segunda-feira, novembro 25, 2024
24.9 C
Vitória
segunda-feira, novembro 25, 2024
segunda-feira, novembro 25, 2024

Leia Também:

O poeta que pedala rios

Assinatura

Ali vai

aquele homem pequeno

pisando, obtuso,

sobre o próprio rastro.

(Gilson Soares)

Baixo, franzino, fala tranquila. Quem vê Gilson Soares não imagina quantas aventuras passaram por seus olhos, movidas por seus pés. Nem quantos versos saíram de sua mente. Aos 63 anos, o publicitário recorreu à união de três ferramentas tão antigas como futuristas: a poesia, a bicicleta e a filosofia. “Minhas viagens ciclísticas têm um objetivo literário. Na viagem quero me divertir, passear, conhecer o Brasil, pedalar. Mas eu quero escrever, eu viajo para escrever”. Pela mesma razão, estudou Filosofia, embora não tenha se graduado. “Fui na Filosofia buscar fundamento para minha poesia, na época estava lendo poetas que tinham muito posicionamento filosófico”.

Poesia, bicicleta e filosofia. Uma grande aliada para que essas ferramentas funcionassem juntas foi o rio. Geralmente vem acompanhado de planícies, algum vento de frescor, umidade, etc. Foi assim que Gilson pedalou quase seis mil quilômetros em duas de suas viagens, cruzando estados da nascente até a foz, primeiro do Rio Doce (2016) e depois do Rio São Francisco (2017). E em versos escreveu como conselho vivido:

Rumo

Enquanto ouvir

a cantiga de um rio

margeando o seu caminho

siga em frente, meu filho,

você não estará sozinho.

Seu livro, Poesia de bolso: pequenos poemas pedestres (Editora Cândida, 2017) revela um pouco das reflexões destes caminhos. “Esse livro nasceu junto com o projeto de viajar. Nasceu desse espírito da viagem, de sair de ir pra estrada, de se soltar um pouco da nossa estrutura burguesa, onde a gente nasceu e vai contribuindo para construir”, conta Gilson.

A obra foi escrita depois da viagem pelo Rio Doce e o acompanhou na viagem pelo São Francisco, na qual foi doando exemplares em escolas ou bibliotecas públicas de mais de sessenta cidades por onde passou. Alguns também foram vendidos para ajudar nos custos da viagem, junto com uma campanha de financiamento colaborativo.

Nascido em Ecoporanga, noroeste do Espírito Santo, já pedala desde criança. Mas há cerca de oito anos adotou a “magrela” definitivamente como meio de transporte. “Eu tenho vontade de rodar o Brasil todo de bicicleta, se tivesse tempo. Mas o país é grande e a vida não é tão longa.”

Para ele, andar de bicicleta adquiriu muito mais que uma perspectiva de lazer ou economia. “A partir do momento em que comecei efetivamente a andar de bicicleta e a bicicleta passou a ser meu veículo de transporte urbano e interurbano, sempre considerei isso uma atitude política, que considero uma política muito radical, forte, necessária e efetiva. Precisamos começar a ter atitudes anticapitalistas, existem várias outras coisas que se pode fazer. Para mim, a bicicleta também tem essa função”.

Como referência filosófica cita André Gorz, que fala da “ideologia social do automóvel”, explicitando como as cidades estão preparadas para os automóveis e não para as pessoas. O livro de Gilson Soares não deixa de trazer o pedal como instrumento de liberdade, ferramenta contra o sistema, um mecanismo para o “fugere urbem”, para escapar do sufoco da cidade, dominada pelo capitalismo industrial e individualizante, como registra em seu primeiro poema: A cidade

A cidade não tem calma

não tem alma

não tem olhar;

mais fala, que escuta:

refuta a humildade,

A cidade é só

                       velocidade.

Com formato de impressão diminuto que faz juz a seu título Poesia de bolso, o livro traz 58 micropoemas e um prefácio do dramaturgo Wilson Coêlho. Pequena também foi a tiragem e a pretensão. A obra não está à venda em nenhum lugar, exceto com o próprio autor, no boca a boca, de mão em mão.

Talvez seja a sina do poeta, de que quanto mais longo o caminho, mais curta a poesia. A obra está embebida da veia poética e filosófica de Gilson, calcada na simplicidade e no pensar sobre o mundo e vida. Acompanham ilustrações de Mário Conceição Silva, com traços tribais inspirados na arte indígena.

O caminho se faz ao andar

Há uma grande cota de incerteza a cada viagem. Todo planejar pode se esvair diante das circunstâncias, do local, do momento. “Quando saio para viajar descubro coisas muito ao acaso. Não sou planejador, sei que vou para o Rio São Francisco, por exemplo, rumo à nascente na Serra da Canastra, que vou fazer esse percurso até lá e descer margeando o rio. Aí as coisas vão acontecendo”.

No caso da viagem pelo Rio Doce, a reviravolta foi de grandes proporções. Ela havia sido pensada inicialmente em 2013, para ser realizada no ano seguinte, mas teve que ser adiada. E entre o replanejamento de datas e a viagem em 2016, veio a lama de resíduos tóxicos da Samarco/Vale-BHP, que modificou profundamente o rio e suas comunidades. “Senti a queda de um projeto. O que tinha pensado para a viagem mudou totalmente. Pensei em jogar a toalha, mas logo achei que deveria fazer a viagem mesmo assim”.

Enquanto subia saindo de Vila Velha rumo à nascente em Minas Gerais, margeando o rio e a estrada de ferro, notou que pese a tragédia, o “movimento da máquina” não parava em nenhum momento. “Os trens estavam a todo vapor, o tempo todo. Aí pensei: todo mundo chorou e sofreu com a questão do Rio Doce, mas não paramos de consumir. Não paramos de alimentar a máquina”.

Daí, novamente, a reflexão sobre o uso da bicicleta. “Não há necessidade de consumir o quanto a gente consome, a gente pode gastar menos, poluir menos”. É a mesma reflexão que encontra no Laudato Si, do Papa Francisco, figura que Gilson vem acompanhando com interesse e enxerga mais que casualidade na coincidência de sua segunda aventura ciclo-poética ser no rio de nome São Francisco.

O caminho tem suas anedotas. Como ao chegar em Mariana (MG), epicentro do derrame da lama, justamente no dia cinco de novembro de 2016, quando se cumpria um ano do crime socioambiental e movimentos populares organizavam manifestações. “Encontrei um grupo indo para uma praça e me juntei com minha bicicleta, estava querendo participar desse momento de dor e protesto que estava acontecendo”, conta. “Notei que estavam me olhando de forma meio estranha. Quando pararam na praça e começaram os discursos que percebi que estava numa manifestação a favor da Samarco. Fui saindo de fininho…”

Além do livro e poemas, as vivências das viagens também são transformados em crônicas, publicadas no blog Com a Magrela na Estrada, onde registra também escritos de duas aventuras anteriores, pelo litoral sul e montanhas capixabas (2013) e pelo norte do Espírito Santo (2014). Confessa com certo embaraço que está atrasado nas escritas dos passeios pelos rios. “As crônicas são feitas de coisas episódicas que vão se dando na viagem, o acaso traz muita coisa quando você está disposto a ele”, filosofa o ciclopoeta.

“Eu não sou pesquisador, não sou disciplinado, não tomo nota, investigo pouco, não sou um cara, assim, popular, que vou passando pela cidade e falando com as pessoas. Alguns se interessam por mim ao me ver chegando de bicicleta e querem saber mais, aí eu falo”, explica sobre seu modo de passar pelos lugares e de produzir seus textos.

Depois de tantos quilômetros de pedal e tantas linhas de escrita, chegou a uma conclusão: “Escrever é muito mais difícil que pedalar”, reflete a despeito da maioria das pessoas pensarem o contrário, a princípio. “Muitos pensam na dificuldade física, na coragem de sair sozinho com a bicicleta, no difícil que é colocar toda aquela bagagem num espaço exíguo que a bicicleta oferece e ainda levar livros para distribuir. Mas eu prefiro pedalar 3 ou 4 mil quilômetros, voltar pra casa e escrever com calma”.

Aos 63 anos, depois de deixar um vínculo empregatício para viajar, e já com quatro livros publicados, finalmente passou a se ver realmente como escritor. “Sendo escritor, tenho a obrigação de escrever, então prometi relatar essas viagens”. E isso também vem vinculado com a responsabilidade política. “Chegou um momento em que meu posicionamento político coincide com esse passo para a literatura. Penso que precisamos efetivamente nos posicionar mais como poder, como poder anticapitalista, de se contrapor à onda que o capitalismo te leva”, afirma.

Agora, Gilson se prepara para mais uma aventura ciclo-poético-fluvial, desta vez rumo às suas origens. Em breve irá pedalar de sua casa, em Vila Velha, até a nascente do Rio Dois de Setembro, em sua terra natal, Ecoporanga. Lá, a partir do dia 31 de maio, se junta a um grupo de locais e forâneos que vai realizar uma caminhada ecológica de quatro dias às margens do rio.

A mensagem do final do seu livro serve de despedida:

Tchau

Até breve, meus queridos,

vou ao sol.

Se voltar,

voltarei iluminado.

Mais Lidas