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Crônica à maneira de Rubem Braga

Vejam só o que a vida nos ensina em mais um inverno de nossas existências: à temperatura de 15ºC ou menos, os carrapatos ficam inativos. Hibernam, como fazem diversos seres vivos deste planeta sui generis. Mas isso só ocorre com os carrapatos bovinos, cujo nome científico  tem algo de nobre: Rhipicephalus (Boophilus) microplus. Já os carrapatos do poder da república, com nomes bastante triviais, não descansam em nenhuma das estações do ano.
 
Os carrapatos bovinos param no frio mas não desistem. Mal finda o inverno, em setembro, já  atacam novamente, depois de uma temporada no solo, onde as carrapatas depositam seus ovos, após cair, repletas de sangue, do couro dos bovinos, onde ficam sugando por cerca de 21 dias. Cada fêmea põe até 3 mil ovos por postura. É aí que está o perigo.
 
Dá-se então o seguinte, contam os veterinários: quando estão do tamanho da cabeça de um alfinete, as larvas dos carrapatos sobem do chão para a ponta dos capins e arbustos do campo, onde ficam esperando carona de um quatro patas. Conseguindo embarcar, logo se instalam no couro (gostam muito do pescoço) e vão sugando até completar o ciclo de crescimento — 21 dias, durante os quais os carrapatos fecundam as fêmeas e todos vão parar no chão, redondamente nutridos pelo sangue da boiada.   
 
A cada estação surge uma nova geração de carrapatos. Da primavera ao outono, passando pelo verão, os carrapatos enfraquecem o gado e causam prejuízos de bilhões em carne e leite que deixam de ser produzidos (pesquisadores do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais andaram fazendo umas contas e concluíram que o carrapato provoca um prejuízo anual de cerca de 3 bilhões de dólares na produção de carne e de 1 bilhão de dólares na produção de leite).
 
Além disso, os carrapatos transmitem a tristeza parasitária bovina, uma doença que aniquila os animais, caso não seja tratada logo que se apresenta. Para a chamada TPB não tem vacina. Na Embrapa estão tentando descobrir uma, mas por enquanto nada. O carrapato existe em todo o país, mas é no Rio Grande do Sul que ele causa mais dor de cabeça. Não no inverno, mas nas outras estações do ano.
 
Voltemos ao solo onde são depositados os ovos. Se não arranjam um hospedeiro, os carrapatinhos-cabeça-de-alfinete morrem em dois, três meses. Mas há quem diga que eles podem durar até três anos no solo.
 
Por isso a estratégia dos fazendeiros é impedir que os carrapatinhos se agarrem aos seus animais. Uma das saídas é roçar os campos. Outra, implantar lavouras de arroz, milho, trigo ou soja. Em campo com lavoura, os carrapatos não têm vida fácil.
 
Por fim há uma saída genética que vem sendo praticada nas últimas décadas: azebuar os rebanhos. Como? Fazendo cruzamentos entre gado europeu (angus, hereford, devon, Jersey, holandês) com o asiático (nelore, gir). Isso porque o gado zebu, trazido da Índia há 100 anos, possui certa resistência ao carrapato. Resistência, não imunidade.
 
O prezado leitor já deve ter notado como é vistoso o couro de um nelore. Brilha ao sol. Numa sala, é tapete esplêndido. Pois esse lindo animal branquelo, que tem o corpo adornado por um cupim e uma barbela, possui certa aptidão para beliscar-se de dentro para fora. Ele contrai o couro no ponto onde o parasita tenta se instalar. É o que os economistas e afins chamariam de “vantagem comparativa” do zebu. 
 
Já um angus ou um hereford, ambos de origem inglesa, são menos eficientes no tal movimento epidérmico de repelir os insetos. Além disso, são peludos, o que facilita a vida do carrapato, que pertence à espécie dos ácaros, criaturinhas especializadas em viver grudadas nos seus hospedeiros, sejam animais ou vegetais. “Pragas”, diria alguém com baixa cultura ecológica. Baixaria semelhante comete quem diz que certas plantas invasoras das lavouras são “ervas daninhas”, algumas das quais produzem chás milagrosos para os animais humanos.  
 
Pode ser também que os animais de raças europeias tenham um sangue mais apetitoso para os carrapatos. Talvez algum dia se descubra porque os ácaros sugadores de sangue se dão melhor no gado europeu do que no asiático.
 
Carne por carne, o zebu não tem o maior atributo do gado europeu: o “marmoreio” tão apreciado pelos paladares mais exigentes. (O neologismo aspeado na frase anterior foi presumivelmente inventado por alguém diante de uma chuleta que continha uma picante mescla de gordura e carne, daí lembrar certos aspectos do mármore). 
 
Pois a verdade é que hoje em dia há no Brasil milhares de fazendeiros praticando o chamado cruzamento industrial, ou seja, cruzam animais taurinos e zebuínos, obtendo híbridos de carnes mais macias e com maior resistência ao carrapato Boophilus (“amigo do boi” em latim).
 
Digamos então que o pessoal da pecuária está fazendo uma ponte genética que liga Bagé a Uberaba mas alcança também Campo Grande e Paragominas. Os mais abonados conseguem esticar essa ponte até o Texas, onde surgiu o brangus, variedade bovina resultante do cruzamento do angus europeu com o brahman asiático.
 
Claro que o Brasil não fica atrás nesse item. Para fins leiteiros, foi criada aqui a variedade girolando, cruzo do indiano gir com a raça holandesa, que deu ao mundo a Mercedes-Benz do leite (poderíamos dizer que a raça jersey inglesa é o Volks do mundo lácteo). Já para fins de carne, temos o braford (brahman + hereford) e outros como o tabapuã. Onde se vai chegar ninguém sabe com isso, mas não foi à toa que o Brasil se tornou um grande exportador de carnes bovinas. A diversidade de ambientes é um dos trunfos da agricultura brasileira. Falta tomar cuidado com os ácaros-vampiros.
 
Como os ratos, os pernilongos, as baratas e as formigas, os carrapatos sobrevivem aos venenos formulados para eliminá-los. Há cepas de carrapatos que desenvolveram resistência aos carrapaticidas. Um problemão semelhante ao criado pelos vírus da gripe e as bactérias de diversas infecções.  
 
 
LEMBRETE DE OCASIÃO
 
“O problema da criação vacum não é produzir uma rês grande nem bonita, segundo o gosto variável de cada um; é transformar pasto e água em ouro; portanto, melhor raça é aquela que na mesma área de terreno deixar maior saldo líquido.”
 
J.F. de Assis Brasil (1857-1938), fazendeiro, diplomata e político nativo do pampa gaúcho

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