A Prefeitura da Serra inaugurou na última terça-feira a praça do bairro Praia de Carapebus. Com uma notável ausência: obras de graffiti de mais de dez artistas da Grande Vitória e do Paraná foram apagadas. Depois de muita expectativa, o novo espaço onde havia um campo de futebol abandonado ganhou um campo society, brinquedos, palco, academia da terceira idade e outros espaços. Mas artistas e movimentos da sociedade civil reclamam da insensibilidade do poder público em relação à arte urbana.
O grande muro, com cerca de três metros de altura e quase 100 metros de largura, incluía mais de 20 obras de, pelo menos, doze artistas de trabalho reconhecido no Espírito Santo e Brasil, como Luhan, Starley, Keka, Base, Patrick, AQI Luciano, Rodrigo Borges, Moris, Pera, Patrick e um casal paranaense. Luhan estima que ali houvesse cerca de 60 dias de trabalho dos artistas e uns R$ 8 a R$ 10 mil em materiais, tudo feito investindo o tempo, o talento e o dinheiro de cada um, sem qualquer apoio de governo ou empresas.
Luhan Reis mora no bairro há cerca de 10 anos e foi o principal articulador das pinturas, que estão no muro de uma creche, onde pediu permissão para iniciar os trabalhos. A primeira pintura é de 2014 e, ao longo dos últimos anos, pouco a pouco outros artistas e trabalhos foram sendo inseridos ali. “Pela localização tomamos o cuidado de fazer desenhos lúdicos, educativos, com o desenho de crianças brincando ou um jacaré, já que a lagoa do lado tinha jacaré e as professoras usavam o desenho como gatilho para ensinar sobre o lugar”, conta o artista.
Outras obras apagadas chamavam a atenção para a valorização do povo negro e da ancestralidade, como a belíssima dupla de desenhos lado a lado feitas por Luhan e Starley.
“Quando se apaga um trabalho sem o consentimento do artista de rua, é como se estivesse apagando a história, matando um sonho, silenciando a voz de alguém que finalmente se enxerga como um protagonista social. O graffiti se deteriora e até ser apagado pode ser comum, mas o que me incomoda é o apagar por apagar, não pra renovar, agregar, oportunizar. Mas apagar porque gerou desconforto, incômodo, estranhamento, incompreensão”, declarou Starley, que lembrou que o graffiti é uma arte valorizada internacionalmente e lamentou a “falta de sensibilidade presente nos órgãos 'competentes'” .
A Secretaria Municipal de Obras da Serra (Seob) alegou que “com a construção da praça da Praia de Carapebus foi necessário realizar a pintura do muro, já que o grafite estava deteriorado e parte da arte seria ocultada pela nova arquibancada do campo de futebol que foi construído”. Ressaltou ainda “a comunidade pode se unir para realizar uma nova pintura no local”.
Luhan argumenta, no entanto, que a arquibancada não cobre mais que uma pequena parte do muro. E que se alguns desenhos já estavam deteriorados, havia obras que foram terminadas dias antes do início da colocação de tapumes para início das obras de construção da praça. “Se não ajudam, poderiam ao menos não atrapalhar”, disse.
“Uma obra de arte não se apaga, se quebra ou se queima. Se restaura. Dizer que estava deteriorado como justificativa para apagar mostra a falta de entendimento sobre arte urbana pública do poder público. O graffiti é muito respeitado, queremos um olhar mais acolhedor com a cultura urbana”, disse Deb Schultz, integrante da Nação Hip Hop Brasil, uma rede presente em 14 estados do país. Ela afirmou que o grupo estuda formas de manifestar seu repúdio e, inclusive, medidas judiciais cabíveis em relação ao caso.
Presidente do Conselho Municipal de Juventude da Serra (CMJ) e morador de Praia de Carapebus, Sebastião Câncio também lamentou o caso. Ele ressalta que a nova praça representa um avanço para comunidade como um espaço com grande potencial para ser um ponto de vivência coletiva. “O CMJ vinha acompanhando o projeto através do conselheiro Gabriel Campos, para que o painel fosse respeitado, e nos foi garantido pela liderança comunitária que seria mantido, porém, o mesmo foi pintado próximo à data de inauguração, evidenciando que as artes não interferiam no projeto em si”.
O líder comunitário Anderson Muniz também lamentou o incidente. Ele foi responsável pelo diálogo da prefeitura com Luhan. Diante do pedido de restauração, Luhan preparou um orçamento enviado à Prefeitura, que incluía a compra de tintas e um valor de diárias para apoiar nos custos dos artistas. Um orçamento que afirmou ser de menos de R$ 10 mil, com cerca da metade em material. Mas nunca recebeu retorno da municipalidade.
Anderson afirma que foi informado pela prefeitura que não havia recurso para pagar a restauração do muro. “A praça custou mais de R$ 500 mil, mas não se pode investir R$ 9 mil para restaurar os grafites. E ainda o apagam. Antes do poder público chegar, os artistas já tinham ocupado o espaço. Parece que não quiseram que isso ficasse visível, a praça nova e o graffiti há muito tempo ali”, questionou Sebastião Câncio.
O presidente do Conselho de Juventude afirma que artistas e coletivos estão se articulando para reivindicar uma resposta do poder público. “Temos como objetivo que a ação seja reparada, com medidas concretas que possam garantir que os artistas serranos possam encontrar acolhimento merecido com políticas que fortaleçam a cena, e impeça evasões de artistas e talentos como vem acontecendo há anos”. Ele lembrou que depois da destruição de rampas de skates em bairros do município, foi conquistado que a prefeitura consultasse a Associação de Skatistas para modificação, demolição ou construção de pistas. Na falta de uma associação de grafiteiros, o CMJ poderia ser o espaço para consulta.
O desabafo de Starley, que é um dos organizadores na Serra do evento Origraffes, um dos mais importantes eventos de graffiti do país, vale para reflexão sobre o caso. “A tinta na parede, a lata de spray, às vezes representam o último suspiro de quem não vê a luz no fim do túnel. Não há investimentos reais e nós realizamos intervenções com nossos próprios recursos, crendo em um ideal. Aí vem o poder público e simplesmente apaga uma composição de vários artistas, simples assim: 'apaga aí porque vai atrapalhar aqui'. Acredito que deveria haver um investimento artístico no espaço em questão”.