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De Terto para Berto: Ticumbi de São Benedito tem novo mestre

Fotos: Tadeu Bianconi/Mosaico Imagem

Dia 30 de abril de 2018. Quando a chalana aporta no Cais de Conceição da Barra, norte do Estado, trazendo o grupo de Ticumbi e a pequena e delicada imagem de São Benedito das Piabas, vários grupos de cultura popular, moradores e visitantes os esperam chegar. Ao descer do barco, Tertolino Balbino é ovacionado. O Mestre Terto, como é conhecido, havia completado 85 anos dois dias antes, sendo 64 deles à frente do Baile de Congo (Ticumbi) de São Benedito. Depois de meses preparando a transição, esse era enfim seu último dia no comando do grupo, passando o cargo para o então contra-guia Berto Florentino.

“Vamos receber a benção da Virgem da Conceição” canta o Ticumbi em procissão do Cais à praça matriz, seguido por uma lindo e colorido cordão formado por outros grupos de Ticumbi, Congo, Jongo, Caxambu de vários municípios do Espírito Santo, e um grupo de Guarda de Moçambique vindo de Ouro Preto (MG). Chegam até a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, na praça, onde espera um grande palco, um pouco estranho à cultura popular que se constrói e desenvolve pelas ruas.

Se justifica pelo que espera, uma nova apresentação do grupo de Ticumbi liderado por Terto junto à Orquestra Sinfônica do Espírito Santo (Oses) regida pelo maestro Helder Trefzger. Apresentação desta vez foi gratuita, ao ar livre, e pela primeira vez em Conceição da Barra, a “casa” do Ticumbi.

A multidão se ajeita junto ao cair da noite e as cadeiras disponibilizadas na praça logo se esgotam. A emoção é latente em toda parte. O espetáculo se desenvolve entre a música e a encenação, com os rostos visivelmente comovidos em cima do palco. Talvez os desejos oscilem entre a vontade de que a apresentação acabe logo ou que demore a terminar. Pois o grande momento vem depois e terá que chegar.

“Eu tenho que falar pra vocês

de um grande fato que aconteceu

Ali pelo Sapê do Norte

um grande líder apareceu

Foi no dia 27 de abril de 1933

o dia que ele nasceu

Filho de Manuel Jerônimo

e Deolinda Balbino do Rosário

Na cidade de São Paulo

e no Quarto Centenário

Que assumiu o Baile de Congo

de São Benedito de Conceição da Barra

Com a morte de Luiz Hilário”

Esta rima aparece quase ao final da encenação em versos do Reis de Congo. Jonas Balbino, filho de Terto, que depois complementa:

“Tertolino Balbino é o nome

desse nosso mestre querido

64 de cultura dos seus 85 anos vividos”

Terminada apresentação, chega o momento esperado da troca de mestres. O discurso de Mestre Terto é feito todo em versos:

“Eu vou contar o motivo

Pra todos que querem ouvir

Vou contar o meu motivo

que eu saí do Ticumbi

Eu peço com atenção

A todos que me assista

Eu saí do Ticumbi

por causa da minha vista”

A cegueira ocasionada por um glaucoma é uma das poucas razões que poderiam o levar a passar adiante o cargo. Aos 85, Tertolino não só mostrou estar em plena atividade com os versos, como aguentou a procissão e a apresentação que deixou alguns jovens do público cansados ao final do dia. A devoção conduz.

“Nunca tive na escola

Nunca tive professor

Tirando minhas poesias

Sou um simples trovador

O verso do Ticumbi

Foi Jesus quem me ensinou”

O pouco estudo formal não é motivo para menos sabedoria dos homens negros que antes tinham que pedir licença à prefeitura e à polícia para realizar o baile. E nem da humildade, como cantou em seguida Berto Florentino junto aos companheiros, minutos antes de ser diplomado:

“Então agora tô aprendendo,

Que eu sou um mestre novo

Agora tô aprendendo”

E Terto então continuou:

“Você agora é o mestre

Do Ticumbi afamado

Pra comandar essa turma

Por eles vai ser respeitado

Aonde você tiver

eu vou ficar do seu lado”

Seguem respirações profundas para segurar o choro.

“Tem muita gente chorando

Tem muita gente sorrindo

Porque não sabe da dor

Que meu coração tá sentindo

Vou entregar um diploma

Para o Berto Florentino”

Emocionado e com outro verso, chama o novo mestre para perto. Berto avança, empunha um microfone, puxa a voz enquanto suas mãos tremem, tremem muito de emoção. Seu rosto negro, marcante e expressivo, é retrato da resistência e do brincar que passou de geração em geração por sua família. O pai, o avô e outros ancestrais participaram do Ticumbi. Aos 69 anos, ele é brincante há mais de meio século.

Sabendo que o Terto lhe falaria em verso, preparou uma resposta na mesma moeda, ainda que talvez não esperasse que quando o momento chegasse seria tão difícil pronunciar as palavras decoradas. Mas o fez:

“Eu fico muito agradecido

Pela honra que me deste

Antes eu era contraguia

Hoje eu passei a ser mestre

São Benedito é quem te paga

Jesus Cristo te agradece”

Outros versos podem servir como conselho de Tertolino ao novo mestre:

“Pra ser um mestre

Deve ter uma competência

Pra ouvir o que o povo fala

E ter muita paciência

Vou sair do Ticumbi

Mas espero uma recompensa”

E pra finalizar, emenda:

“Eu vou despedir de vocês

Porque chegou a minha hora

Fico muito satisfeito

Contei a minha história

Vocês rezem por mim

Quem tiver saudade chora”

Para terminar, notícias fresquinhas foram divulgadas no palco: a aprovação da Lei do Patrimônio Vivo em Conceição da Barra, reconhecendo o valor dos mestre de cultura popular do município, conhecido como a “Capital da Diversidade Folclórica do Espírito Santo”. E a entrega da comenda de “Embaixador da Cultura de Conceição da Barra” a Terto, que desceu do palco com uma faixa de Mestre Emérito.

Um mestre nunca vai deixar de sê-lo e a liderança espetacular de Terto ainda segue. Transmitiu o cargo por ver que já não podia mais realizar perfeitamente suas funções, mas deve continuar presente nos festejos e transmitindo sua sabedoria para os mais novos.

Já embaixo do palco, uma das netas de Terto traz para perto o filho de um aninho de idade, bisneto do mestre, vestido à caráter para a ocasião. “Olha, ele está vestido de congo, com as fitas coloridas e tudo”, diz conduzindo a uma das mãos enrugadas de Tertolino, enquanto com a outra ele já tocava a pequena coroa de flores que adornava a cabeça do bebê. De geração em geração, o Ticumbi desafia o tempo.

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