A juventude e a comunidade negra capixaba estão de luto. E diversos coletivos e entidades de defesa dos direitos humanos no Espírito Santo protestam contra a violência e o racismo, que fizeram mais duas vítimas na madrugada desse domingo (25), no Morro da Piedade, em Vitória.
O jovem Damião Marcos Reis, 22 anos, e seus irmão, Ruan Reis, 19 anos, foram executados. No chão, mais de 60 balas, sangue, corpos caídos.
Nas manchetes da imprensa corporativa, apenas mais um acerto de contas do tráfico. No coração do povo e dos ativistas sociais, a tristeza e a revolta por ver mais uma vez a criminalização da gente pobre e negra, vítima de uma política de extermínio que perdura há décadas.
“É uma desculpa muito cretina dizer que a culpa é do tráfico. A gente não vê acerto de contas do tráfico com filhos de empresários, juízes, médicos, que consomem e traficam também. A gente não vê esse tipo de ‘acerto’. O que está por trás disso é a política de extermínio da juventude negra e pobre, que vem acontecendo há décadas no Estado”, desmascara, indignado, o Padre Kelder José Brandão Figueira, da Paróquia Santa Teresa de Calcutá, no Território do Bem, nas imediações da Piedade.
Toda a região é habitada por uma população predominantemente negra e pobre, boa parte, remanescente de antigos quilombos do norte do Espírito Santo, expulsos pelos projetos industriais de celulose e cana-de-açúcar, a partir da década de 1950.
Damião Reis de 22 anos era passista da escola de samba da Piedade, dava aula em um projeto social de Vitória, onde ensinava adolescentes e jovens a prática da capoeira, informa o Movimento Nacional dos Direitos Humanos no Espírito Santo (MNDH/ES), em nota pública.
No documento, o MNDH/ES manifesta “sua perplexidade, indignação e consternação diante de mais um ato brutal que ceifou a vida de dois jovens negros da periferia de Vitoria”. Informa que o Espírito Santo figura há anos entre os estados que mais matam Jovens negros no Brasil e exige das autoridades “a implementação das políticas públicas para cessar o extermínio da juventude negra”.
“Não permitiremos que o silêncio e a indiferença do Estado seja a resposta dada a nós e às mães que derramam suas lágrimas por seus filhos vitimados de forma hedionda e de execução. Para nós estas vidas importam e não deixaremos que venham a compor as estatísticas de crimes insolúveis e esquecidos no Espírito Santo”, afirma a entidade.
“Exigimos ainda que as autoridades da segurança pública, apurem com rigor e legalidade investigativa, lançando mão dos instrumentos tecnológicos e científicos para elucidar o crime e responsabilizar os culpados”, reivindica.
O Círculo Palmarino – organização nacional do movimento negro, criada em março de 2006, em Vitória, que tem como objetivo “combater o racismo e todas as suas manifestações concretas” – se manifestou denunciando que “as mortes de Damião e Ruan se somam a uma série de violações de direitos vivida pelas moradoras e moradores” e que “a ausência de políticas sociais consistentes em nossas comunidades e a lógica meramente repressiva utilizada pelas forças de segurança pública estão contribuindo para o aumento da violência e o cerceamento de direitos básicos da população”.
O Grupo Raízes, da qual Damião fazia parte, publicou uma nota de falecimento reverenciando a história dos irmãos e sua família, “uma das mais tradicionais do bairro”, e de seu avô, Ailton Canario, fundador da Escola de Samba Unidos da Piedade.
“Hoje mais um lamento triste de dor ecoa no Morro da Piedade e o samba cede a passagem para a violência! Mais uma noite atravessada pelo som de tiros. Mais uma noite em que famílias acordam com medo sem saber se é um dos seus ou amigos que estão perdendo a vida. No lugar das mais de 60 balas atiradas pelos becos, nas paredes das casas, escadarias e principalmente contra o corpo de jovens negros, sangue, lágrima e muita dor de mais uma mãe que perde seus filhos para a violência urbana. Aos moradores restou limpar o sangue das escadarias e contabilizar as cápsulas de arma de fogo espalhadas pelo morro. Até quando vamos chorar cotidianamente a morte de nossos irmãos e irmãs?”, clama o Raízes.
O Grupo promove “ações que promovem a auto-estima, sociabilidade, a cultura de paz e a reafirmação das identidades afrobrasileiras que permeiam esta região”, onde “cerca de 70% dos moradores são negros e possuem entre 0 e 29 anos”.
'Bodes expiatórios'
Essa distorção social e econômica, como geradora da violência seletiva contra parcelas da sociedade – negros, pobres, encarcerados, mulheres, homoafetivos, transexuais, povos tradicionais, crianças e adolescentes e outras minorias sociais – foi tema de uma formação assessorada pelo Padre Kelder dias antes da execução dos dois jovens da Piedade, voltada a bispos e coordenadores de pastorais do Estado.
Esses setores da sociedade são os “bodes expiatórios”, violados e exterminados, “para aplacar o desejo de vingança e ressentimentos das classes dominantes e suas instituições, no decorrer da história brasileira”, metaforiza o Padre Kelder, mencionando o livro Bode Expiatório e Deus, do antropólogo francês René Girard, onde o fenômeno da violência é explicado “como elemento fundante e organizador da sociedade humana através da religião e da cultura”.
Com o título “Quais vidas importam?”, o sacerdote informa que “os recortes analíticos dos índices de violência apresentam a população negra como a maior vítima dos homicídios”. No Espírito Santo, prossegue o padre, as chances de um negro ser morto são 6,5 vezes maiores que um não-negro, “o que evidencia a política de extermínio dos negros em curso desde a abolição dos escravos”.
Economia de mercado
Citando o Texto Base da Campanha da Fraternidade de 2018, o pároco afirma que “a Economia de mercado e a submissão do estado aos interesses da política neoliberal” são “outra causa relevante da violência que se abate sobre o Brasil”.
Neste sentido, relaciona, “os índices de violência e os índices de desenvolvimento econômico do Espírito Santo revelam que, no período em que a economia capixaba se destacava nacionalmente entre os estados com um dos maiores PIB per capto, foi o período em que a violência atingiu o seu topo, entre os anos de 2006 e 2011. Isso mostra o quanto é contraditória e excludente a economia neoliberal que concentra a riqueza nas mãos de uns poucos à custa do sacrifício dos pobres e trabalhadores. Nos últimos seis anos foram cerca de 9.000 homicídios no Estado, segundo a Secretaria de Segurança. No Brasil, em 2015, foram quase 60.000 homicídios”.
Com o avanço da agenda política e econômica neoliberal no Brasil, prossegue Padre Kelder, “que impõe a redução de investimentos públicos em educação, saúde, segurança, moradia, trabalho e renda, seguridade social e saneamento básico, e com o desemprego em alta, a tendência é que os índices de violência aumentem ainda mais no país e, em especial, no Espírito Santo que, por décadas, lidera o ranking nacional de mortes de jovens e adolescentes negros, mulheres e homoafetivos. Isso sem falar na política de encarceramento do Estado, que conta hoje com uma população de cerca de 20.000 presos e mais de 12.000 inquéritos de homicídios parados nas delegacias, sem solução”.
Um assassinato a cada 23 minutos
A campanha “Vidas Negras”, lança pelo Fundo das Nações Unidas (Unicef) em novembro de 2017, destaca que, a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil, sendo 23 mortes por dia.
Em matéria publicada em fevereiro de 2018 em seu site, as Nações Unidas (ONU) informam que “111 municípios responderam pela metade dos homicídios no país em 2015, segundo dados do Atlas da Violência” e “em torno de 10% dos municípios brasileiros (5.570) registraram 76,5% de todas as mortes em território nacional”.
Mobilização
Nesta segunda-feira (26), o Círculo Palmarino realizará uma reunião de organização do ato público Contra o Extermínio da Juventude Negra, por memória e justiça à Damião e Ruan Reis. A reunião acontece às 17h30, na sala de reunião da Casa do Cidadão, em Itararé.