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O cartão virou um balcão de negócios’, afirma procurador da República

“O cartão virou um balcão de negócios”, afirma o procurador da República em Linhares, Paulo Henrique Camargos Trazzi, referindo-se ao cartão de auxílio emergencial distribuído pela Samarco/Vale-BHP, por meio da sua Fundação Renova, aos atingidos pelo rompimento da barragem da mineradora em Mariana/MG, no dia cinco de novembro de 2015.

O atropelado processo de cadastramento dos atingidos pelo maior crime socioambiental da história do pais – e o maior do mundo no universo da mineração – não funciona, na avaliação do procurador, por duas razões principais: a falta de foco no atingido, que contamina todos os programas da Renova, e a estratégia de “dividir para conquistar”.

Utilizada nas guerras e na política desde os Impérios da Antiguidade – e aspecto indissociável do comportamento de todas as indústrias, ao se relacionarem com as populações impactadas por suas atividades ou crimes –, a estratégia consiste em semear a discórdia entre o inimigo, dividindo-o em grupos rivais entre si, enfraquecendo-os em sua luta comum.

O inimigo da Samarco/Vale-BHP, neste caso, são os atingidos pelo seu crime e a tsunami de 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração, que continuam vazando da Barragem de Fundão, acentuando uma contaminação crônica e crescente do Rio Doce por metais pesados, comprometendo seriamente a qualidade da água e do pescado também ao longo de todo o litoral do Espírito Santo, norte do Rio de Janeiro e sul da Bahia.

“Tanto o cadastro quanto o cartão são usados com essa finalidade”, afirma o procurador, relatando casos diversos de pessoas de uma mesma comunidade ou até de uma mesma família que ameaçam umas às outras, devido a rumores de intrigas de que um vizinho prestou depoimento contrário à sua aceitação no cadastro de atingidos ou outras situações similares.

“É uma questão muito grave”, acentua Paulo Henrique. Percebe-se, até hoje, passados dois anos, protesta, “graves problemas por parte dos trabalhos da Renova nos cadastros que são feitos; nos resultados dos cadastrados, que não condizem com as respostas; na distribuição equivocada dos cartões; e no reconhecimento inadequado de algumas comunidades, especialmente em São Mateus”.

Da milenar estratégia de guerra de desestabilizar o inimigo, emerge a segunda característica essencial da atuação dos autores do crime, que é “a concepção da Samarco de não assentar o foco no atingido”, gerando “uma série de problemas que contaminam todos os programas da Renova”. “Por isso que ‘nada anda’”, critica o procurador. “Só com foco no atingido é que podemos evoluir nesse caminho”, enfatiza.

Traduzir o sentimento

E esse foco passa por uma espécie de tradução técnica de sentimentos, ou seja, transpor para uma linguagem técnica e jurídica, o drama relatado pelos atingidos. No trabalho de levantamento socioeconômico – junto com o Ministério Público Estadual e as Defensorias Públicas do Espírito Santo e da União – são realizadas reuniões ao longo de todo o litoral, de Aracruz a São Mateus, apresentando às comunidades o seu direito a uma assessoria técnica, previsto no acordo feito entre empresas, a União e os governos estaduais, o Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), em fevereiro de 2016.

A assessoria técnica provê profissionais de confiança dos atingidos, escolhidos por eles, para fazer o diagnósticos sobre os danos, trazendo “elementos que traduzam o sentimento dessas comunidades em linguagem técnica e cientifica”, diz o procurador. “A assessoria técnica ouve e transforma os relatos em dados que podem ser usados tecnicamente, juridicamente, nas reparações”, explica.

“Nosso entendimento é que nenhuma pessoa de fora, que não vivencia a vida nas comunidades, pode afirmar quem é atingido e como as pessoas sofrem. É preciso dar voz a essas pessoas”, acentua o procurador.

O trabalho tem nova previsão de encerramento para o dia 16 de novembro próximo, sendo essa a segunda prorrogação do prazo inicial, previsto para 30 de junho. O motivo é a complexidade do estudo, que envolve dezenas de especialidades científicas, e o nível de participação social pretendido. “Talvez seja inédito no nível de participação social desse trabalho”, destaca.

Ao ser concluído, o levantamento socioeconômico vai se somar a outros dois, já finalizados: socioambiental e de revisão dos trabalhos já desenvolvidos pela Renova. Os três levantamentos estão previstos em um Acordo Preliminar celebrado entre o Ministério Público Federal e as empresas, em janeiro deste ano.

O objetivo é embasar o estabelecimento de um Acordo Final (Termo de Ajustamento de Conduta Final – TACF), para a realização de diagnósticos completos, sobre os mesmos três temas: socioambiental, socioeconômico e revisão dos trabalhos da Renova. O Acordo Preliminar prevê ainda a atuação do Banco Mundial, ou outra entidade a ser definida, para coordenar os trabalhos das três empresas, juntamente com o MPF.

Caso as empresas não aceitem celebrar o Acordo Final, com base nos levantamentos em curso no Acordo Preliminar, o MPF garante que irá judicializar a questão. Esses acordos são um desdobramento da ação civil pública impetrada pelo MPF em maio de 2016, que estima em R$ 155 bilhões o valor preliminar da reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem em Mariana, bem acima dos R$ 20 bilhões estabelecidos pelo TTAC em curso, feito com a União e os governos.

Valores e soluções

“A verdade é que, até hoje, nenhum de nós pode afirmar o que de fato está acontecendo em termos de atendimento aos atingidos e de reparação de danos socioambientais”, aponta o procurador da República.

A escuta e tradução técnica do clamor dos atingidos têm objetivo também de lhes incentivar uma postura proativa na solução dos problemas. “Não se pode monetarizar tudo, tem que se pensar também em soluções, mas soluções que partam das comunidades”, diz Paulo Henrique. A Assessoria Técnica irá ajudar, fazendo uma análise de mercado, por exemplo, sobre a viabilidade ou não de uma atividade econômica proposta por uma comunidade para substituir uma fonte de renda tradicional inviabilizada pelo crime.

Nesse ponto, o procurador toca numa triste realidade: nem tudo pode ser reparado ou compensado financeiramente, há feridas que nunca serão curadas totalmente, sendo necessário encontrar opções de convivência com elas.

A questão dos pescadores é exemplar, pois não há qualquer referência segura ainda que permita prever quando – ou se algum dia – será possível a pesca artesanal, no Rio Doce, nos manguezais e litoral do Espírito Santo, voltar aos patamares anteriores à data do crime.

“Não somos nós Ministério Público ou Renova e Samarco que vão dizer se a solução é A, B ou C. Já foi proposto treinar todo mundo pra ser padeiro ou pedreiro … quem somos nós pra decidir?”, questiona o procurador. “As comunidades é que devem decidir o seu futuro”.

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