Finalizando a nossa análise do poeta Augusto Frederico Schmidt, podemos reiterar a sua grandeza dentre os poetas brasileiros, conhecido sempre como o autor de “Canto da Noite”, um poeta lírico por excelência, em meio ao fervilhar do Modernismo, movimento este de caráter mais iconoclasta e renovador do que propriamente lírico, num primeiro momento.
Podemos dizer que Schmidt traçava uma linha paralela que só seria reencontrada, mais tarde, com poetas como Vinícius de Moraes e Cecília Meireles, já em chaves líricas mais avançadas do que uma herança direta do romantismo e do simbolismo, caráter poético este que ainda pulsava na escrita poética de Augusto Frederico Schmidt. Por fim, Schmidt é um dos poetas ideais, destes da chamada “Poesia imperecível”, a qual Novalis dizia ser o “autêntico real absoluto”.
Biograficamente, o homem de negócios que foi Schmidt não eclipsou em nada o seu caráter de artista, e nem a sua verve lírica de poeta herdeiro da tradição romântica e simbolista, ou ainda sua própria produção poética e literária como um todo.
A poesia de Schmidt, mesmo sendo levantado aqui no texto que tem forte influência de uma tradição romântica e simbolista, nunca deixou de também estudar formas e conteúdos modernos, e seu lirismo, por outro lado, também era reflexo forte de nossa velha poesia de Portugal, que sempre foi influência para muitos dos poetas no Brasil, e por muito tempo.
Por fim, um aspecto que liga muito a poesia de Schmidt a uma imagem consolidada de poesia tradicional, pode ser o fato de que ele era um poeta também adepto de um grande transbordamento verbal.
POEMAS
AURORA LÍVIDA (1958)
POEMA DE NATAL : O poema levanta a imagem do poeta Ungaretti, e nos lembra da tragédia pessoal deste poeta que perdera um filho que morreu criança, no que temos : “A IDEIA de escrever um/poema de Natal/Traz-me à lembrança o poeta Ungaretti,/Na sua casa em Roma,” (…) “Ungaretti é um pássaro revoando,/Volteando, girando e, de súbito,/molhando/As largas asas duras nas águas/Onde pousa e, às vezes, se move/A imagem do seu filho perdido.”. Logo Schmidt evoca liricamente o poeta italiano e de como esta dor tão central definiu grande parte da poesia de Ungaretti, no que segue : “Ungaretti possui um tesouro,/E este dia de Natal reabre-lhe/Não só a ferida, mas também/a vontade de viver/Para que viva nele e com ele o seu fruto.” (…) “Possui a sua própria dor a queimar-lhe/o peito e a acompanhá-lo./E enquanto sua lembrança esvoaça/Em torno do filho pequeno que partiu,/Poupa-lhe Deus miséria igual à minha :/Contemplar nesta hora festiva/A face morta da criança que eu fui.”. E Schmidt mal compara, por fim, sua imagem infantil desaparecida como algo melancólico, sem a chama de uma tragédia como a de Ungaretti.
BABILÔNIA (1959)
OUVE A TARDE CHEGAR … : O poema nos evoca Jerusalém, a imagem de Babilônia, e um deserto logo se abre, no que temos : “OUVE a tarde chegar em Babilônia./O rio leva suas águas mansas/Até onde se ergueu Jerusalém/E hoje é o deserto, a ruína, a solidão.” (…) “Pensa em Jerusalém e no destino/O Profeta. O fumo da tarde que se vai/Hesita, e na sombra por fim repousa triste./_ Ó meu Deus de Israel! – exclama o Doido –/Corta-me logo as ligações com o tempo/E aquieta no Teu seio o meu tormento!”. A prece é por um Deus, esta conhecida entidade de Israel, que nos corta as ligações com o tempo, para que seja aplacado o tormento deste mundo aflito, prece de um doido, de um profeta.
ÀS VEZES, QUANDO SÓ … : O poema segue com uma meditação ou reflexão sobre o Mal, no que temos : “Às vezes, quando só no quarto estreito/Do hotel, em Babilônia, meditava/Sobre as desditas deste feio mundo/E no Mal triunfante em toda parte;/Quando a aurora da atroz desesperança/Rasgava o véu consolador da noite,/A Rainha do Céu o visitava,/Em doçura e tristeza toda envolta.” (…) “Ó milagre de amor, estranho e forte,/Do próprio desespero vitorioso,/Que as feridas do mundo em flores muda!”. A presença materna de uma Rainha do Céu então salva o poeta da visão desolada que ele tinha, a visita desta divindade feminina aquieta o coração de Schmidt, e então ele descansa.
O CAMINHO DO FRIO (1964)
O CAMINHO DO FRIO : O poema evoca o frio, no que temos :“Foi um fruto que caiu da árvore,/Foi alguém que passou na estrada,/Foi um pássaro,/Foi a história de uma viagem que pousou em mim,” (…) “E senti que ressurgiste com tuas mãos pequenas/Com teus olhos que não tinham cor certa;” (…) “E me indicavas o início do caminho do frio dizendo :/“_ É lá, onde se alinham aquelas árvores/Magras e feias, que começa o caminho do frio.””. A presença misteriosa do poema indica, por fim, ao poeta este caminho do frio que dá título ao poema.
POEMAS
AURORA LÍVIDA (1958)
POEMA DE NATAL
A IDEIA de escrever um
poema de Natal
Traz-me à lembrança o poeta Ungaretti,
Na sua casa em Roma,
Via Remuria, 3.
Vejo-o impassível, o rosto difícil
De florir um sorriso,
Com os seus olhos que parecem
cansados
De contemplar o fundo do mar.
Ungaretti é um pássaro revoando,
Volteando, girando e, de súbito,
molhando
As largas asas duras nas águas
Onde pousa e, às vezes, se move
A imagem do seu filho perdido.
Ungaretti tem – e é seu consolo –
A certeza de que o filho
Não tocou no mal,
Que não chegou a perceber
Que os seres são sempre órfãos
E caminham sozinhos.
Ungaretti possui um tesouro,
E este dia de Natal reabre-lhe
Não só a ferida, mas também
a vontade de viver
Para que viva nele e com ele o seu fruto.
Penso com inveja em Ungaretti.
Invejo a tristeza do poeta.
Quem tem uma tristeza assim,
Não está de todo abandonado,
Não perdeu os últimos sinais
Que reconduzem à cidade da infância.
Neste dia de Natal, na sua casa em Roma,
Via Remuria, 3,
O poeta Ungaretti está menos só do que eu.
Possui a sua própria dor a queimar-lhe
o peito e a acompanhá-lo.
E enquanto sua lembrança esvoaça
Em torno do filho pequeno que partiu,
Poupa-lhe Deus miséria igual à minha :
Contemplar nesta hora festiva
A face morta da criança que eu fui.
BABILÔNIA (1959)
OUVE A TARDE CHEGAR …
OUVE a tarde chegar em Babilônia.
O rio leva suas águas mansas
Até onde se ergueu Jerusalém
E hoje é o deserto, a ruína, a solidão.
Um pássaro volteia no ar, às tontas,
Retardatário, branco e inquieto. As asas
Tocam nas sombras ainda muito leves
Que anteciparam da noite a plenitude.
Pensa em Jerusalém e no destino
O Profeta. O fumo da tarde que se vai
Hesita, e na sombra por fim repousa triste.
_ Ó meu Deus de Israel! – exclama o Doido –
Corta-me logo as ligações com o tempo
E aquieta no Teu seio o meu tormento!
ÀS VEZES, QUANDO SÓ …
Às vezes, quando só no quarto estreito
Do hotel, em Babilônia, meditava
Sobre as desditas deste feio mundo
E no Mal triunfante em toda parte;
Quando a aurora da atroz desesperança
Rasgava o véu consolador da noite,
A Rainha do Céu o visitava,
Em doçura e tristeza toda envolta.
Nos seus braços maternos o tomava
Como se infante fosse, e o embalava
E o fazia dormir um sono ameno.
Ó milagre de amor, estranho e forte,
Do próprio desespero vitorioso,
Que as feridas do mundo em flores muda!
O CAMINHO DO FRIO (1964)
O CAMINHO DO FRIO
Foi um fruto que caiu da árvore,
Foi alguém que passou na estrada,
Foi um pássaro,
Foi a história de uma viagem que pousou em mim,
Foi uma hora de ausência em que voltei a mim mesmo.
E senti que ressurgiste com tuas mãos pequenas
Com teus olhos que não tinham cor certa;
Estávamos assentados no alto muro de pedra.
No sítio em que as águas se dividem.
E me indicavas o início do caminho do frio dizendo :
“_ É lá, onde se alinham aquelas árvores
Magras e feias, que começa o caminho do frio.”
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.