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Não mais licença para brincar: Ticumbi ganha o palco da Capital

Foto: Tadeu Bianconi

Diz-se que não muito tempo atrás, em Conceição da Barra, norte do Estado, os negros que compõem grupos de Ticumbi tinham que passar pela prefeitura e pela polícia para pedir autorização para “brincar” seu teatro-música-dança em louvor a São Bino – apelido carinhoso dado por eles a São Benedito.

Ó tempo rei, ó tempo rei, ó tempo rei. Eis que estes negros ganham os palcos da burguesia da Capital. Não fossem as obras no Theatro Carlos Gomes, ali estariam no principal monumento cultural do Espírito Santo. Mas estrelaram no não menos grandioso Teatro Glória, com casa cheia.

Inicialmente, o maestro Helder Trefzger comanda uma pequena introdução da Orquestra Sinfônica do Espírito Santo (Oses), composta por ele com base nas influências captadas do Ticumbi, essa manifestação cultural que só existe no Espírito Santo.

Logo entram nos palcos as estrelas da noite. À frente Tertolino Balbino, com mais de seis décadas de experiência como mestre do Ticumbi de São Benedito. Conduzido e posicionado por seu colega frente ao microfone, “Mestre Terto”, que ao avançar da idade encontrou como companheira a cegueira, talvez pouco enxergue dos virtuosos músicos que o rodeiam e do público que os recebe de pé. Acredito que a maioria dos capitalinos via pela primeira vez ao vivo um grupo de Ticumbi, ou baile de congo, como também se pode chamar.

Formam-se duas filas, quase em escadinha. Dos 85 anos de Mestre Terto aos últimos jovens, que nem uma década de vida devem ter. O futuro, ente misterioso, avisa que quer ver ainda muito Ticumbi. Personagens centrais da trama, os reis e embaixadores brilham com suas roupas reluzentes.

De forma não casual, a Orquestra se coloca em seu traje preto menos formal, diante das paredes de fundo de mesma cor. O protagonismo é dos negros ao centro, com as vestes brancas e fitas de cor penduradas, com as coroas de flores na cabeça e os pandeiros nas mãos.

Não há tanto espaço para dançar e mover-se como nas ruas de Conceição da Barra e Itaúnas, e os movimentos ficam mais contidos. Mas quem mais acostumado a se adaptar e improvisar que os negros do Brasil?

A trama se dá como é no território, os “reis” e o “sacratário” de Bamba, que pelejam com o Reis de Congo, encenando as guerras étnicas da África, ficam ao fundo, com difícil visualização para o público do andar inferior do teatro. Erro técnico? Falta de espaço? Ou simplesmente o Ticumbi sendo Ticumbi, preocupado em manter a encenação e tradição mais que agradar ao público que o assiste? Dos negros para eles mesmos – e quem quiser assistir, pois que assista, e bem-vindo seja.

As legendas projetadas ajudam a entender as cantigas, engolidas pelo harmonioso som da Orquestra alinhado com os pandeiros e violas do norte capixaba.

Ao silêncio dos instrumentos, entre intervalos de refrões musicais, entra a encenação, toda falada em forma de rima. O interessante é que pese o enredo manter uma estrutura tradicional, as rimas se atualizam com frequência, deixando o Ticumbi sempre com o frescor do contemporâneo. A crítica social se faz presente nas letras, lembrando com bom humor da corrupção que assola o país, o que leva o público às gargalhadas e aplausos. Falando da injustiça à qual o povo negro é submetido e dos danos do monocultivo da cana e eucalipto que assolam o norte capixaba e roubam as terras de plantar e viver.

Pensei que seria mais adequado guardar o riso e as palmas para o final para não interromper o desenvolvimento da obra. Mas não há código de etiqueta para espetáculos de Ticumbi com Orquestra, pois estes simplesmente nunca haviam acontecido.

O ineditismo traz seus desafios. O maior deles, a perda de sincronia entre a Orquestra e o Ticumbi que se deu em alguns momentos, não pôde passar desapercebido, mas foi ajustado com primor e elegância pelo Maestro Helder, regendo ao mesmo tempo a orquestra sinfônica e a “orquestra de pandeiros e violas”, como disse alguém. Na verdade, para a cultura popular, embora muitas vezes obstinada, geralmente a perfeição importa muito menos que o brincar, o estar junto, o laço comunitário, o manter das tradições.

A encenação do Ticumbi, que pode durar duas ou três horas entre rimas, duelos e canções, mesmo sob o sol veranesco de Conceição da Barra, foi resumida a cerca de uma hora para o espetáculo inédito. Por fim, a trama ficou estranhamente sem desfecho, mas teve um sabor de experimento, de novidade e só vi rostos satisfeitos. Dos músicos eruditos, dos brincantes do Ticumbi, daqueles que acompanham o baile de congo há décadas e daqueles que o assistiam pela primeira vez. E, principalmente, das crianças, que corriam pelo teatro, se jogavam deitados no carpete ou que esperavam ao final à beira do palco para conhecer os artistas do Ticumbi.

O que fazer quando a história passa diante dos seus olhos? Registrar. Por isso escrevo. E espero contar às futuras gerações: eu vi, com esses olhos que a terra há de comer, o Ticumbi, pela primeira vez tocar com a Orquestra. E dizer isso daqui há décadas, quem sabe, com esse encontro se repetindo tendo como mestre um daqueles meninos negros do final da fila em “escadinha”, que leve adiante os ensinamentos de Terto, que naquele dia, como o mestre do vallenato colombiano Leandro Díaz, enxergava com os olhos da alma.

E se é pra falar de história, porque não lembrar que naquele dia 21 de março de 2018, cumpria-se sete dias do cruel assassinato de Marielle, como bem lembrou enérgica e emocionada Gracielle, horas depois, no samba que insistia em não acabar em plena quarta-feira no Bar da Zilda, não muito longe dali.

Representatividade é palavra difícil de entender para quem sempre esteve dominando o jogo. Mas da longa vida do velho Terto à precoce morte da jovem Marielle, a moral é não mais pedir licença para brincar ou para lutar. Ocupar os palcos da política e da cultura.

Marielle presente!

Viva a nossa bela sociedade! 

 

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