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“ROBINSON CRUSOE” O DIÁRIO DAS VIRTUDES MERCANTIS
 
Daniel Defoe (1660-1731) aparece aqui como um improvisado romancista de quase sessenta anos, pois era reconhecido por suas crônicas políticas, e também autor de uma profusão de textos que envolvia diversos gêneros, e como nos diz Calvino: “Suas bibliografias mais completas reúnem quase quatrocentos títulos, entre libelos de controvérsias religiosas e políticas, poemetos satíricos, livros de ocultismo, tratados históricos, geográficos, econômicos, e romances”.
 
 
E o romance, quando chega pelas mãos de Defoe, tem aqui caráter original de projeto prático, de negócio, e que não abala, por conseguinte, o que virá a ser um tipo de, como nos diz Calvino: “autêntica bíblia das virtudes mercantis e industriais, a epopeia da iniciativa individual”. Numa ética ligada à ideia econômica da livre iniciativa, tem aqui ligação, também, biográfica com o homem que era Defoe, que era uma mistura riquíssima de pregador e aventureiro, que passa pelo comércio, homem de fábrica, que passa por bancarrotas, e é ainda fundador e conselheiro do partido whig que apoiava Guilherme de Orange, também fundando o jornal The Review, no qual configurava como seu único redator, e que lhe granjeou o título de inventor do jornalismo moderno, até que este homem multifacetado que era Defoe foi desembocar no romance.

 

Defoe faz o romance de Robinson não apenas como a narrativa que parte das aventuras do naufrágio e da ilha deserta, mas que avança até a velhice do protagonista, e que ganha aqui o caráter de uma pretensão moralista, de um gancho que envolve uma pedagogia rudimentar que se resume na obediência ao pai, a superioridade da condição média, da vida modesta sem saltos para grandes fortunas, e que é transgredida por Robinson, fazendo com que este entre em várias confusões.

 

Defoe escreve o romance com uma economia de recursos e um despojamento que supera o inchaço setecentista e o tal colorido patético que dominará a narrativa inglesa do Setecentos, com um Defoe sóbrio, e que na contenção dos recursos estilísticos age ao lado do estilo “de código civil” de Stendhal, podendo Defoe se encaixar aqui, portanto, em seu romance, no que Calvino vai chamar de “relatório comercial”.

 

E é em tal relatório comercial que teremos como que um catálogo de mercadorias e utensílios. O despojamento da narrativa de Defoe vem, ao mesmo tempo, ricamente detalhista nos pormenores, pois tal minúcia é um recurso de veracidade que visa convencer o leitor de tal, e que ganha por fim uma descrição ao paroxismo da importância de cada objeto, de cada movimento, e de todo o contexto que envolve a situação objetiva e a condição de náufrago. E nestas ricas descrições Defoe acaba por retratar a luta do homem com a matéria e a natureza, quando se fala do romance de Robinson Crusoe.  

 

Robinson Crusoe possui uma renúncia à tentação da autocompaixão ou também ao júbilo excessivo, e pula para questões práticas e bem manuais, e que no romance aparece como um grande contraste com a homilia que perpassa o trajeto do romance em que Robinson passa por uma doença que o leva ao caminho de volta ao pensamento religioso, mas que não deixa o caráter de retorno ao aspecto prático da vida do trabalho, esta que é a fonte objetiva da minúcia descritiva que domina a escrita de Defoe no romance e em outros escritos de sua autoria.  E aqui ainda temos as fontes que o narrador de aventuras Defoe vai buscar, quando das descrições de cenas de canibalismo, nas quais se pode evocar Montaigne, ou ainda A Tempestade de Shakespeare.
 
“CANDIDE” OU A VELOCIDADE
 
Candide não se nos apresenta, quando se fala de seu fascínio, como apenas um conto filosófico, em que se confrontam teses, ou ainda não se trata, também, ou apenas, de uma sátira com roupagem filosófica, mas sim uma estória que tem um ritmo, em que os acontecimentos ganham uma velocidade vertiginosa no tempo (eventos) e no espaço (geografia). A sucessão de eventos envolve uma série da vertigem que tem tudo de desgraças, suplícios e massacres, e vem Calvino nos lembrar que “bastam as três páginas do capítulo VIII para que Cunegundes se dê conta de como, tendo tido pai, mãe, irmão esquartejados pelo invasores, tenha sido violentada, destripada, curada, reduzida a lavadeira, transformada em objeto de negociação na Holanda e em Portugal, dividida em dias alternados entre dois protetores com profissões de fés diferentes, e assim tenha acabado por assistir ao auto-de-fé que tem como vítimas Pangloss e Cândido e por reunir-se a este último”.

 

Tal efeito de vertigem na sucessão dos acontecimentos em Candide de Voltaire ganha muitas vezes uma aceleração de ritmo que chegam ao absurdo, tal como quando diz Calvino “a série das desventuras já velozmente narradas em sua exposição por extenso é repetida num resumo de provocar tonturas”. E em Candide temos um grande cinematógrafo mundial, pois quando se fala em espaço aqui falamos também de uma geografia que dá voltas no mundo, e que, como nos diz Calvino “leva Cândido da Vestefália natal até a Holanda, Portugal, América do Sul, França, Inglaterra, Veneza, Turquia e se espalha nas voltas ao mundo supletivas das personagens coadjuvantes, homens e sobretudo mulheres, fáceis presas de piratas e de mercadores de escravos entre o Gibraltar e o Bósforo”.

 

Também aqui em Candide temos um cinematógrafo dos eventos históricos, e que Calvino enumera o que são: “aldeias dizimadas na Guerra dos Sete Anos entre prussianos e franceses (os “búlgaros” e os “ávaros”), o terremoto de Lisboa de 1755, os autos-de-fé da Inquisição, os jesuítas do Paraguai que recusam o domínio espanhol e português, as míticas riquezas dos incas, e alguns flashes mais rápidos sobre o protestantismo na Holanda, a expansão da sífilis, a pirataria mediterrânea e atlântica, as guerras intestinas do Marrocos, a exploração de escravos negros na Guiana, deixando uma certa margem para as crônicas literárias e mundanas parisienses e para as entrevistas com os muitos reis destronados do momento, reunidos no Carnaval de Veneza”.

 

E diante de tal espaço geográfico vertiginoso, em que um mundo inteiro cabe em oitenta páginas, temos um destino que é mais caro a toda utopia, pois até aqui tudo era ruína e desgraça, o mundo que conhecemos da dor e do sofrimento, e que tem esta imagem de um mundo sábio e feliz que é Eldorado. E aqui a ligação entre a felicidade e a riqueza ou opulência pode ser ignorada, pois como diz Calvino “os incas ignoram que a poeira de ouro de suas estradas e as pedras de diamantes tenham tanto valor para os homens do Velho Mundo”, mas é neste mundo rico sem saber que Cândido encontra a tal sociedade sábia e feliz, lugar em que o otimista leibniziano Pangloss poderia enfim ter sua razão filosófica para o mundo como um todo confirmada, mas Calvino logo nos adverte: “acontece que Eldorado está escondido entre as mais inacessíveis cordilheiras dos Andes, talvez num farrapo de mapa : trata-se de um não-lugar, de uma utopia”.

 

E temos entre os personagens de Candide alguns que como diz Calvino “parecem feitas de borracha”, pois temos como exemplo Pangloss que definha com a sífilis, é enforcado, amarrado aos remos de um navio, e logo mais está ele vivo e livre. E temos então um encontro com o fundo filosófico ou visão de mundo de Voltaire, o autor. E aqui temos que ela não pode ser, como muitos pensam erroneamente, associada somente com a conhecida polêmica que visa criticar numa sátira o otimismo providencialista de Pangloss, pois o mentor que acompanha Cândido por mais tempo não é o infeliz pedagogo leibniziano, mas o “maniqueísta” Martin, que só vê o êxito do diabo nas coisas do mundo, como o oposto do inocente Pangloss.

 

Mas tal oposição entre Pangloss e Martin não tem um vencedor, pois Voltaire, o autor, deixa claro que não há uma explicação metafísica do mal, como fazem ambos os personagens citados, apontando uma outra origem, subjetiva, indefinível, e na qual não podemos medir nada, tendo então o credo revelado de Voltaire como anti-finalista, pois ele não é nunca Pangloss, nem tampouco, no entanto, Martin, pois aqui Voltaire se encontra com o fundo teológico de Pascal, pois se Deus tem um fim, tal é insondável, vendo-se, por conseguinte, Voltaire como um voluntarista no seu racionalismo ético.  

 

E se estamos diante de uma sucessão de desastres intermináveis e insuportáveis pelo trajeto da narrativa de Voltaire, sempre há lugares piores para conhecer, o mal é infinito, e seu jugo é o sofrimento, mas aqui temos então um riso ou uma pequena alegria, diante dos cenários de tortura, a vida rápida e extremamente limitada do homem sempre tem alento no que é menos pior, há alguém que pode estar mais infeliz que nós, contudo, como nos diz Calvino, em Candide, por exemplo, “quem por acaso não tivesse nada de que se lamentar, dispusesse de tudo o que a vida pode oferecer de bom, terminaria como o senhor Pococurante, senador veneziano, que está sempre olhando para os outros com soberba, encontrando defeitos onde deveria achar apenas motivos de satisfação e de admiração. A verdadeira personagem negativa do livro é ele, o aborrecido Pococurante; no fundo, Pangloss e Martin, mesmo dando respostas insensatas às perguntas, se debatem nos tormentos e riscos que constituem a substância da vida”.

 

E Calvino prossegue: “A submissa veia da sabedoria que aflora no livro por meio de porta-vozes marginais como o anabatista Jacques, o velho inca, e aquele savant parisiense que se parece muito com o autor, se declara por fim pela boca do dervixe na famosa moral do: cultivar nosso jardim”. Aqui isso também nos diz de uma utopia, e que a voz da razão no Candide também é ela toda utópica. Uma frase do Candide que obteve, por fim, êxito e muito sucesso, virando praticamente um provérbio. Por fim, o julgamento do homem não se dará mais por um bem ou mal transcendentes ou metafísicos, há uma virada tanto epistemológica como ética, com as escolhas humanas sendo geradas agora por um mundo prático da ação cotidiana, num novo mundo de trabalho e produção material.
 
DENIS DIDEROT “JACQUES LE FATALISTE”
 
Diderot consegue com seu romance Jacques, o Fatalista, figurar como um dos pais da literatura contemporânea, pois em Jacques o autor Diderot inverte valorações do romance tradicional, já que ao invés de se harmonizar com o leitor, fazendo com que este esqueça que está lendo e viva a estória que é contada, Diderot impõe uma tensão e um conflito entre o autor que está contando sua história e o leitor que se debruça sobre esta, e tal que é em Diderot a passagem da leitura de aceitação passiva para o questionamento contínuo que desperta o espírito crítico, no que Diderot faz algo em Jacques que antecipa um pouco o que Brecht viria a fazer no teatro, mas no caso de Brecht seria com intenção didática, ao passo que Diderot quer alcançar um despojamento crítico do leitor para livrá-lo de preconceitos.

 

E num jogo de possibilidades abertas pelo romance de Diderot temos aqui um caminho narrativo que engana o leitor para depois demonstrar que tal caminho que a narrativa toma seria o único possível. E podemos ainda caracterizar Jacques como quase indefinível pela teoria literária, podendo ser encaixado talvez com o que Bakhtin chamará de “conto polifônico” ou “menipeu” ou “rabelaisiano” : ou seja, um mundo que não é linear, mas que ainda assim possui uma lógica, num tipo de narrativa livre e errante, antípoda do gosto setecentista francês. E que, como nos esclarece Calvino: “A anglofilia literária foi sempre um estímulo vital para as literaturas do continente; Diderot fez dela sua bandeira na cruzada pela “verdade” expressiva”.

 

Diderot faz a descrição de um mundo calcado em relações humanas que são como implicações recíprocas de qualidades individuais, mas que ainda possuem os tipos sociais que os definem, mas tais papéis sociais não esmagam as relações tais quais elas se dão na narrativa, e quanto ao fatalismo do qual Jacques se faz porta-voz (tudo aquilo que acontece estava escrito no céu), não o colocam numa zona de passividade, pelo contrário, o jogam para uma ação de iniciativa e uma prática volitiva vigorosa. Os diálogos filosóficos de Jacques com o patrão, no entanto, são rudimentares, e que remetem de modo esparso às famosas concepções da necessidade tanto em Spinoza como em Leibniz.

 

Aqui Diderot vai contra Voltaire, este que polemiza com Leibniz em Cândido ou Do otimismo, ao passo que Diderot em Jacques, o Fatalista, vai pelo caminho de afirmar a visão filosófica de Leibniz e também de Spinoza. Diderot descobre que é num mundo determinista que as forças volitivas podem se afirmar com mais vigor, a necessidade tornaria a liberdade individual mais eficaz ao vencer esta barreira de um mundo duro e rígido. Tal determinismo que antecipa os passos do conhecimento novo na biologia, na economia, no estudo da sociedade, e por fim no estudo da psique. Mas, como diz Calvino: “Contudo, não se pode absolutamente dizer que Jacques, o Fatalista “ensine’ ou “demonstre” isso ou aquilo. Não existe axioma teórico que coincida com as variações e arrancos dos heróis diderotianos (…) reconhecemos a concisão setecentista que se choca com o pathos romântico do imprevisto e do destino como acontecerá em Kleist”.

 

E, por fim, mais uma vez Calvino, por aqui finaliza: “Se Jacques é o anti-Candide, é porque pretende ser o anti-conte philosophique (…) A escritura livre de Diderot se opõe tanto à “filosofia” quanto à “literatura”, mas hoje aquela que nós reconhecemos como a verdadeira estrutura literária é justamente a sua. Não é uma casualidade que Jacques e seu amo tenha sido recentemente “refeito” sob forma teatral e moderna por um escritor inteligente como Milan Kundera. E que o romance de Kundera, A insustentável leveza do ser, o revele como o mais diderotiano dos escritores contemporâneos por sua arte ao mesclar romance de sentimentos, romance existencial, filosofia, ironia”.
 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor

Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com 

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