A ORIGEM DE MARTÍN FIERRO
Martín Fierro, obra canônica e marco cultural da literatura e vida simbólica e histórica da Argentina, é um poema narrativo, operado no tradicional e mais rústico metro octossílabo e composto em estrofes de sextilhas, um poema escrito por José Hernández em duas partes: a primeira, conhecida como “Ida” ou “El gaucho Martín Fierro”, impressa em 1872, e a segunda parte que se chamou “La vuelta de Martín Fierro”, que saiu em 1879.
Em sua intenção original o poema era uma crítica ao modo arbitrário de recrutamento dos soldados para o exército, no que temos, no entanto, a formulação de uma obra representativa da Argentina como nação, sendo, com tanto mais razão, a obra literária mais importante da Argentina, e que se tornou uma das obsessões temáticas da obra de outro autor argentino, Jorge Luis Borges. Este que, por sua vez, traça um esboço biográfico de José Hernández, e parte deste ponto para avançar na discussão da que veio a ser chamada poesia gauchesca, cujo inventor é colocado historicamente como Bartolomé Hidalgo, de Montevidéu, em 1812, numa diferenciação que se fará desta poesia da que era denominada poesia dos gaúchos, a que era praticada pelos chamados payadores.
A poesia gauchesca está relacionada a homens urbanos, escritores tradicionais, de gabinete, que passam a subsumir os costumes e o linguajar dos pampas, ao passo que a poesia dos gaúchos era o canto dos payadores, sem a afetação carregada de artificialismos que vai caracterizar a poesia gauchesca. E em Martín Fierro, Borges aponta que o poema tem dois movimentos, um dos pampas, da vivência gaúcha, e outro dos artifícios de veia mais estilizada e existencial, até genérica, e o poema que tem, também segundo Borges, tanto a reprodução da tradição dos gaúchos, como opera uma renovação desta tradição.
A CRÍTICA DE MARTÍN FIERRO
E temos que as leituras de Martín Fierro foram intensas e variadas, com mudanças bruscas de direção, sendo o movimento mais importante, visto na perspectiva atual, a leitura borgiana que se tornou um novo tipo de standard quando nos referimos a uma das últimas e inovadoras leituras do Martín Fierro. Mas em José Hernández, seu feitor original, temos uma verdadeira peripécia, que tornou esta obra canônica e a memória viva da nação argentina, configurando um dos cernes da história da literatura argentina. As suas duas partes, El gaucho Martín Fierro, de 1872, e La vuelta de Martín Fierro, de 1879, começaram a ser publicadas como simples livretos, no que durou trinta anos, mas que foram um verdadeiro sucesso comercial, sendo então reunidas e publicadas em livro em 1910, que é quando se abre o caminho para tornar a obra a principal referência literária da cultura argentina.
E é na década da publicação do Martín Fierro em livro que começa também a fortuna crítica da obra, abrindo este caminho as interpretações de Ricardo Rojas e Leopoldo Lugones, que colocam a obra como uma epopeia do povo argentino, a maior obra literária da Argentina, retrato original da vivência dos pampas. E que tem ruído e divergência numa outra leitura que será feita, por exemplo, por Calixto Oyuela, e que se ampliará na leitura monumental que fará Ezequiel Martínez Estrada, no que temos o questionamento das virtudes supostamente heroicas do personagem Martín Fierro, ainda mais quando este era tomado como um paradigma do gaúcho, divergência que abrirá uma nova leitura crítica do caráter do personagem, mas que mantém intacto, contudo, o valor literário da obra.
A LEITURA BORGIANA DO MARTÍN FIERRO
É nas décadas de 1940 e 1950, por conseguinte, que Jorge Luis Borges fará a sua leitura nova em todos os sentidos da obra do Martín Fierro, numa manobra de reinterpretação complexa e polêmica, no que temos uma mudança tão radical, que a visão da obra muda completamente e de forma definitiva, trabalho crítico borgiano que vai do ensaio e se consuma sob a forma do conto, neste caso com as narrativas que comporão seus contos hernandianos, que são então “Biografía de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874)” e “El fin”, e seus contos gauchescos, que são, por sua vez, “La otra muerte”, “El Sur”, dentre outros.
Borges modifica por completo o Martín Fierro, uma reescritura que coloca a questão do heroísmo do personagem, entre um julgamento moral que oscila entre o herói virtuoso ou apenas um desertor briguento e hipócrita, e se coloca, portanto, a mudança do paradigma Martín Fierro, este que era então também o paradigma gauchesco, do homem dos pampas, e que como personagem paradigmático passa por uma revisão poderosa pela leitura, crivo e também, por fim, invenção e reinvenção borgiana.
CANONIZAÇÃO E PARADIGMA
Leopoldo Lugones, por sua vez, colocava a perspectiva de que houve com Martín Fierro uma mudança radical de status moral do gaúcho, que passou de um ser imerso na barbárie para um modelo nacional, o homem dos pampas como o representante da nação argentina, o paradigma literário como sendo Martín Fierro, este sendo então, por sua vez, modelo do paradigma cultural argentino, o gaúcho. E aqui temos a canonização de Martín Fierro, na literatura e na cultura argentinas, com Lugones colocando enfim Martín Fierro como a epopeia do gaúcho e do povo argentino. Era o ano de 1913.
Contudo, temos na leitura borgiana uma mudança nesta visão canônica e paradigmática do personagem, numa rejeição da categoria epopeia para a obra Martín Fierro, termo consagrado na leitura de Lugones, com Borges explorando as falhas de caráter de Martín Fierro, como um método de desnudamento do então herói argentino, numa nova abordagem mais complexa, que vai denunciar o artificialismo da literatura gauchesca, como um gênero construído e não como fenômeno cultural espontâneo e vivencial, mas sim como uma forma literária elaborada como toda literatura de gabinete foi criada, não sendo, portanto, nesta leitura borgiana, o Martín Fierro uma voz popular da cultura argentina.
Isso fica mais claro quando Borges recapitula toda a história que veio antes de Hernández, que tem figuras como Ascasubi e Hidalgo, eclipsados que foram pelo fenômeno Martín Fierro. Com Borges, por fim, denunciando o personagem Martín Fierro, mas mantendo intacto o valor da obra em si, pois o que Borges faz, sobretudo, é uma mudança da perspectiva histórica do então herói argentino, passando da visão de epopeia para a de romance em verso, sendo então uma mudança no status do personagem e, por fim, do modelo literário que está em questão.
CONCLUSÃO
O poema Martín Fierro nos aparece como uma forma original que vem para denunciar as desventuras do gaúcho, vira forma canônica, paradigma, é exaltado como epopeia, voz do povo argentino, passa por uma revisão brutal no ensaio borgiano, e que se consuma na sua reinvenção no conto borgiano, Martín Fierro em Borges tem o tempo todo o seu caráter heroico posto em questão, mas o que fascina e se valoriza na abordagem borgiana da obra é o código de honra que governa o personagem e a vivência dos pampas, Borges permanece em sua obsessão literária pois ao fim valoriza a obra literariamente, e no aspecto de um heroísmo falho e violento, enxerga ali um código forte, que não por acaso erigiu a memória argentina na sua obra mais importante e representativa, o Martín Fierro.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor
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