O Museu Capixaba do Negro – Veronica da Pas (Mucane) completa 25 anos de criação no próximo domingo, dia 13 de maio. Não por acaso, essa data foi escolhida para a fundação do museu, pois foi neste dia de 1888 que foi assinada a Lei Áurea, que finalmente terminava com a escravidão no Brasil, o último país das Américas a tomar esta medida.
A comemoração da data, porém, é amplamente questionada pelo movimento negro. “Nada a comemorar, muito a questionar. Nada a celebrar, muito a exigir”, diz a nota do Conselho Municipal do Negro de Vitória (Conegro), apoiada pelo Mucane. Entre as questões levantadas pelo Conegro estão a ausência de políticas públicas de inclusão da população “liberta” na época; a omissão da História Oficial sobre as lutas contra a escravização por parte dos negros, já que na narrativa do 13 de maio o protagonismo seria da “bondosa” Princesa Isabel, que assinou a lei; o fato de que na data apenas 5% da população negra ainda exercia trabalho escravo.
Para o Mucane, como um espaço público de resistência, como comemorar 25 anos de existência sem comemorar os 130 da Lei Áurea? “Temos sempre o cuidado de quando falar do aniversário do museu pontuar que não estamos comemorando uma abolição inacabada, pois a assinatura de um papel não nos libertou”, diz Thaís Souto Amorim, coordenadora do Mucane. “Queremos mostrar a importância da manutenção deste espaço. Para demarcar, vamos fechar a rua com aquilo que é nosso alimento, com nosso tambor, nossa forma de nos relacionar, levando às ruas o que acontece dentro das paredes do local todos os dias”.
A estratégia foi subverter a data. A começar nas visitas guiadas das escolas municipais, que nesta semana tiveram como tema a desconstrução do 13 de maio. “Porque todo o descaso com a população negra ‘liberta’ resultou nas desigualdades que persistem ainda hoje especialmente contra negras, negros e povos indígenas”, como lembra a nota do Conegro. “Porque a ‘democracia racial’ no Brasil não existe e nunca existiu”.
E não por acaso no dia 13, a grande atração do aniversário do Mucane é o rapper Rincon Sapiência, “um afro que afronta”, como diz em uma de suas letras. Como poucos, ele traduz por meio da música o espírito dos nossos tempos, os questionamentos ao passado relatado pelas classes dominantes, a denúncia do racismo vigente, as mudanças do presente na luta por transformação. Galanga Livre, seu disco de estreia na carreira solo, lançado no ano passado, conta a história de um negro escravizado que foge após matar o senhor de engenho. A faixa de abertura, Crime Bárbaro, cria a atmosfera musical de fuga, cravada com o refrão: “Canela fina é pra correr, se me pegarem vai doer. Mesmo estando em desvantagem, a sensação é de poder”. O risco e o preço da liberdade. A liberdade como empoderamento, para usar a palavra da moda.
Lembra de como essas liberdades ainda são limitadas para o povo negro e periférico, como em A volta pra casa, dedicada aos trabalhadores que sofrem diariamente do transporte público de má qualidade e à falta de segurança. O medo do estupro e o medo do castigo por ser negro ou negra persistem. Da mulher que desce do ponto tarde da noite (“Ela caminha, semblante preocupado. Escuridão, o bar da rua se encontra fechado”) ao jovem negro e sua mãe que esperam a cada dia que ele possa chegar vivo em casa no país que mais mata no mundo. E mata especialmente o jovem negro.
O artista consegue traçar esse diálogo entre passado, presente e futuro. O passado ocultado pela história e reivindicado como memória, o presente de luta, auto-estima e acesso ao que antes havia sido negado, e a construção do sonho de futuro, de liberdade e igualdade.
O disco inteiro de Rincon Sapiência vai ser um canto à liberdade, “sin perder el ‘flow’ jamás”. Sua sonoridade busca influência do rap de origem americana, mas com incorporação de instrumentos africanos e da força da música afrobrasileira e seus diversos ritmos. Os tambores, também sintetizados em beats, sempre foram uma forma de dizer, de conectar com a espiritualidade e os ancestrais, de estar junto. Congo, samba, capoeira, candomblé. Cantar é uma forma de protestar. Dançar é uma forma de liberdade.
Com sua sapiência, Rincon representa um grito do novos quilombos urbanos que se constroem num mundo globalizado. “Ritmo tribal no baile nóis ginga. Cada ancestral no tronco nóis vinga. Cada preto se sente Zumbi. E cada preta se sente a Nzinga”. Para o movimento negro, o Dia da Consciência não é o da Lei Áurea e sim o 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, considerado herói da resistência.
Rincon retrata uma reconstrução contemporânea da busca de Zumbi, de ser negro em liberdade, embora com os olhos sempre atentos como do “nego fujão” da música que abre seu disco. É que ser negro livre ainda hoje incomoda e não faltam novos capitães do mato. “Infelizmente Bolsonaros não é tipo raro”, diz em Vida Longa, lembrando que o pensamento reacionário com seus tons de preconceito ainda é muito forte e intrincado no brasileiro.
Em Vitória, seu show não acontece sozinho. Dentro da programação de aniversário do Mucane, que começa às 16h de domingo, haverá a performance Kalunga, do Coletivo Emaranhado, que fala da relação de um homem com a divindade Iemanjá. Em seguida, acontece apresentação do espetáculo O Canto da Sereia, em que a cantora Monique Rocha homenageia Clara Nunes. Durante a semana ainda foi inaugurada no museu a exposição “UJUZI: Conhecimento é Poder”, que trata da busca ancestralidade nas artes visuais e também está aberta à visitação.
AGENDA CULTURAL
Programação cultural do aniversário do Mucane
Atrações: Show de Rincon Sapiência, espetáculo “O Canto da Guerreira” com Monique Rocha e performance “Kalunga”, do Coletivo Emaranhado
Quando: Domingo, 13 de maio, a partir das 16h
Onde: em frente ao Mucane, Avenida República, 121- Centro de Vitória