Fotos: Israel David O. Frois
“O entorno da Vale S.A. na perspectiva do direito à cidade: da miopia verde à catarse do pó preto”. A ironia no título do e-book, e da pesquisa que o originou, dá o tom cortante que perpassa toda a obra, que será lançada em breve pela editora do Instituto Federal de Educação do Espírito Santo (Ifes).
Resultado da pesquisa de Mestrado do geógrafo Israel David de Oliveira Frois, sob orientação da professora doutora Sandra Soares Della Fonte, o e-book será o primeiro volume dos produtos educativos do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação na Cidade e Humanidades (Gepech), surgido dentro do Mestrado em Humanidades, do campus de Vitória do Instituto.
O objetivo é que ele sirva de ferramenta para subsidiar a atuação de professores da Educação Básica, na Região Metropolitana, em trabalhos de educação ambiental. O livreto, explica Israel, apresenta “um roteiro de viagem formativa, evidenciando os pontos com potencialidade educativa no entorno da Vale S.A. em uma perspectiva crítica e transformadora”.
Esse pontos são as contradição e conflitos percebidos na região, com destaque para a estratégia global de acumulação financeira, que influenciou a política interna brasileira desde a fundação da empresa; a instalação de uma estrutura portuária na Ponta de Tubarão e os interesses do capitalismo global, ignorando os posicionamentos técnicos contrários; o aumento da expressão dos problemas socioambientais a partir da privatização da empresa, quando houve um comprometimento exclusivo com a lucratividade, fazendo a produtividade aumentar, seguida do aumento do caos ecológico; a atuação da empresa no cenário político brasileiro, em destaque na cena capixaba com os generosos financiamentos de campanhas eleitorais, que são retribuídos com generosas isenções e incentivos fiscais federais; os desfechos lamentáveis das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa e da Câmara de Vitória.
O trabalho teve, como principais fontes de dados documentos, relatórios, estudos e registros históricos relacionados à empresa e a sua atuação no Espírito Santo, além de visitas individuais e coletivas feitas no entorno da Vale S.A.
'Falhas metabólicas'
Durante a pesquisa, foram constatadas diversas “falhas metabólicas objetivadas na orla de Camburi”, relacionadas, direta e indiretamente, com as atividades econômicas e poluidoras da Vale S.A.
Falhas metabólicas, explica Israel, são todas as forma de alienar o espaço da cidade e produzir os problemas que chegam na população através de doenças e poluição ambiental. “É o trabalho alienado, as atividades alienadoras, que segregam e geram mazelas, e não riqueza humana. As falhas metabólicas empobrecem a natureza e o homem”, ressalta.
“O nosso corpo metaboliza esses tóxicos, esse poluente. Os direitos à salubridade, saúde e dignidade ambiental e humana estão sendo negados. Ter um espaço saudável deveria ser o normal”, argumenta, citando dados do International Study of Asthma and Allergies in Childhood (ISSAC), incluídos no Relatório Final da CPI do Pó Preto da Assembleia Legislativa (Ales), quado ficou constatado que, enquanto a média nacional de prevalência de asma é de 20,9%, no Espírito Santo ela sobe para 26,5%, e, com relação à rinite, os números são ainda mais gritantes: 26% a média nacional e 46,6% a capixaba.
Os dados levantados nessa pesquisa bibliográfica subsidiaram, então, “uma pesquisa intervenção com ações colaborativas por meio de curso de formação continuada de professores, pautada nos pressupostos da pedagogia histórico-crítica”, relata.
Foram feitas visitas ao complexo industrial da Vale e também à região norte da Praia de Camburi, onde a materialização dos impactos ambientais da mineradora chocam o visitante. “O passivo ambiental sempre choca muito”, destaca Israel, mencionando também os animais mortos, que aparecem na maré baixa, a nascente contaminada, que em outros tempos matava a sede dos banhistas e esportistas, e a cor avermelhada que sobe à tona na água quando se agita a areia entre os corais, provando tratar-se de poluição por minério de ferro as manchas pretas e brilhantes na praia, e não areia monazítica.
Castelo mal assombrado
Essa visita de campo ao norte de Camburi foi pessoalmente marcante para o professor, pois a intenção de usar o entorno da Vale como tema de sua pesquisa surgiu no início do Mestrado, durante um passeio ecológico feito em 2016 junto com a Associação dos Amigos da Praia de Camburi (AAPC).
Assim como outros moradores de Vitória, especialmente os que residem ou transitam cotidianamente pela Praia de Camburi, um quadro aterrorizante já povoava o imaginário de Israel, desde a adolescência: a imagem da Vale como um castelo mal assombrado escondido atrás de velhas castanheiras e envolto permanentemente em nuvens vermelhas de ferro e enxofre. “A indignação já existia, mas foi potencializada durante essa visita. Foi quando decidi mudar o tema da minha pesquisa”, conta.
Cidade para os cidadãos
A ideia, enfatiza o geógrafo, é transformar a cidade, para que sirva à urbanidade e não à indústria e aos interesses do grande capital; fazer da cidade um espaço para o exercício pleno da cidadania.
“Buscamos uma educação que promova a consciência da importância dessa transformação”, ressalta o professor. “Discutimos a concepção de direito à cidade, por acreditarmos que o espaço urbano pode ser apropriado de forma a promover a dignidade humana na sua totalidade”, enfatiza.
Na publicação, os autores mencionam alguns fatos que marcam a história da Vale no Estado. Entre eles, o posicionamento do naturalista Augusto Ruschi, Patrono da Ecologia do Brasil, relatado no livro “O Agitador Ecológico”, do jornalista Rogério Medeiros.
Na publicação, de 1995, Rogério conta que “Ruschi alertou que a área escolhida para instalar o complexo siderúrgico-portuário seria o local menos poluído de Vitória e ideal para zona residencial. Salientou, ainda, que a escolha do local pela Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) fora feita com base estudos equivocados, tanto pelas condições atmosféricas e meteorológicas desfavoráveis quanto pela falta d’água para abastecer suas operações em crescente escala”.
“Os ventos dominantes em Vitória e no Espírito Santo são nordeste (NE)[…]Tais ventos sopram durante 8 a 9 meses por ano, ou seja, janeiro, fevereiro, março, julho, agosto, outubro, novembro e dezembro, em direção de 30 a 60 graus, em velocidade que varia de 4 a 38 km/hora. […] Esses fatos têm real importância no transporte de poluentes oriundos das diversas operações siderúrgicas […] todos esses poluentes podem causar efeitos ao homem pela exposição a substâncias cancerígenas […] além de doenças respiratórias causadas pelos derivados do enxofre”, afirmou o cientistas, em uma de suas entrevistas ao jornalista.
Agressiva como um tubarão
Em outra passagem do livro, os autores abordam a edição de 2008 do projeto A Vale A Vaca e A Pena, do artista plástico Kleber Galvêas, em que o pintor desenha, com o dedo, em uma tela exposta à poluição do pó preto, durante 60 dias em uma mesa em seu ateliê.
Naquele ano, o desenho feito foi o de um enorme tubarão pairando sobre o céu da cidade, formando a partir da fumaça emitida pelas chaminés da mineradora, em alusão à decisão do então governador Paulo Hartung de autorizar a construção da oitava usina de beneficiamento de minério da Vale.
“Sabemos que algumas espécies de tubarão correspondem a um animal notadamente conhecido pela sua agressividade, pelos seus ataques violentos e pelo domínio que tem na cadeia alimentar. No cenário político-econômico do Espírito Santo e do Brasil, a empresa Vale S.A. se projeta dessa maneira, fazendo fortes investidas, financiando campanhas e fazendo muito lobby político para angariar apoio, desonerações fiscais e benesses do Estado”, metaforiza os professores autores Israel e Sandra.
Com essa analogia, prosseguem os autores, “a própria empresa se define”, citando um trecho de uma publicação institucional da Vale de 2012: “O antigo nome do lugar, Tubarão, era perfeito para demonstrar a agressividade dos novos planos da Companhia”.
O livreto aborda ainda as “fraudes na privatização da Vale”, evidenciadas pelo preço com que as ações do governo foram vendidas, R$ 3,3 bilhões, bem abaixo do valor da companhia, em torno de R$ 100 bilhões.
Também citam a falácia dos Wind Fences, que, na prática, não resultaram na redução esperada poluição; a maquiagem sobre os impactos socaioambientais da empresa, feita pelas suas ações de “Responsabilidade Social”; e os resultados pífios da CPI do Pó Preto da Assembleia Legislativa, que tiveram seus relatórios finais ainda não implementados, e da e da Câmara de Vitória, que foi anulado em 2016 pelo então presidente da Casa, vereador Namy Chequer (PCdoB), como registrado por matéria publicada neste Século Diário.
Educação transformadora
Para os autores, “este estudo abre caminho para outras possibilidades de pesquisas e projetos de intervenção, pois são muitas as contradições objetivadas no espaço urbano do Espírito Santo. Desenterrar estas contradições por meio de pesquisas, propor novos circuitos formativos, estabelecer diálogos para uma práxis crítica e transformadora no campo dos movimentos socioambientais são alguns dos desafios lançados”, afirmam.
A expectativa, prosseguem, é que a publicação motive “reflexões críticas sobre o uso da cidade como fonte para a educação transformadora”. “Esperamos que ele sirva de base para outros materiais, outras aulas de campo e formações”, conclamam.