Questões (quase) existenciais têm sido levantadas em duas pequenas comunidades rurais do município de Divino de São Lourenço, no entorno capixaba direto do Parque Nacional do Caparaó, a partir da proposta de realização de uma festa rave – festa com música eletrônica em elevado volume, com duração de pelo menos 24 horas ininterruptas e em locais afastados dos centros urbanos – em um espaço de lazer localizado aos pés da Serra do Caparaó, na zona de amortecimento do Parque Nacional, a cerca de 500 metros do limite da unidade de conservação.
A estimativa de público para os cinco dias do evento (Katun festival – o despertar da consciência) está em torno de mil a 1.500 pessoas, o que corresponde a até o dobro da população somada dos dois vilarejos.
Um deles, o Limo Verde, endereço do pretendido evento, organizou um abaixo-assinado onde 116 pessoas, mais da metade da população total, solicitam o embargo da festa, protocolando a petição em várias instituições municipais, estaduais e federais – Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Vara da Infância e da Juventude, Polícia Militar, Polícia Civil, Corpo de Bombeiros, Ministério Público Estadual e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
A comunidade afirma que “NUNCA [grifo do documento] foi consultada sobre a realização do evento, que já está sendo divulgado na internet, com venda de ingressos há um ano” e que o mesmo “está em discordância com as atividades culturais e tradicionais”.
As 96 horas previstas de som ininterrupto, alegam, irão gerar transtornos para a comunidade rural, que “tem rotina de cidade do interior, inclusive com horários pré-definidos para encerramento de som e de atividades comerciais” e configuram “um risco para a cultura leiteira, já que é sabido que as vacas quando estressadas com barulho ‘escondem o leite’, gerando perdas econômicas para as famílias”.
O abaixo-assinado menciona o estresse auditivo que será impingido aos animais silvestres e também o pisoteio do solo em Áreas de Preservação Permanente (APPs). Alerta ainda para o “grande risco de acidentes, o que nos leva a uma preocupação com a área de saúde, inclusive sobre a limitação da rede pública local para atender a possíveis demandas de 1.500 pessoas”, e para a “geração de lixo (guimbas de cigarros, papel de bala, embalagens de cosméticos, descartáveis, etc.)”.
Indeferido
A primeira resposta oficial veio da Secretaria Municipal, que indeferiu o pedido para a realização atividade, dando, porém, prazo de cinco dias corridos para que os organizadores apresentem os documentos necessários para a devida avaliação técnica e decisão final.
No parecer, a secretária Paula Combas alega que o pedido de autorização protocolado no órgão carece de embasamento legal, não trazendo qualquer informação relevante para a análise. Os documentos requeridos são um projeto especificando toda a estrutura, estudo técnico de impacto ambiental e Plano de Controle Ambiental, com as respectivas Anotações de Responsabilidade Técnica (ART) dos profissionais.
O prazo vence na tarde da próxima segunda-feira (26), quando a Secretaria terá três dias analisar e decidir sobre a continuidade ou não do indeferimento, já na data prevista para o início da rave.
Um dos documentos classificados como apócrifos pelo órgão ambiental municipal foi um relatório preliminar de impactos ambientais, disponibilizado na fanpage do evento pelos organizadores.
E, a partir dele, a bióloga Tatiana Pongiluppi Souza, moradora do Patrimônio da Penha – vilarejo vizinho, a cerca de nove km do Limo Verde, com 500 habitantes –, mestre em Biodiversidade em Unidades de Conservação, emitiu um posicionamento profissional e pessoal.
Para ela, “a realização de um festival deste porte praticamente ‘dentro’ de uma Unidade de Conservação é extremamente preocupante”, mencionando questões como os impactos sobre a fauna silvestre das luzes e som ininterrupto durante 96 horas; a destinação dos resíduos sólidos; e o pisoteio na trilha, dentro de uma APP.
A bióloga indaga sobre informações relevantes, ausentes no referido relatório. Entre elas, qual o volume do som em decibéis e o número de barracas na área de camping; como será o funcionamento dos banheiros, o tratamento dos dejetos, dos resíduos sólidos e das águas cinzas; qual o plano para redução do impacto sonoro; e qual o número máximo de pessoas que podem transitar por vez nas trilhas.
E propõe discussões relativas à real necessidade de manter som ininterrupto por quatro dias seguidos e à possibilidade de mudar o local.
“Já que é um festival de cunho ambiental e voltado para o despertar da consciência e conexão com a natureza, não poderia ser realizado em uma área degradada? Assim, não causaria impactos e ainda poderia usar a ocasião do festival para trabalhar na regeneração do local, construindo um ambiente favorável para todos. Incluindo o plantio de árvores nativas, recuperação de solos, construção de sistemas para tratamento de resíduos, produção de alimentos entre tantas outras ações que podem ser aplicadas para a recuperação de uma área”, argumenta a mestra em Biodiversidade em Unidades de Conservação, mencionando ainda o respeito que se deve ter com a dimensão social, a cultura tradicional dos moradores do lugar.
Sem necessidade
O também biólogo Carlos Gussoni, estudioso das aves desde os 11 anos de idade, mestre, doutor e pós-doutor em Ornitologia, conhecedor do Caparaó e “fã de música eletrônica há mais de 20 anos”, diz que “desde que comecei a frequentar raves, nunca fui a uma que fosse próxima a uma unidade de conservação ou a algum trecho de vegetação nativa relevante.
“Acho um absurdo realizar uma rave próxima a um parque… Raves são eventos nos quais o som propagado é bastante alto e só por isso já causam um grande impacto na avifauna”, afirma.
“Aves são animais famosos pelo canto e dependentes da comunicação vocal para atrair parceiros e defender seus territórios. Alguns apresentam vozes baixas que são facilmente ‘abafadas’ por sons muito altos. Sem a vocalização, não conseguem realizar diversas funções diárias vitais”, explica.
E isso se agrava mais ainda, salienta, no período reprodutivo, que no Sudeste do Brasil compreende os meses de setembro a março. “Nesse período há ainda a comunicação vocal dos filhotes com os adultos, muitas vezes realizada através de vocalizações bastante singelas” e “impactar no ciclo reprodutivo das espécies pode ser desastroso para a avifauna”.
“Enfim, não há a necessidade de realizar raves em áreas de floresta nativa, muito menos no entorno de um parque nacional. Há diversas arenas de raves em ambientes degradados, onde o impacto na avifauna é bastante minimizado e a diversão propiciada pelo evento continua a mesma. E falo isso como alguém apaixonado tanto pelas aves quanto pelas raves e pelo cenário eletrônico”, orienta.
Choque cultural
O Caparaó não é o pioneiro em questionar a legitimidade de uma festa que se propõe a despertar consciências, mas que acaba por agredir a natureza selvagem e a cultura e sossego das comunidades humanas locais.
Já há leis aprovadas em Guarapari/ES e em Ipoema/MG, proibindo a realização desse tipo de evento. Discussões legais também já foram levantadas em Vila Velha/ES e Rio de Janeiro/RJ. A lei de Guarapari, por exemplo, “proíbe eventos com músicas eletrônicas ou ao vivo, de curta ou longa duração, fora do perímetro urbano, tais como sítios, fazendas, pesqueiros, praias e até ilhas, ou dentro do perímetro urbano, conhecidos como festas ‘raves’”.
Também não é a primeira vez que o Limo Verde lida com um evento cultural de grandes proporções. Há seis anos, uma edição do Rainbow aconteceu no alto de um morro em frente à comunidade, no meio da floresta, em propriedade particular. Encontro internacional de comunidades alternativas, o Rainbow reuniu centenas de pessoas vindas de vários continentes.
Obteve autorização da chefia do Parque e, mesmo com a construção de banheiros secos, utilização de tímida iluminação artificial e nenhum som mecânico, o Rainbow deixou um rastro negativo, pois a retirada das instalações provisórias e resíduos não ficou a contento, segundo a gestão da UC, e os mais velhos da comunidade não gostaram do interesse dos jovens em subir os cerca de três quilômetros para ver tão diferentes jovens, de tão diferentes culturas, tomando banho nus no rio, entre outras excentricidades.
Hoje, a mesma comunidade rejeita absolutamente a possibilidade de ser obrigada a aceitar um evento ainda maior, mais próximo de seu centro residencial/comercial, com luzes artificiais intensas e som elevado e ininterrupto.
“A festa em São Lourenço a gente ouve daqui”, argumenta a administradora Dayany Oliveira, nativa do Limo Verde, referindo-se à festa anual do município, realizada na sede, a 12 km da comunidade. Sobre o Katun, o posicionamento é firmemente contrário, em nome dos seus. “Despersonificou todo mundo aqui”, lamenta, comentando sobre o fato de a organização do evento ter ignorado completamente a opinião e as necessidades da comunidade, não realizando sequer uma reunião de discussão com a Associação de Moradores.
Diferentes semelhantes
Nas redes sociais, um dos aspectos abordados por outros moradores locais tocaram fundo na ferida, ainda exposta, e comparou a forma como a organização do festival tem conduzido a produção com a que as grandes indústrias se instalam em regiões habitadas por comunidades tradicionais, excluindo-as de seu hábitat, e explorando impiedosamente os recursos naturais que elas historicamente utilizam de forma sustentável.
Afinal, numa escala maior, não é assim que se apropriam das terras, das florestas e das águas de quilombolas, indígenas, camponeses e pescadores tradicionais, que os empreendimentos industriais ligados à celulose, ao petróleo e ao minério de ferro se estabeleceram no Espírito Santo nesses últimos 50 anos?
Até as promessas de geração de renda são semelhantes. Enquanto as indústrias alardeiam o progresso, com milhares de vagas de emprego e aumento dos tesouros públicos, o festival em questão também promete boa remuneração diária para os terapeutas, barmens e demais “operários”.
“Eles usam as pessoas do local, de bem, que têm boa entrada e reputação na comunidade, para lhe abrirem as portas. Mas na prática, não valorizam esses profissionais e a remuneração final costuma ser bem menor que a prometida”, relata a terapeuta e artesã Tauní Midan, referindo-se a situações que observou ocorrerem com colegas terapeutas da região.
O cenário vislumbrado pelos moradores mobilizados, diante da possibilidade de realização do evento, é de horror. Mas, mesmo que ele venha a acontecer, frutos positivos poderão ser colhidos, avalia Dayany. Como o empoderamento da comunidade e seu amadurecimento político para enfrentar situações semelhantes no futuro, seja com relação a eventos culturais, a empreendimentos industriais ou quaisquer outros gigantes que intentem se instalar na região. “A gente se uniu mais. Estamos mais fortes”, afirma.