“Alimento dos deuses”. Essa é a tradução para o termo grego Theobroma cacao, nome científico do cacau. A fruta é originária da Amazônia e tem no Brasil um dos seus maiores produtores mundiais. E o município de Linhares, no norte do Estado, tem um capítulo especial na história da cacauicultura brasileira.
O momento atual, no entanto, é dramático. As “matas de aluvião” da região da Foz do Rio Doce – mata que cresce sobre o “solo de aluvião”, localizado nas margens do rio e que sofre periódicas cheias que aumentam sua fertilidade –, outrora altamente valorizadas por seus milhões de pés de cacau altamente produtivos, hoje estão ameaçadas de desaparecerem.
É nessas baixadas úmidas do maior rio capixaba que o sistema de cabruca se instalou há mais de um século, caracterizado pelo plantio dos cacaueiros no sub-bosque da floresta, ou seja, substituindo em parte as espécies arbustivas da Mata Atlântica, preservando, no entanto, a totalidade das grandes árvores, que, com seu dossel – “telhado de folhas” da floresta, formado pela união das copas das árvores mais altas – fornecem a sombra necessária à boa saúde dos pés de cacau, nos extratos inferiores.
A cabruca foi, durante décadas, a grande responsável pela manutenção desse importante ecossistema do Baixo Rio Doce, ficando à salvo dos correntões da Aracruz Celulose (Fibria), que, a partir da década de 1960, derrubou gigantescas extensões da Mata Atlântica de Tabuleiro – Mata Atlântica existente nas planícies do norte capixaba – para o plantio de “exércitos” de eucaliptos para suas fábricas de celulose para exportação.
“Quando foi implantada, no início do Século XX, a cacauicultura de cabruca foi responsável por grande devastação, já que os cacaueiros substituíam as árvores nativas, mas hoje é entendida como um tipo de sistema agroflorestal coerente com os princípios da agricultura sustentável, sendo responsável pela manutenção de diversas porções de mata e de sua significativa biodiversidade. Nas planícies do litoral norte do Estado, onde não há cacau, via de regra, a floreta sofreu corte raso para implantação de pastagens ou eucaliptais”, explica o Instituto de Pesquisas da Mata Atlântica (Ipema) na publicação Saberes da Mata, de 2010.
Foi também a grande provedora de riqueza e poder políticos para os “barões” do cacau da região, cujas propriedades valiam fortunas somente por abrigarem produtivos cacaueiros sombreados pela floresta nativa.
Ainda hoje, Linhares é a terra do cacau no Espírito Santo, respondendo por cerca de 85% da produção estadual. Porém, os imóveis perderam valor – o preço do alqueire, que nos tempos áureos ficava em torno de R$ 150 mil, hoje caíram para dramáticos R$ 30 a 40 mil, em média –, a população diminuiu e envelheceu, os cacaueiros reduziram drasticamente a produtividade, e a própria floresta nativa está ameaçada, por envelhecimento.
O surto de vassoura-de-bruxa – doença fúngica, muito comum em fazendas de cacau do sistema cabruca –, a concorrência voraz do mercado mundial e a falta de incentivos fiscais e econômicos podem ser apontadas como as três principais causas da crise da cacauicultura linharense, iniciada na década de 1990.
A vassoura-de-bruxa reduziu a produtividade, o mercado mundial de chocolate passou a explorar mão de obra quase escrava em outros pontos do globo e a falta de visão dos governantes impede, até hoje, que se tenha leis de manejo, isenções fiscais e linhas de financiamento adequadas à realidade específica da cacauicultura de cabruca.
Manejo sustentável da mata nativa
“A sobrevivência da Mata Atlântica depende de uma lei que permita um manejo sustentável da cabruca”, sentencia a extensionista técnica em agropecuária do Instituto Capixaba de Pesquisa e Extensão Rural (Incaper), atuando há mais de vinte anos no Polo do Cacau do escritório da entidade em Linhares.
A solução, enfatiza, passa por uma legislação que normatize a renovação da floreta nativa, com a retirada dos indivíduos mais velhos e substituição por plantas mais jovens. Com isso, o produtor teria ainda mais uma fonte de renda, com a atividade madeireira. “Teria que fazer um manejo, cortar as árvores e replantar, substituir. Porque daqui a trinta, quarenta anos vão morrer”, explica.
O problema é falta de visão dos legisladores, acentua a extensionista. A proibição de retirar qualquer espécime nativo, devido à legislação nacional de proteção da Mata Atlântica, faz com que o produtor não permita que as mudas nativas – plantadas naturalmente no solo pelo vento ou animais que expelem as sementes após comerem os frutos – sejam arrancadas antes de se tornarem adultas, tamanho em que sua retirada pode gerar multas pesadas contra o produtor.
Se ele deixasse que as pequenas mudas cresçam, o excesso de sombreamento inviabilizaria a produção cacaueira. ao contrário, se lhe fosse permitido cortar as árvores antigas, produziria ensolação suficiente no ambiente, para permitir que as plantas jovens pudessem crescer sem prejudicar os pés de cacau.
Os pequenos agricultores da cabruca “realmente preservam a mata”, assegura Renata. “O pequeno agricultor tem visão mais ambiental, porque produz onde vive, onde é a casa dele. Os grandes vivem na cidade, não têm o mesmo compromisso”, avalia.
o pesquisador da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac) em Linhares, Carlos Alberto Spaggiari, em entrevista para este Século Diário em agosto passado, por ocasião das comemorações do centenário da cacauicultura capixaba, declarou-se em pensamento uníssono com a extensionista Renata Setúbal.
Os “guardiães das APPs da Mata Atlântica local”, informou, são cerca de 700 produtores, em pequenas e médias propriedades, que contribuem com mais de 80% da produção capixaba de seis mil toneladas/ano, a quarta maior do país. E estão descapitalizados, com suas matas de cabruca envelhecidas, e escravos da máfia do preço internacional da amêndoa mais cobiçada do planeta.
“Ele é um protetor da floresta, mas não recebe o benefício por isso”, disse. Os bancos, por exemplo, tratam o cacau de cabruca como monocultura, e não como Sistemas Agroflorestais (SAFs) que são, reclamou.
Tempestade perfeita
Enquanto as políticas públicas não chegam, quem quer sobreviver na cabruca e melhorar seus rendimentos e sua qualidade de vida, “tem que se reinventar”, ensina o cacauicultor Emir de Macedo Gomes Filho, o Emizinho, que recentemente, também se tornou viveirista e proprietário de uma marca de chocolate especiais. “Eu sou viveirista, produzo mudas de cacau, e entrei no ‘mundo maravilhoso do chocolate’”, conta.
O cenário atual, no entanto, ele reconhece estar muito difícil. “É a tempestade perfeita: falta de preço e de produção”, metaforiza. ”A situação da cabruca é dramática. O cacau da cabruca está agonizando. Falta apoio financeiro para os produtores que estão descapitalizados, falta apoio governamental”, descreve.
Os produtores locais aguardam com bons olhos a instalação de uma fábrica de achocolatados no município, que anunciou intenção de comprar duas toneladas/ano de cacau, quase metade da produção linharense de cinco toneladas/ano.
A Agricultura de Baixo Carbono (ABC) também passou a integrar a cacauicultura em sua linha de financiamento. Antes, os bancos só disponibilizam o modelo agrofruta, de três anos de carência e cinco anos pra pagar.
O modelo ABC é de sete anos de carência e doze para pagar, com juros de 7,5% ao ano. “O cacau expressa seu potencial produtivo com cinco anos”, diz Emir, explicando porque uma carência menor que essa não é viável para o cacauicultor da cabruca.
O problema é que os produtores descapitalizados não conseguem acessar o financiamento do ABC. E aí, onde fica a saída?
Fazenda de chocolate
Na sua busca por se reinventar, Emizinho descobriu que a solução é “produzir qualidade”. Com um cacau de qualidade, consegue-se diminuir a dependência do mercado de commodities.
Carlos Spaggiari conta que existem atualmente seis a sete milhões de produtores no mundo, boa parte deles em áreas muitos pobres do planeta, que vendem, basicamente, para apenas oito a dez grandes compradores mundiais. Trabalho escravo e infantil, agrotóxicos e desmatamentos são práticas que costumam tornar o preço mais barato e para as quais os tais grandes compradores fazem cômoda vista grossa.
O mesmo valor pago a um cacau produzido em péssimas condições, do ponto de vista social, ambiental e trabalhista, lamenta o pesquisador da Ceplac, é comprado pelo mesmo preço que um cacau produzido em cabruca – sombreado pela floresta – e com mão de obra dignamente contratada.
Por isso, insiste Emir, é preciso entrar num mercado mais justo, de chocolates de alto padrão, voltado a um consumidor exigente, disposto a pagar mais por um produto melhor, seja no mercado interno ou externo.
“Posso exportar futuramente, posso vender uma parte para chocolateiros, e já produzo o meu próprio chocolate”, conta Emir, que conseguiu uma certificação holandesa, a UTZ. Por enquanto, suas amêndoas são processadas em uma fábrica parceira, mas ele já se prepara para, futuramente, fazer todo o processo dentro da sua fazenda, em Povoação. “Uma ‘fazenda de chocolate’ e não só de cacau”, profetiza.
“O verdadeiro chocolate começa dentro da fazenda”, conta, referindo-se ao zelo com todas as etapas de beneficiamento e pós colheita: colheita seletiva, fermentação ideal, secagem ao natural.
O aroma de fermentação, explica, se obtém por meio de boas práticas agrícolas. Já o aroma de constituição vem da natureza do cacau. “O meu cacau confere sabores diferenciados porque está dentro da cabruca”, afirma, com segurança.
Primeiro capixaba premiado em Paris
Em 2017, o seu chocolate ficou entre os 18 melhores do mundo no Salão Internacional do Chocolate de Paris, o evento mais prestigiado do setor em todo o mundo. Foi o único brasileiro entre os finalistas, de cinco continentes. É a terceira vez que um brasileiro alcança essa premiação em toda a história do evento, e a primeira vez de um capixaba.
Um bom chocolate, explica, tem alto teor de cacau, pelo menos 40%, alguns chegando a 80%. Bem mais, portanto, do que os 20% em média dos chocolates das grandes indústrias – alguns chegam a 11%! – que compram commodities, misturando amêndoas de baixa qualidade vindas de vários lugares, chegando a um produto sem identidade e sem as qualidades medicinais e nutricionais fantásticas do Alimento dos Deus.
O chocolate bem produzido, ao contrário, conserva os antioxidantes naturalmente presentes nas amêndoas de cacau, que eliminam radicais livres, aumentam produção de serotonina e endorfinas, sendo benéfico para o coração e a memória, além de excelente fonte de energia.
Alguns estudos já elegeram a amêndoa de cacau como o maior superalimento do mundo, como registra David Wolfe no seu e-book “A última palavra em superalimento: Chocolate cru”. “A amêndoa de cacau contém mais de 1200 compostos quimicamente identificáveis, fazendo dela uma das mais complexas substâncias comestíveis da face da Terra!”, conclama o autor, mencionando também um compilado de outras propriedades já comprovadas do super-alimento: principal fonte de antioxidamentes (sendo seguido pelo açaí) e de magnésio (mineral do coração), além de ser um anti-depressivo natural, entre outros milagres nutricionais. “Não existe alimento melhor no mundo do que o leite materno. Mas depois dele, o melhor é o chocolate”, festeja Emir Filho.
Curiosidades sobre o cacau
Fonte: Livro “O Cacau é show”, de Alexandre Costa
Propriedades afrodisíacas
As propriedades afrodisíacas do chocolate ainda não foram cientificamente confirmadas, mas o senso comum já as aceita como fato há séculos. Quando as primeiras sementes de cacau americanas desembarcaram no Velho Mundo, as cortes espanhola e francesa e depois toda a Europa tomaram a bebida sagrada dos povos originais do Novo Mundo como poderoso afrodisíaco, hábito que criou personagens lendários, como os escritores Giacomo Casanova, italiano que tinha uma mistura de champanhe e chocolate como poderosa arma de sedução, e o francês Marquês de Sade, que usava a iguaria em rituais eróticos.
Histórias e lendas
Antes de se tornar uma das guloseimas mais populares (há mais pontos de venda de chocolate do que farmácias no Brasil) e preferidas entre crianças, mães e adultos em geral do mundo inteiro (“nove entre dez pessoas adoram chocolate; a décima está mentindo”, bem disse o cartunista americano John Q. Tullius), o chocolate foi símbolo de poder e status entre a nobreza européia a partir do século XVII e, desde o ano 1000 a.C., aproximadamente, foi a bebida sagrada dos maias, astecas e olmecas.
Utilizada em rituais de nascimento, casamento e morte (apenas as amêndoas secas ou seu extrato, feito apenas com água fervente), em banquetes dos nativos do novo continente (temperados com mel e pimenta) ou como tônico pelos guerreiros antes das batalhas. Esta última fórmula foi adotada, segundo contam, pelo chocólatra Napoleão Bonaparte como segredo de sua invencibilidade. As amêndoas secas e torradas do fruto do cacaueiro também já foram utilizadas como moeda para compra de escravos e pagamento de tributos aos reis pré-colombianos.
Colombo, aliás não chegou a conhecer as maravilhas do cacau. Foi o conquistador espanhol Fernando Cortez o primeiro europeu a se deixar seduzir pelo inusitado sabor e efeitos do xocolatl dos nativos – bebida feita a partir de amêndoas torradas e moídas acrescidas de água quente e, em ocasiões especiais, adoçada com mel, flores e até temperadas com pimenta. “Essa bebida é a coisa mais saudável e a melhor substância do que qualquer coisa que se possa beber no mundo”, diz uma anotação atribuída a Cortez. Foram os espanhóis, aliás, que disseminaram a bebida no Velho Mundo. Mais precisamente as freiras da Companhia de Jesus que tocaram as primeiras fábricas de chocolate, ainda na forma líquida, no século XVI.
Ao chegar na França, na bagagem da princesa Ana Maria Maurícia, filha do Rei espanhol Felipe III, o chocolate iniciou sua dispersão pela Europa como iguaria requintada, privilégio dos membros da nobreza, servida em prataria fina por seus chocolateiros particulares ou em luxuosas casas especializadas. É dessa época que a bebida sagrada dos maias, astecas e olmecas, que já foi considerada pecado na Espanha, cristaliza sua fama de afrodisíaco entre a nobreza européia.
A popularização do negro líquido começou a partir das primeiras experiências industriais. Um marco foi a invenção do químico holandês Coenrad van Houten, em 1828, que permitiu produzir o cacau em pó, tornando mais prático o preparo da bebida. A partir daí, vários nomes conhecidos – químicos, inventores e industriais como Nestlé, Quakers, Tobler, Hershey – hoje foram ladrilhando, com criatividade e boas pitadas de sorte, a história do chocolate que conhecemos hoje, leia-se ao leite e em barras.
Alquimia básica do chocolate
A primeira etapa no processo de produção de chocolate é a fermentação das amêndoas do cacau. Depois de retirado o excesso de polpa, as sementes fermentam em cochos de madeira durante cinco dias em média. Essa é uma das etapas mais importantes, que irão determinar, em grande parte, a qualidade do aroma e do sabor do chocolate.
Após fermentadas, elas são postas em barcaças para secarem. Dependendo da insolação e/ou temperatura local, podem ficar até oito dias secando, sendo remexidas constantemente durante o período.
Em seguida, as amêndoas secas são descascadas, quebradas e torradas, chegando a menos de 1% de umidade. São os “nibs” de cacau.
Quando moídos, os nibs geram o “líquor”, uma pasta de cor profundamente escura. Ao ser prensado, o líquor produz a manteiga e a chamada “torta de cacau”, esta, com cerca de 10% de gordura apenas.
Além do uso farmacêutico, a manteiga também produz o chocolate branco. E da torta é feito cacau em pó e também o chocolate tradicional, escuro.
No processo industrial convencional, as chocolateiras adicionam, ao líquor, mais manteiga de cacau e açúcar e, em se tratando de chocolate ao leite, também o leite em pó.
Cacau em pó
Para serem pulverizadas, as amêndoas precisam passar por temperaturas de até 130°C, que saturam sua gordura, e depois, pra compensar a alta acidez desse processo, recebem adição de alcalinizantes sintéticos. O resultado é um produto que, além de saturado e cheio de aditivos sintéticos, ainda perde pelo menos um dos seus principais super-poderes, que são seus antioxidantes.
Fonte: Espírito Cacau