O CARÁTER GERAL DA LITERATURA DE BORGES
Jorge Luis Borges é um homem enciclopédico, não lhe faz falta uma biografia espetacular ou pirotécnica, é um homem dos livros, escritor de uma biografia discreta, e que tem na sua literatura o encontro entre a literatura europeia pretensamente universal com a literatura regional argentina numa versão híbrida que é como algo que surge de uma leitura original e refeita destes caminhos que em Borges são encontro entre universos diferentes e invenção de uma terceira linha literária no que tange ao seu aspecto cultural, e uma nova literatura no que se refere aos temas borgianos e seu jogo de ilusão entre falso e verdadeiro tanto em seu conteúdo como em sua experiência formal.
Não se conhece, portanto, uma vida do escritor Borges fora da sua história com os livros que leu e escreveu, sua experiência precípua é literária por excelência, Borges consuma sua história como vivente em sua realização pela literatura. Borges então traça uma história que passa por apropriações literárias que vão de Quixote, também quando reescreve aos nove anos um conto de Oscar Wilde, e suas obsessões que iam por Chesterton, Kipling, Stevenson, com traduções que ele faz de Kafka, Faulkner e Virginia Woolf. Por fim, do lado argentino, temos um Borges que torna a poesia gauchesca uma coisa para ele bem familiar, e Borges também nutria interesses alternativos por escritores pouco conhecidos, marginais ou menores.
Borges, por sua vez, também é um escritor sobretudo argentino, para além de sua figura enciclopédica e de erudição universal, e fruto de seu interesse diverso, em que a cultura regional argentina aparece com o mesmo peso na literatura borgiana do que qualquer inspiração ou influência europeia, por mais pretensamente universal que esta seja na cultura geral divulgada pelo mundo. Isto é, o destaque que supostamente teria o apelo europeu na literatura borgiana não ofusca o brilho que tem a cultura periférica dos argentinos em Borges, ele mesmo argentino, o que é talvez uma constatação óbvia ou uma consequência natural de um escritor que tem relações de identidade e não somente de erudição, como é o caso de Borges.
E o caminho de Borges na literatura então parte desta busca original de uma voz regional argentina, a descoberta ou redescoberta, ou no caso borgiano, uma invenção de uma literatura de um país culturalmente periférico como era a Argentina. E a face dupla borgiana, a que está entre a periferia argentina e o centro universal forçosamente europeu, constitui-se também no trajeto cronológico da obra borgiana, mas como uma terceira literatura que não se instala em nenhum destes dois territórios de forma literal, pois Borges opera nas bordas culturais para ter a sua própria voz, e tem êxito, criando ou inventando a sua literatura e não a de outra matriz cultural.
Portanto, a literatura borgiana não se fecha na interpretação de um início regional, de criollismo vanguardista, ou na sua produção que começa nos anos 1940, numa erudição ciclópica de contos, falsos contos, ensaios e falsos ensaios. O cruzamento se dá entre tradições ocidentais e de algumas que Borges conheceu do Oriente, encontro que vai se dar no espaço rio-platense, mas com Borges operando um fruto novo e original neste trabalho literário todo seu. Borges então é mais que um híbrido formal ou cultural, ele é algo novo na literatura.
Borges é um gênio que não restringe sua literatura como um instrumento regionalista de cor local ou bairrista, ele é um ficcionista muito mais do que um êmulo cultural, e todas as suas operações culturais se dão no espaço próprio da ficção e do ensaio, seja este um conto verdadeiro ou falso, ou um ensaio sobre uma literatura real ou inventada, pois Borges faz ficção e crítica sem ser um representante de uma aldeia ou de uma erudição universal, seu lugar é literário mais do que um reflexo puramente de um jogo cultural entre a Argentina regional e periférica e o pretenso universalismo europeu.
Sua herança cultural da Argentina não lhe faz ser um particularista em sua literatura, pois se apropria dos dados e códigos das culturas europeia e argentina de um modo próprio, em que se realiza nesta dupla face, esta em que há reflexos de um passado argentino sim, mas repaginado borgianamente, como invenção literária e não como literatura regional. Borges junta sua leitura estrangeira com a reinvenção do passado argentino numa via contemporânea, ou seja, a literatura rio-platense tem a riqueza de uma leitura de um conhecedor universal da literatura europeia e do mundo.
Borges conhece a civilização de forma erudita, ciclópica e enciclopédica, e quando se volta ao termo periférico da cultura gauchesca de matriz argentina, tem este olhar abrangente de um ficcionista que já sabe bem o que está fazendo, e faz uma invenção. O cosmopolitismo borgiano é que, por fim, encontra a tonalidade certa para uma literatura argentina. Ele é o autor que é crítico e escritor ao mesmo tempo, ou ainda, um contista que é filósofo, e que na sua escrita faz eclodir questões da teoria literária, e isto de uma forma oblíqua, com a mesma lateralidade em que o aspecto cultural influi na literatura borgiana.
O INFORME DE BRODIE, UMA VISÃO
“O informe de Brodie”, conto que dá título ao livro de contos de Borges de 1970, é um conto que parte de uma inspiração em Swift e seu Viagens de Gulliver, e que representa uma tensão entre moral e ironia, pois em Swift tudo está certo e delimitado, temos uma lição moral embutida, ao contrário de Brodie, em que o terreno é ambíguo e enigmático do ponto de vista de conteúdo moral, restando uma operação clara da ironia borgiana, arrebentando as fronteiras de um suposto conto fabular, fronteiras de um Esopo fabulista, pois aqui ele faz uma desconstrução de uma pretensa moral fabular, O Informe de Brodie tem esta abertura interpretativa, que tem como efeito ou resultado a ironia sutil de Borges.
Borges encara uma questão moral e política quando demonstra o informe do conto, pois este se trata de um missionário escocês informando ao governo de Sua Majestade britânica uma descrição da cultura dos Mlch. E o julgamento moral de Brodie é então instável, ao contrário de um Gulliver que vive num mundo unidimensional. Swift ganha aqui uma reescritura, e a moral nítida do conto fabular com matriz em Esopo é destruída pela ironia borgiana, que torna o mundo opaco e não mais previsível como na moral final das fábulas ou no juízo maniqueísta de um Gulliver em Swift.
Nas reescrituras que faz neste livro de contos, temos o do conto “Homem da Esquina Rosada”, publicado originalmente em 1935 na sua História Universal da Infâmia. Este conto no livro novo tem uma mudança na perspectiva narrativa, em que a covardia inicial do cuchillero na primeira versão, em que ele foge da briga, agora tem a versão mais complexa de um espelhamento em que o fugitivo reconhece em seu rival um reflexo de si mesmo que lhe constrange e então ele foge.
E a composição dos outros contos do livro, como, por exemplo, em “História de Rosendo Juárez”, em que se opera um deslocamento do ponto de vista, temos então um conto que não se restringe a uma narração apenas entendida como ação, mas também como uma abertura em que nos deparamos com um campo de saberes e por fim, uma ética.
E este aspecto ético aparece como a famosa moralidade de vendeta que temos em contos mais gauchescos como “O Encontro”, “Juan Muraña” e “O Outro Duelo”, em que há a projeção de uma ação repetida de duelos e mortes, em que a ironia borgiana coloca tal ética de macheza em perspectiva autocrítica, o ridículo se dando então na repetição destes padrões engessados de relações sociais e de moral.
E com o tema filosófico dos duplos, estes que representam a repetição inconsciente de um padrão comportamental herdado e mimético, temos a cultura como este limiar em que os personagens parecem ser manipulados por um hábil títere que governa as ações e suas relações de causas e efeitos, sempre dando em resultados semelhantes e até iguais.
Tal repetição indefinida que terá lugar nestas tramas gauchescas de macheza, vingança, coragem que mais parece temeridade, provas de hombridade e valentia, estes padrões que Borges coloca em perspectiva e os repete infinitamente para lhes dar a face ridícula pela sua ironia sistemática, na qual os destinos se repetem, mesma repetição que se dará também no conto “Guayaquil”, este que coloca a disputa acadêmica banal entre historiadores como também nesta dimensão que tende ao infinito, numa repetição ridícula.
O conto “O Inimigo”, por sua vez, opera uma reescritura do final de El Juguete Rabioso, primeiro romance de Roberto Arlt, publicado em 1926, pois tanto tem no novo conto uma recolocação do romance no nome de um dos personagens secundários do conto borgiano, como também nas tramas de confraria entre marginais e traições à amizade, deslealdade presente em Roberto Arlt, e que é reescrito no conto de Borges, tal traição que desaparece no outro conto borgiano, “A Intrusa”, em que os laços de lealdade não se rompem nem diante de um assassinato.
No conto “O Evangelho Segundo Marcos” temos como tema o mal-entendido cultural, pois diante da recapitulação sutil de um relato de Ezequiel Martínez Estrada, “La Inundación”, temos a trama que é reescrita no conto borgiano, pois é na mesma planície sob as águas em que se dá a confusão, a crucificação de um citadino fruto de uma interpretação literal de peões, o mal-entendido se dando entre esta fronteira de interpretações diferentes que se dá entre peões, de um lado, e citadinos, de outro, tudo fruto de uma leitura diversa de ambos do evangelho de Marcos, mal-entendido que resulta em tragédia, e com o relato bíblico virando, por fim, paródia.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor
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