A verdadeira causa da morte do jovem agricultor Ângelo Henrique Camata, de 29 anos, em Marilândia, no último dia 21 de novembro, provavelmente nunca será descoberta. O alerta para a necessidade de reduzir drasticamente e disciplinar rigorosamente o uso de agrotóxicos no Espírito Santo e no Brasil, porém, se mantém vivo, um grito abafado no peito de praticamente todos os que conviveram mais proximamente com o rapaz.
E é justamente esse grito que move esta repórter neste momento. Um clamor por mais consciência e cumprimento das leis, um desejo de prover uma gota de conforto a dor da família e amigos de Henrique e de colaborar para que a sua morte sirva, ao menos, para sensibilizar a sociedade e os gestores públicos, os profissionais e estudantes de agricultura, e principalmente os agricultores, para que não fechem mais os olhos para o perigo mortal que envolve a aplicação de venenos industriais que prometem – apenas prometem, em última instância – acabar com as chamadas “pragas” e aumentar a produtividade das lavouras.
Pois é somente agora, dez dias depois de ter ido a Marilândia e acompanhado a Missa de Sétimo Dia do rapaz, é que reúno coragem suficiente para dar forma escrita ao turbilhão de sentimentos que envolveu a rápida expedição à pequena cidade do norte capixaba.
Mãe, irmão, primos, tios, amigos e mesmo pessoas sem tanta proximidade com o jovem. Conversando com tantas almas quantas foi possível, ouvi, como suspeita número um de todos – quase todos, na verdade, apenas uma pessoa destoou dos demais – a intoxicação por uso de agrotóxicos. Agricultor conhecido e muito querido na cidade, Henrique, como a maioria absoluta da população que lida minimamente com a terra na região, fazia uso habitual de agrotóxicos.
É parte da cultura regional, na verdade, da cultura brasileira, país que é campeão no consumo desse tipo de produto desde 2008, segundo estimativas do Sindicato Nacional das Indústrias de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg) – se o volume de agrotóxicos vendido no Brasil fosse dividido igualmente entre a população, cada pessoa ingeriria entre cinco e sete litros por ano.
“Ele era acostumado”, chegou a afirmar a mãe do rapaz, em entrevista à imprensa no dia da morte, naquela fatídica terça-feira. Menos de 24 horas antes, na segunda-feira (20) pela manhã, Henrique havia aplicado agrotóxicos em sua lavoura de café. De acordo com o que o irmão pôde constatar no local de trabalho, o produto usado foi Roundup, o líder de vendas da multinacional Monsanto, cujo princípio ativo é o famigerado glifosato.
“Ele bateu duas bombas de 20 litros”, reafirmaram os familiares, reunidos na casa de Henrique na tarde do dia 29, preparando a caminhada – com balões, camisetas e panfletos – em homenagem ao rapaz, que os levaria até a Igreja Matriz para a Missa de Sétimo Dia.
“No mesmo dia, à noite, ele estava aqui, nessa mesa, jantando com a mãe. E no outro dia de manhã, acordou passando mal”, relataram-me. Uma crise terrível de falta de ar assustou a família, que o levou ao Hospital Sílvio Avidos, no município vizinho de Colatina, onde deu entrada por volta das 8h.
No Hospital, os inúmeros edemas nos pulmões – em casos como o de Henrique, os pulmões se comportam como o de uma pessoa que está morrendo afogada – foram sucedidos pela falência múltipla dos órgãos e, “apenas” (longas) doze horas depois, a morte.
Mas o que o matou, de fato? Apesar das evidências levarem praticamente todos os familiares e amigos mais próximos acreditarem ter sido intoxicação por agrotóxico, o atestado de óbito se limita a registrar a “insuficiência respiratória aguda”, sem esclarecer o que causou esse colapso inicial.
Atestado de óbito
O documento foi assinado por um dos tios de Henrique, Marcus Valerio Rezende, que é médico no hospital colatinense. “Mas qual foi a causa da insuficiência respiratória, doutor?”, pergunto, no salão da Igreja que se esvaziava após a emocionante missa. “Não tem como saber”, conformava-se, admitindo que não providenciou a realização de exames que pudessem chegar à origem do mal fatal. “Como eu podia mandar o corpo pra Vitória, por dois dias, com a mãe no hospital, querendo ver o filho, em desespero?”, me diz, como que querendo convencer a si mesmo de que a aparente omissão em investigar teve motivação legítima.
Marcos, na verdade, apenas seguiu um comportamento dominante entre a classe médica brasileira, de simplesmente se negar a procurar comprovações de mortes por intoxicações com agrotóxicos.
No caso de Henrique, essa ausência costumeira de constatação médica abriu as comportas para muitos palpites. H1N1, febre maculosa, dengue … nas redes sociais, ouviu-se muita coisa, mas a probabilidade de serem mesmo hipóteses investigáveis é pequena. O Hospital Sílvio Avidos “parou” naquele dia, disseram metaforicamente os parentes de Henrique, referindo-se à grande junta médica que se reuniu em torno do dramático caso de um jovem saudável que chegava, subitamente, a um quadro tão grave.
E todos esses médicos sabem que doenças epidêmicas, como as citadas, devem obrigatoriamente ser pesquisadas para, em caso de confirmação, serem registradas nos sistemas de saúde municipal, estadual e federal. “Não foi nada disso”, afirmam, um após outro, (quase) todos os ouvidos por esta repórter. “Foi agrotóxico”.
Mas o fato é que, sem os exames devidos, qualquer hipótese é apenas uma hipótese. A atribuição da causa da morte a qualquer produto agrotóxico que o rapaz tenha feito uso, seja na véspera de sua morte ou tempos antes, é uma pedra a machucar o coração das pessoas, uma interrogação que provavelmente nunca será elucidada, a menos que uma exumação do corpo seja solicitada pela família, algo pouco provável. “De que adianta saber agora? Não vai trazer ele de volta”, lamentam os mais próximos do saudoso agricultor.
Alguns pesquisadores do assunto que entraram em contato conosco desde a primeira reportagem sobre o caso de Henrique, no dia 24 de novembro, levantaram algumas suspeitas e lamentaram muito a ausência de condições de comprovação.
Uma delas é a engenheira química Alda Maria Corrêa, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que citou o Paraquate, princípio ativo de mais de uma dezena de herbicidas, entre eles o Gramoxone e o Gramocil. “O risco de intoxicação evoluindo para morte é muito grande. É o único que mata assim. É usado no cultivo do café e muitas outras”, opina Alda. “Talvez essa identificação possa evitar outros casos”, sugere.
Proibição legal
No dia em que estive em Marilândia, o Ministério da Saúde, por meio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), publicava a Resolução da Diretoria Colegiada nº 190, substituindo a de número 177, de 22 de setembro último.
Ambas as normas dispõem sobre a proibição do ingrediente ativo Paraquate em produtos agrotóxicos no país e sobre as medidas transitórias de mitigação de riscos. A proibição total será a partir do dia 22 de setembro de 2020 e, até lá, algumas medidas imediatas foram estabelecidas e as que constavam na Resolução 177 já eram de conhecimento do vendedor com quem conversei numa das “casas agrícolas” do Centro de Marilândia. “Não encontra mais nada com Paraquate por aqui”, me informou o jovem comerciário. “Nossa região tem muito morro”, completou.
“O de um litro já foi proibido e o Idaf [Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo] deu até 180 dias pra parar a venda de cinco e 20 litros”, continuou. Sobre o fato de não se encontrar mais na região o produto, antes mesmo do prazo legal, o vendedor me explica que a norma da Anvisa permite apenas o uso, atualmente, em tratores de cabine fechada, que são inviáveis em regiões acidentadas, só sendo utilizados em relevos planos. “Talvez em Linhares, aqueles lados de lá, você ainda encontre”, sugeriu.
“Ele é parecido com o Roundup, não é?”, pergunto, esticando a conversa. “É, mais é muito mais forte. O Roundup é sistêmico e o Paraquate é de contato, mata na hora. Você aplica de manhã e de tarde, se não chover, o mato já tá todo queimado”, explicou.
Se Henrique usou Paraquate na manhã que antecedeu sua morte ou em algum outro momento, dificilmente iremos saber. “Na roça dele ele só usava Roundup, mas ele levava o trator dele em outras propriedades também”, respondem os familiares, após muita insistência minha sobre qual produto fora usado no dia 20 de novembro.
Uma última lição?
Mesmo sem as comprovações técnicas, a súplica por alerta contra os agrotóxicos pulsava entre os entes mais queridos de Henrique, momentos antes àquela homenagem póstuma na Igreja. “Vamos falar sobre isso durante a caminhada”, chegou a anunciar um dos amigos mais próximos, às vésperas do ato. Mas no dia, a dor da saudade falou mais alto que a necessidade de esclarecimento e prevenção altruísta a tragédias futuras que certamente irão acontecer, caso nenhuma medida rigorosa de restrição e fiscalização aconteça.
No panfleto distribuído entre os presentes à solenidade religiosa, as palavras procuravam atenuar o sofrimento pela perda. “Você que conheceu esse anjo, sinta-se agraciado com um presente de Deus. Sua doçura, alegria, simplicidade, compreensão, disponibilidade, seu jeito leve de levar a vida, de brincar com os amigos, de ser o melhor amigo, o tornou único. Não precisava falar ‘Eu te amo’, pois era amor por onde passava. Nos ensinou que através das pequenas coisas se eternizam as lembranças. Quantos amigos verdadeiros você conquistou! Quantas lembranças lindas você deixou guardadas em nossos corações. Obrigado por nos ter ensinado tanto!”, diz um dos trechos do impresso.
O silêncio médico, o silêncio da cidade (nenhuma menção aos venenos agrícolas foi feita, por fim, durante nenhuma das homenagem a Henrique e manifestações de solidariedade à família) … O silêncio mortal, que envolve o Brasil nas últimas décadas, impedindo que a letalidade dos agrotóxicos seja reconhecida por quem lida com esses “cidas” de toda espécie – silêncio que tem ceifado vidas aos milhares.
Foram quase dois mil óbitos registrados entre 2007 e 2013 no Brasil, apenas em casos de “intoxicações por agrotóxicos em tentativas de suicídio”. Os casos de intoxicação, no entanto, entre 2007 e 2014, se aproximam dos 69 mil, sendo 2,5 mil no Espírito Santo, que figura em segundo lugar em número de intoxicações por 100 mil habitantes.
Os dados constam no Relatório Nacional de Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos, do Ministério da Saúde, em 2016, e o professor Lusinério Prezotti, do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes) em Santa Teresa, lembra que o número real de casos é muito maior do que os notificados. “Estima-se que para cada notificação, existem outros 50 casos subnotificados”, informa o professor.
No dia seguinte ao ato religioso, nas ruas da cidade, pessoas ainda comentavam a perda do querido cidadão marilandense. Quem sabe uma das lições que ele queria deixar aos seus, perguntei a alguns, incluindo familiares, seja o alerta contra os agrotóxicos? “É, quem sabe”, disseram, em uníssona resposta.