sexta-feira, novembro 22, 2024
26 C
Vitória
sexta-feira, novembro 22, 2024
sexta-feira, novembro 22, 2024

Leia Também:

As metas internacionais de conservação marinha foram realmente atingidas?

De Florianópolis a Nova Iorque, passando por São Paulo e Vitória, cientistas e ambientalistas de renome nacional e internacional, ouvidos – e lidos – por Século Diário, são unânimes em reconhecer como avanço, ou mesmo uma vitória, a publicação, nessa quarta-feira (20), no Diário Oficial da União, dos Decretos Federais nº 9.312/18 e 9313/18, que criam, respectivamente, a Área de Proteção Ambiental (APA) do Arquipélago de Trindade e Martim Vaz e o Monumento Natural (Mona) das Ilhas de Trindade e Martim Vaz e do Monte Columbia; e a APA do Arquipélago de São Pedro e São Paulo e o Mona do Arquipélago de São Pedro e São Paulo.

Porém, “ainda atônitos” com os desenhos finais e o teor dos decretos, são também unânimes em reconhecer que a vitória ficou bem aquém do esperado e necessário para a efetiva conservação desses ambientes. Negam, inclusive, que os dois mosaicos tenham de fato levado o Brasil a cumprir a Meta de Aichi nº 11, relacionada à conservação marinha.

Os decretos, assinados pelo presidente Michel Temer, o ministro da Defesa, Joaquim Silva e Luna, e do Meio Ambiente (MMA), José Sarney Filho, criaram dois gigantescos mosaicos de UCs, somando quase 92 milhões de hectares. Com isso, ampliaram de 1,5% para 25% a área marinha brasileira legalmente protegida.

A quantidade de hectares incluídos nos decretos, no entanto, não significa qualidade e conservação efetiva da biodiversidade, com bem resume o artigo do cientista brasileiro Luiz A. Rocha, publicado também nessa quarta, no jornal estadunidense New York Times, com o título: “Bigger Is Not Better for Ocean Conservation” (“Maior não é Melhor para a Conservação do Oceano”, em tradução livre para o português). 

Luiz Rocha é ictiólogo –  especialista em peixes –, atual curador da coleção de peixes da Academia de Ciências da Califórnia e colíder da iniciativa Hope for Reefs, da entidade. No artigo, afirma que o “círculo de proteção de 400 milhas de diâmetro em torno dessas ilhas” foi criado no seu país natal, mas “sem realmente proteger muito de qualquer coisa”.

O ictiólogo informa que essa tendência de criar gigantescas UCs no mar, vazias de real função de conservação, tem sido adotada por vários países e são o perigo, porque acabam passando a impressão de que as metas internacionais de conservação foram cumpridas, não sendo mais necessário criar UC nenhuma, nem no oceano nem na costa.

“Proteger as áreas costeiras é fundamental porque é onde ocorre a maior parte da biodiversidade do oceano. Por exemplo, os recifes de coral – que são um habitat costeiro – cobrem menos de um décimo do fundo do oceano, mas abrigam 25% de todas as espécies marinhas”, explica.

É só 'mais água' na 'panela' da conservação?

“Para onde vamos daqui?”, questiona? Primeiro, responde, “os países devem criar áreas protegidas somente onde possam fazer uma diferença real na proteção da vida marinha: habitats costeiros altamente diversificados, áreas de desova e locais de alimentação”, afirma.

Em segundo lugar, prossegue, “precisamos de regras cuidadosamente escritas que estabeleçam limites de capturas sustentáveis e que exijam equipamentos de pesca comercial que evitem a captura de peixes indesejados e outras criaturas marinhas”, diz. 

“Essa abordagem de ‘apenas adicionar água’ à proteção marinha é uma receita falha para a conservação, que não está protegendo as áreas de nossos oceanos que exigem nossa atenção imediata”, assevera.

 

Essa tendência apócrifa de criar gigantescas áreas protegidas em regiões não prioritárias para a conservação também é combatida pelo oceanógrafo João Batista Teixeira, da ONG capixaba Voz da Natureza, uma das entidades que mais tem realizado pesquisas científicas nos dois arquipélagos, em conjunto com a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), estudos esses que embasaram o andamento recente do processo de criação das UCs.

“Há uma crítica mundial contra essa tendência e o Brasil acabou embarcando nela também”, reclama.  As Áreas de Proteção Ambiental (APAs) de Trindade e Martim Vaz e de São Pedro e São Paulo, explica João, estão localizadas em mar aberto, onde a coluna d' água é de até seis mil metros de profundidade, onde não estão a maioria das espécies mais ameaçadas, endêmicas e que requerem medidas eficazes de conservação.

“Na audiência pública, o ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade] apresentou uma proposta, um desenho, que foi aprovado por todos. E disse que iria expandir a área protegida. Mas ao invés de expandir ou sequer manter o que foi apresentado, a proposta foi reduzida, e logo em cima das ilhas, das áreas que mais precisam de conservação”, protesta, referindo-se à audiência pública realizada na Assembleia Legislativa no dia oito de fevereiro, no final do período legal de consulta pública, prévio à criação das UCs.

Outro capixaba da Voz da Natureza, Hudson Pinheiro, autor do estudo disponibilizado pelo ICMBio durante a consulta pública, também criticou o desvio da proposta científica apresentada na audiência pública. “Trindade deveria ser circulada por uma área de proteção integral e ficou circulada por uma APA, isso significa que os barcos de pesca vão poder chegar bem perto de Trindade. E o decreto ficou muito aberto, inclusive liberando pesca de subsistência dentro de todas as UCs”, observa. “Mas, bola pra frente, foi o primeiro passo. O ótimo é inimigo do bom. Agora a gente tem muito o que lutar pra que a pesca seja banida da ilha”, anuncia.

'Aberração'

Sergio Floeter, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), também ictiólogo de renome e profundo conhecedor da ictiofauna marinha capixaba, diz que boa parte dos cientistas ainda “está atônita” com o desenho final das UCs.

Também reconhece o avanço conquistado, mas põe foco no trabalho que ainda está por vir. O Plano de Manejo das UCs, por exemplo, que precisa ser elaborado nos próximos 180 dias, pode ser uma ferramenta para regulamentar melhor a pesca nas áreas das ilhas e seu entorno direto.

“UC de proteção integral com pesca liberada por decreto é uma aberração!”, dispara, referindo-se ao artigo 7º dos dois decretos, que autoriza a “pesca de subsistência” nas UCs, incluindo os Monumentos Naturais, que são de proteção integral.

A criação das UCs, critica, teve um “viés muito mais político do que científico”, “claramente dando a aparência de apenas querer cumprir metas internacionais do que realmente querer conservar a biodiversidade marinha do Brasil”.

Os pontos positivos de todo esse processo, destaca Sergio, incluem a divulgação da chamada “Amazônia Azul”, ou seja, a gigantesca biodiversidade marinha brasileira; a sinergia entre ONGs, governos e cientistas em prol da proteção dessa região; e o início de um processo de ordenamento e regramento para a conservação e uso sustentável desses ecossistemas.

É nesse sentido que navega Heloisa Dias, coordenadora do Colegiado Mar da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (RBMA/Unesco). “Considero uma vitória. Conseguimos nos manter junto e avançar. Temos que nos manter unidos pra conquistar muito mais”, declara.

O questionamento sobre as Metas de Aichi faz parte de seu repertório. “Atingir meta não requer somente um número, quantidade; tem que ver a representatividade dos ecossistemas”, pondera.

As Metas de Aichi, acentua, preveem tanto a abrangência de áreas terrestres e marinhas quanto a representatividae de todos os ecossistemas, e que sejam efetivamente implantadas. “Pelo previsto nos tratados nacionais e internacionais, há muito dever de casa por fazer, tanto em criação como em implantação dessas unidades”, acentua.

É necessário, portanto, dar prosseguimento ao processo de criação de “uma série de unidades de conservação federais, estaduais e municipais, como Três Ilhas, que não está bem categorizada, como APA, e Ilha dos Franceses, que está parado”, exemplifica Heloísa.

Pré-sal, pesca e biodiversidade

É preciso dar prosseguimento ao reconhecimento, pela Unesco, da primeira Reserva da Biosfera Marinha brasileira, exatamente na Cadeia Vitória-Trindade. A proposta está em fase de detalhamento, buscando assegurar estratégias de conservação para os montes submersos localizados entre a costa capixaba e a Ilha de Trindade. São quase 30, no total, sendo que o mais próximo de Vitória está a 80 km.

A Reserva da Biosfera, ressalta, é um “instrumento de diálogo entre todos os setores, com foco na sustentabilidade”. Por isso, um detalhado levantamento de informações sobre biodiversidade e interesse comercial/industrial foi feito para embasar a elaboração da proposta da Reserva da Biosfera Marinha, ainda em construção.

Os interesses em exploração do pré-sal não colidem com os de conservação, assegura. O que ainda precisa ser melhor esclarecido, informa, é um acordo relacionado à pesca, sendo que “o ordenamento da pesca de pequeno porte pode ser compatibilizado com as propostas de Reserva da Biosfera e de unidades de conservação, assim como o pré-sal”, assegura.

“A Reserva da Biosfera não proíbe nada que já não esteja proibido”. O mundo precisa dessa área conservada, bem gerenciada”, declara.

E, para isso, é fundamental a continuidade das expedições científicas, como as que tem sido realizadas pelos pesquisadores da Ufes e da Voz da Natureza. “Sem essas informações não conseguiríamos avançar o que já avançamos. A base cientifica é que nos dá condição de dialogar com outros órgãos”, afirma. 

Mais Lidas