade Quilombola Córrego da Angélica.
“Antes de tudo é preciso trazer aqui a definição que o Decreto 4.887/2003 dá para comunidades remanescentes de quilombo: 'Art. 2º Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida'. Portanto, vê-se que a autodefinição é apenas um dos marcadores fundamentais para que uma comunidade seja assim reconhecida pelo governo brasileiro.
Para além deles, por meio da Portaria nº 98/2007, a Fundação Palmares definiu, em seu Art. 3º, os procedimentos que essas comunidades deverão adotar para a emissão da certidão de autodefinição como remanescente dos quilombos: 'I – A comunidade que não possui associação legalmente constituída deverá apresentar ata de reunião convocada para específica finalidade de deliberação a respeito da autodefinição, aprovada pela maioria de seus moradores,acompanhada de lista de presença devidamente assinada; II – A comunidade que possui associação legalmente constituída deverá apresentar ata da assembleia convocada paraespecífica finalidade de deliberação a respeito da autodefinição, aprovada pela maioria absoluta de seus membros, acompanhada de lista de presença devidamente assinada; III- Remessa à FCP, caso a comunidade os possua, de dados, documentos ou informações, tais como fotos, reportagens,estudos realizados, entre outros, que atestem a história comum do grupo ou suas manifestações culturais; IV – Em qualquer caso, apresentação de relato sintético da trajetória comum do grupo (história da comunidade); V – Solicitação ao Presidente da FCP de emissão da certidão de autodefinição'.
Registre-se que a maioria absoluta das comunidades são certificadas pela FCP tendo por base o atendimento desses procedimentos. Todavia, casos excepcionais, exigem a realização de visita técnica, como informa o §2º, desse mesma artigo: “A Fundação Cultural Palmares poderá, dependendo do caso concreto, realizar visita técnica à comunidade no intuito de obter informações e esclarecer possíveis dúvidas.”
A razão que levou a FCP a realizar visita técnica a Córrego da Angélica foi comunicação feita pelo INCRA/ES de que Córrego da Angélica pretendia reivindicar território já em processo de titulação em benefício de outras comunidades da região, bem como que os quilombolas que ali viviam são originários de outras comunidades da região, além da presença de famílias não quilombolas.
Por isso, em 05 de maio do ano corrente, realizamos visita técnica e oitiva junto à comunidade Córrego da Angélica, acompanhados por dois coordenadores nacionais da CONAQ, que são também coordenadores regionais da Comissão Quilombola de Sapê do Norte, a Sr.ª Kátia Penha e o Sr. Domingos Firmiano dos Santos (Chapoca).
Desde o início, os coordenadores da CONAQ e eu destacamos o respeito e o reconhecimento da legitimidade da luta da comunidade Córrego da Angélica pelo acesso à terra, ao mesmo tempo em que frisamos a especificidade do processo de regularização fundiária quilombola, que se inicia, via de regra, após a certificação emitida pela FCP.
A comunidade contou que ocupou a área que antigamente era usada pela Fibria (empresa de celulose), por se encontrar abandonada há cerca de 07 anos, portanto improdutiva. A terra retomada, antes usada para o plantio da monocultura de eucalipto, deu lugar a roças, responsáveis pela subsistência das famílias que ali habitam.
Explicaram que não há sobreposição com o território da comunidade remanescente de quilombo Córrego do Alexandre, que já possui processo de titulação aberto no INCRA-ES, com Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) já concluído, e que nunca pleitearam ou pensaram em disputar qualquer área desse território. Relataram que, apenas, cercaram uma área de Córrego do Alexandre contígua às terras de Córrego da Angélica que estavam sendo ameaçadas por grileiros.
Quando solicitei à liderança da comunidade Córrego Angélica, Sr.ª Jurema Gonçalves e aos outros ali presentes, que descrevessem um pouco a história da comunidade e as famílias que deram origem a ela, bem como as pessoas que servem como referência para ela, foram citados os nomes de pessoas já falecidas, mas majoritariamente de pessoas ali presentes. Todos, contudo, foram uníssonos ao afirmar que a pessoa mais velha ali e que conhecia toda a história de Córrego da Angélica era o Sr. Getúlio dos Santos.
Todavia, o relato feito por ele confirmou a segunda parte da suspeita levantada pelo INCRA/ES. O Sr. Getúlio foi categórico ao afirmar que aquelas pessoas não eram dali, nem tinham ligação com as famílias da região. Logo após isso, vários dos presentes informaram sua origem. Com isso confirmou-se que, de fato, as famílias não possuem trajetória histórica ou relações específicas com aquele território, tal qual preconiza o Decreto nº 4887/2003, pois ora são oriundos de outras comunidades remanescentes de quilombo, como Córrego do Alexandre, Linharinho, Roda D’água, etc., ora não têm vínculo qualquer com a identidade quilombola.
O fato de alguns serem oriundos de outras comunidades já certificadas como remanescentes de quilombo, gerou a expectativa de direito à certificação da Comunidade Córrego da Angélica. Porém, pelo que vimos e ouvimos, considerando a origem daquelas pessoas, o não reconhecimento por seus supostos pares e o próprio processo de retomada, por eles descrito, não há segurança administrativa ou jurídica para que esta FCP dê continuidade a seu processo de certificação. Não obstante, e reconhecendo a legitimidade da luta pelo acesso à terra, foi-lhes recomendado que iniciassem junto à Superintendência Regional do INCRA no Espírito Santo o processo de inscrição no Programa Nacional de Reforma Agrária.
A outra alternativa apontada foi a de que, após consenso interno, seja apresentada proposta à comunidade remanescente de quilombo Córrego do Alexandre para que, aproveitando que seu processo de titulação ainda encontra-se em aberto, incluísse as terras de Córrego da Angélica em seu território, o que depende do aceite da comunidade Córrego do Alexandre, mas também do próprio INCRA.
Por fim, registramos que aqueles que possuem origem quilombola, assim continuarão a ser, mesmo estando longe de suas comunidades e reunidos em outra que não é certificada. Identidade étnica não se mede pela proximidade ou distância de seu território e de sua comunidade.
Mas a comunidade Córrego da Angélica não poderá ser certificada como remanescente de quilombo, pois, como já dito, a relação estabelecida com o território não é de tradicionalidade, nem aquele grupo possui uma trajetória histórica própria, pois é constituído por pessoas de distintos locais, distintas comunidades, entre famílias quilombolas e não quilombolas.
É preciso deixar claro também que em nenhum momento falamos que a comunidade não tinha direito à certificação por não ser centenária, esse argumento não foi usado e nunca seria, pois lidamos com o modelo de quilombo preso no tempo, o que não passa de um estereótipo. A Fundação Cultural Palmares, em consonância com as discussões acadêmicas dos últimos 30 anos, compreende os quilombos contemporâneos como formas de resistência política e cultural à opressão histórica sofrida pela população negra, ao mesmo tempo em que para certificá-los precisa atuar amparada nos normativos jurídicos existentes, os quais definem claramente rito da certificação”.