Foto: Vitor Taveira
Visitar o ateliê de Kléber Galvêas na Barra do Jucu, em Vila Velha, é toda uma experiência sensorial. Logo na entrada, o inquieto artista nos recebe num jardim em que conta história de diversas plantas nativas da Mata Atlântica ali conservadas e outras espécies forâneas. Fala das mil utilidades da samuma e de outras árvores nativas que eram tão comuns e hoje quase desapareceram do bairro.
Mais adiante, mostra também as flores de “amor agarradinho”, as folhas de “milome”, com formato que lembram um pênis e amargor usado para saborizar cachaças. Dali já podemos vislumbrar a simpática casinha branca com detalhes azuis, um dos últimos exemplares preservados das construções tradicionais dos pescadores da região.
Nas paredes de entrada estão expostos alguns dos Octógonos de Flores. Uma série de pinturas florais em que usou quadros octogonais, em direta ironia aos octógonos das lutas de vale-tudo. “São eventos milionários“, diz o artista, questionando o quanto de valor a sociedade dá a esse tipo de evento, enquanto vira as costas para a arte. Kléber, como Dom Quixote, parece um desajustado a esses tempos. Talvez não tão preso ao passado, mas a um futuro possível, em que a arte valha mais do que porradas.
Andando pelas salas do ateliê, um verdadeiro passeio pelas paisagens e pela cultura do Espírito Santo, pintadas por ele em diversas obras. Além das obras críticas, como “A casaca quebrada” e “As masmorras de Paulo Hartung”. Também, temporariamente, um belíssimo quadro em restauração de autoria de Homero Massena, seu grande mestre nas artes. Jogando com as ilusões de ótica provocadas pelas linhas que compõem seus quadros, Kléber brinca com os visitantes, enquanto explica didaticamente a composição das pinturas, as diferenças de perspectivas e ensina sobre impressionismo e expressionismo.
Em outra sala, conta sobre a arte abstrata, que desenvolveu numa estadia em Portugal, onde foi recebido por um parente distante, também pintor. “Quando baixa o santo português, sou abstrato”, diz, mostrando o quadro que produziu a partir de materiais descartados pelos vizinhos.
Em outro recinto da antiga casa, obras que Kléber considera uma das maiores riquezas do Ateliê, vestígios de desenhos feitos diretamente na parede pelo próprio Homero Massena. Num deles, logo acima da porta, passarinhos pintados. O último deles, ainda a lápis. Galvêas conta que esta seria uma obra inacabada do mestre. Enquanto a fazia, sentiu-se mal. Logo foi hospitalizado e veio a falecer.
Juntando pó de minério para pintar
Logo, caminhamos para “a cereja do bolo”, as obras da série “A Vale, a Vaca e a Pena”, que decora as paredes da varanda de fundo da casa onde Kléber Galvêas vive, nos fundos do Ateliê. São 21 anos de história de uma arte-protesto que já virou tradição: os quadros são pintados anualmente com o pó de minério acumulado no local.
Na mesa ao centro, uma tela ainda em branco- ou nem tanto- cercada por barbantes com o aviso de “Não passar”. Antes de driblar os barbantes para adentrar ao recinto temporariamente proibido, ele empurra com as mãos para uma folha de papel o pó preto que se acumulou durante uma semana na mureta que divisa a varanda do jardim. Com um imã posicionado abaixo vai atraindo o pó, até juntá-lo no centro da folha, mostrando o magnetismo presente no minério.
A história destes quadros começa em 1997, às vésperas da privatização da Companhia Vale do Rio Doce – hoje só Vale. “A gente pensou em usar a arte para documentar que já havíamos sofrido com a poluição. Acreditava-se que, por ser estatal, o governo relaxava na fiscalização, mas que sendo privatizada, o governo fiscalizaria e a poluição acabaria. Foi uma decepção enorme”. Ledo engano. Doce ilusão.
Naquele ano, ele separou dez telas brancas, que ficaram expostas à acumulação do pó preto. Elas ficaram ao ar livre a partir dos 50 dias que antecederam o leilão. A cada cinco dias, Kléber “pintava” uma. Assim registraria a intensidade do acúmulo da poeira mineral. O último quadro seria composto na data do leilão, que acabou sendo adiado por dois dias por conta de ações judiciais.
No ano seguinte, 1998, pensava em fazer um bolo para comemorar mas “o bolo saiu mais preto que antes”, a poluição aumentou e pintou um bolo de minério com a inscrição “756 milhões de parabéns”, número que faz referência ao valor do lucro obtido pela empresa naquele ano pós-privatização. “O lucro aumentou muito, para isso aumentou a produção e, logo, a poluição”, lamenta.
A poluição continua, assim como a saga dos quadros, registrando a cada ano um protesto bem humorado pintado com o dedo polegar e depois fixado com verniz, tendo o pó de minério como matéria-prima. Ele mantém as datas originais do ano do leilão: a colocação da tela ao ar livre 50 dias antes e o desenho na mesma data em que havia sido marcado o arremate em 1997.
Iniciado em seu ateliê na Prainha de Vila Velha no final dos anos 90, o projeto foi depois transferido em 2002 para o novo local de suas artes, a Barra do Jucu, onde mora e mantém suas obras expostas. Ali, ele diz que pela distância chegam grãos menores, sendo a obras mais claras que as iniciais.
Apesar da distância e do entorno repleto de árvores nativas, da tela ser colocada numa área protegida do vento, mesmo assim, o pó preto se acumula. Kleber considera uma tragédia ainda mais dramática que a do Rio Doce, pelo tamanho da população atingida na Grande Vitória, citando exemplos de silicose, deformação de fetos, inspiração de benzeno e outros problemas que já apareceram em denúncias e até numa Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Além das telas, também foi produzida uma cartilha com versos em cordel, pintura de painel e uma peça de teatro.
“Continuei com o projeto todos esses anos para ver se a curva decresce, se diminui a poluição, e para provocar discussão sobre o assunto, que fica esquecido”, afirma o artista. Sobre o desenho a ser feito neste ano, ainda é cedo pra dizer. Os quadros costumam se relacionar com temas atuais de cada momento e a definição só vem na hora de pintar. O resultado das telas de 1997 até 2014 podem ser visualizadas no site do artista, onde também se encontram mais informações sobre o projeto “A Vale, a Vaca e a Pena”, da obra em geral, artigos escritos e o ateliê de Kléber Galvêas.
Perguntado sobre o resultado de sua batalha quixotesca de décadas contra uma empresa gigante, ele afirma sem pensar: “só fracasso”. E cantarola em seguida com seu bom humor: “fracaaaasso da vida…”. “Não consegui sensibilizar os políticos que fazem as leis que nos deviam proteger, nem o Ministério Público. A mídia repercutiu, mas acho que depois a Vale fez um trabalho de bastidores muito eficiente. Teve matéria que foi gravada e editada e não foi para o ar”, revela.
“Espírito Santo: céu de ferro, mar de petróleo”, reflete ao final o artista, lembrando que os impactos socioambientais não param por aí. Sem resolver um problema, já surgem outros. Pode a arte fazer algo contra isso? “Nosso negócio não é fazer escândalo, é só discutir a questão. A função primária do artista é provocar. Arte é comunicação, não existe arte sem público. O cara fez uma tela e colocou dentro do armário, fez um objeto. Vai fazer arte na hora que alguém apreciar aquilo, sentir a provocação e se sensibilizar”, filosofa.
É possível remar contra a maré sem ser taxado de maluco ou sonhador, como Kléber tantas vezes já foi? Lembremos do livro de Cervantes, em que Quixote diz: “Mudar o mundo, amigo Sancho, não é loucura nem utopia, mas sim justiça”.
SERVIÇO
Ateliê Kléber Galvêas
Local:Rua Antenor Pinto Carneiro, 66, Barra do Jucu – Vila Velha
Horário: Aberto todos os dias de 9h às 18h
Entrada gratuita
Agendamento de visitas pelo e-mail [email protected]