O painel integrou o último dia da IV Conferência Internacional de Direito Ambiental, iniciada na última quarta-feira (6), no Centro de Convenções de Vitória.
“Vocês já viram os textos dos acordos do PIM [Programa de Indenização Mediada, da Fundação Renova]?”, perguntou, em seguida, aos presentes. “Eles dizem que a Fundação Renova não reconhece a responsabilidade pelos danos causados! As indenizações são o quê, então? Caridade?”, ironizou, conclamando a entidade anfitriã do evento a se posicionar: “OAB: pelo amor de Deus, questione isso!”.
A condução pouco isenta do Judiciário também foi alvo de crítica do procurador mineiro. “O Judiciário, talvez por estar tão sobrecarregado, também tem baixado a cabeça para as empresas”, alertou, citando vários aspectos dessa má gestão jurídica, como a escolha da 12ª Vara Federal, em Belo Horizonte, como o juízo das ações gerais do caso. “Não enxergo a 12ª Vara como a mais adequada. Isso só interessa aos causadores do dano”, afirmou, evidenciando o providencial distanciamento que a capital mineira guarda dos dramas vividos pelos atingidos. “O juízo precisa sentir”, conclamou.
Também defendendo a importância do “sentir”, a procuradora de Vitória e professora de Direito Ambiental e Compliance da FDV, Flavia Marchezini, identificou-se como atingida pelo maior crime ambiental do Brasil e o maior da mineração mundial.
E enfatizou a dimensão gigantesca dos danos, ao mencionar os parâmetros utilizados para classificar os riscos ambientais de uma atividade, como baixo, médio, alto, altíssimo ou catastrófico, informando que catastrófico se aplica quando os danos atingem áreas acima de 10 km. “Foram atingidos 650 km!”, exclama, citando apenas a extensão ao longo do Rio Doce, excluindo-se o oceano Atlântico.
Segura?
Esse é um dos casos, argumentou, em que “a probabilidade tem menos importância, quando as consequências podem ser catastróficas”, acrescentando que a classificação dada à barragem de Fundão, na época do rompimento, era de “segura”.
Essa boa reputação prévia da barragem da Samarco/Vale-BHP foi abordada criticamente também por José Cláudio Junqueira Ribeiro, professor da Faculdade Dom Helder Câmara, em Minas Gerais. Em sua fala, ele lembrou que a classificação foi estabelecida no banco de dados ambientais, que engloba as barragens de Minas Gerais (437, apenas de mineração), e foi criado em 2009, como consequência de um rompimento ainda maior, ocorrido em março de 2006, quando vazaram 130 milhões de metros cúbicos de rejeitos, mais de três vezes o volume de Fundão, estimado em 40 milhões m³, sendo que 19 milhões chegaram ao mar.
Ao quantificar o crime, José Claudio citou as 19 pessoas mortas, os 835 hectares de áreas protegidas e os 1.600 hectares de áreas ribeirinhas inundados pela lama (ou coloide, como ele renomeou), além dos 150 mil processos na Justiça [30 mil só no Espírito Santo] e das multas, que somam R$ 345 milhões por parte do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e R$ 300 milhões pelo Estado de Minas Gerais (enquanto o Espírito Santo emitiu meros R$ 1 milhão em multa), sendo que apenas R$ 10 milhões estão sendo pagos, em sessenta prestações.
Lama ou coloide, a procuradora Flavia opina que não se trata de “rejeitos”, mas sim de “resíduos” de mineração, visto que são materiais que poderiam ser reaproveitados em outros processos industriais, ou mesmo ter sua produção reduzida, se utilizadas tecnologias mais eficientes, já disponíveis no mercado e adotadas pela própria Vale em outros países. “E o pouco gasto a mais com a adoção dessas tecnologias poderia ser amenizado com a reutilização desses resíduos”, sugeriu.
Princípio da transparência
Ambos os professores e o procurador Helder teceram considerações duras contra o atual sistema de licenciamento ambiental, sendo seguidos pelo último palestrante do painel, o defensor público Gabriel Vicente Riva, membro do Fórum Capixaba do Rio Doce, que reúne dezenas de entidades da sociedade civil, além de representantes da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
“Licenciamento ambiental não é ferramenta de proteção ambiental, é ferramenta de desenvolvimento econômico”, disparou José Cláudio, enfocando a fragilidade atual das condicionantes ambientais, vistas por ele como “o câncer do licenciamento ambiental, pois são sempre postergadas e nunca cumpridas”.
“Os gestores se negam a aplicar o princípio da transparência nos licenciamentos ambientais”, reclamou. “O EIA [Estudo de Impacto Ambiental] é confidencial!”, disse, citando, como exemplo recente, o licenciamento de uma barragem da Anglo American, em Conceição do Mato Dentro/MG, “mais alta que Fundão e em um afluente do Rio Doce”, onde foi suficiente a entrega do EIA ao órgão licenciador. “Apenas a entrega do EIA!”, protestou o procurador.
Quem paga, manda
Flavia se reportou à Lei das Sociedades Anônimas e à função primordial do licenciamento ambiental, que é “conformar o interesse da livre iniciativa ao interesse público”, para expor a situação paradoxal, contraditória e perigosa em que são colocadas as empresas de consultoria que elaboram os Estudos e Relatórios de Impacto Ambiental (EIA-Rimas) para as empresas em processo de licenciamento ambiental.
“É muito complicado contrariar quem nos remunera. A gente sempre ‘reza conforme a cartilha de quem paga’”, disse, sugerindo uma mudança na forma de contratação dessas consultorias, que, hoje, ao mesmo tempo que não podem ir contra quem as contrata (segundo a Lei das Sociedades Anônimas), devem também adequar os interesses de suas contratantes aos interesses públicos (função primordial do licenciamento ambiental).
“É preciso repensar esse modelo, essa matriz econômica. Vamos pensar nisso!”, convocou os colegas, invocando também uma visão mais abrangente do conceito de desenvolvimento sustentável, para além do antigo Triple Botton Line. “Além das dimensões econômica, ambiental e social, há a dimensão político-jurídica, a ética …”, disse, enfatizando que “uma das causas desse desastre foi a corrupção, a relação promíscua entre as empresas e o Poder Público”, acusou.
A denúncia da acadêmica e procuradora dialoga com a fala do professor Paulo Afonso Leme Machado – um dos grandes nomes do Direito Ambiental brasileiro e autor de boa parte dos livros expostos e comercializados durante o evento – feita com exclusividade a Século Diário minutos antes do início do painel, ao qual ele assistiu com plena atenção.
“A fiscalização das barragens não é feita pelo órgão ambiental, é feita pela própria mineradora. Eu acho que essa autofiscalização não dá certo. Porque ninguém é obrigado a acusar a si mesmo, é um princípio até de Direito Penal, não funciona em lugar nenhum. E até agora isso não foi corrigido no Congresso Nacional. Então fica uma imprecisão, e todo mundo lava as mãos, ninguém quer ficar responsável”, critica.
Esmolas
Convocação para uma mudança de atuação e postura também foi feita pelo defensor público Gabriel, ao mencionar as denúncias de extorsão feita por advogados que assediam os atingidos na Foz do Rio Doce. “Eles cobram, extorquem e somem. Nós não somos eles, mas se eles estão fazendo isso lá e nós não fazemos nada para impedir…”, apelou.
“Que a gente se reúna, se organize. Vamos doar uma hora, duas horas por semana para a proteção ambiental”, conclamou. “Não somos ambientalistas?”, questionou.
Gabriel ainda expôs as “esmolas” que hoje são dadas aos atingidos, usando o caso do PIM da água, que indenizou por apenas cinco dias de interrupção do abastecimento em algumas cidades. E o valor pago a cada morador foi de R$ 880,00. “Quanto ganha de indenização uma pessoa que tem sua bagagem extraviada no avião por três dias? R$ 3 mil? R$ 5 mil?”, comparou.
A quarta onda
A crítica do defensor público dialoga com a previsão feita pelo juiz Thiago Albani Oliveira Galvêas, de Linhares, sobre as duas próximas “ondas de ajuizamentos de ações” que acontecerão em decorrência do crime da Samarco/Vale-BHP.
A primeira, explanou, foi feita pelas pessoas mais diretamente atingidas, como pescadores e operadores de turismo; em segundo lugar, vieram os prestadores de serviços relacionados ao movimento turístico, como artesãos, manicures, diaristas …; em terceiro, vislumbra, virão as ações anulatórias, contra os acordos extrajudiciais feitos sem advogados; e, por último, “os danos que ainda não conhecemos”, anuncia.
“Eu vivo o dia a dia em Linhares”, contou o magistrado. “E ouço muito: ‘eu não dou água do filtro pro meu filho’”, relata. “É a Teoria do Risco, sentimento de quem experimenta o dano”, teoriza.
“Meu cabelo começou a cair de dois anos e meio pra cá. Isso é consequência da contaminação da água do Rio Doce? Eu não sei. Mas se daqui a quinze anos se descobrir que sim, eu posso entrar com uma ação indenizatória”, ilustra.
“É a Teoria da actio nata: o prazo prescricional [prazo máximo permitido para que uma pessoa possa judicializar um dano sofrido] só começa a contar a partir da data do conhecimento do dano”, explica, abordando um dos aspectos do TAC [Termo de Ajustamento de Conduta] da Governança, que está sendo negociado com as empresas pelos Ministérios Públicos e Defensorias Públicas. “Como vai ser o futuro?”, indaga.
Carta de Vitória
As discussões e proposições levantadas durante a IV Conferência Internacional de Direito Ambiental foram agrupadas no documento “Carta de Vitória”, a ser disponibilizada pela OAB/ES.