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‘O que nos resta é lutar pela democracia que foi sequestrada’

Em entrevista exclusiva para Século Diário, por e-mail, o escritor, teólogo e ecologista Leonardo Boff fala sobre política, ecologia e espiritualidade.

Prestes a ministrar palestra em Vitória sobre “o espectro do fascismo”, em virtude da XVI Semana de Filosofia que acontece na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) em agosto, Boff aponta caminhos para vencer o pensamento fascista, que tem encontrado, recentemente, terreno fértil para se expressar violentamente no Brasil.

Da política para a religião, a ponte é a vida e a obra de Jesus Cristo, personalidade que fora, para ele, “simultaneamente um ator religioso e político”. Nessa seara, ressalta a necessidade do País encontrar líderes políticos que possam unir as populações mais oprimidas e conduzi-las a um verdadeiro levante popular e à ocupação de praças e ruas.

“O povo se encontra anestesiado e o principal líder que nos poderia tirar da miséria democrática está preso como prisioneiro político. As condições objetivas estariam dadas para uma rebelião popular. Mas faltam as condições subjetivas”, analisa. “O que nos resta”, orienta, “é lutar pela recuperação da democracia que foi sequestrada e, se possível, eleger um presidente corajoso que desfaça todas as maldades realizadas pelo anti-governo Temer contra os trabalhadores, contra a saúde e a educação”, conclama. “Somos herdeiros de um preso político”, metaforiza.

Homenageado recentemente com o título de Doutor Honoris Causa, concedido pelo Conselho Universitário no final de junho, Boff também apresenta aqui aspectos que considera essenciais para uma consciência ecológica que possa de fato conduzir a humanidade a “ver a Terra como um superorganismo vivo e nossa Casa Comum”, bem como a atualidade da Carta da Terra, ratificada em 2000.

Confira a seguir, a entrevista na íntegra:

– Como podemos vencer esse momento de crescimento do pensamento fascista no Brasil?

Vivemos num Estado pós-democrático. Em outras palavras, num regime de exceção para o qual a Constituição e as leis já não significam limites ao arbítrio. Estamos entregues a forças golpistas que dominam o mercado, o mundo jurídico – parte do próprio STF [Supremo Tribunal Federal] – o congresso e parte do próprio Ministério Público. O povo se encontra anestesiado e o principal líder que nos poderia tirar da miséria democrática está preso como prisioneiro político. As condições objetivas estariam dadas para uma rebelião popular. Mas faltam as condições subjetivas. Todos estão descontentes, rejeitam o governo e suas políticas antissociais, mas há uma carência de lideranças que tenham poder de convocação para um levante e ocupação de ruas e praças. Por isso não saberia como sair desta situação. O que nos resta é lutar pela recuperação da democracia que foi sequestrada e, se possível, eleger um presidente corajoso que desfaça todas as maldades realizadas pelo anti-governo Temer contra os trabalhadores, a saúde e a educação.

– Mesmo tendo uma posição política de esquerda bem definida, o senhor consegue transitar por terrenos bastante áridos. Como é possível construir tamanha capilaridade?

Realmente tenho transitado em vários palcos pelo Brasil inteiro, denunciando o golpe contra o Brasil e contra a democracia. Espantosamente, nunca fui contraditado pelos que apoiam o golpe e mostram atitudes fascistas. O que digo, digo-o profundamente convencido e com suavidade. Isso não é intencional nem é uma virtude alcançada à custa de algum esforço. É o meu jeito de ser, sincero, verdadeiro e não provocativo. Talvez seja pelo fato de eu sempre terminar minhas falas suscitando esperança e ânimo nos ouvintes. Se esse resultado não for alcançado, a palestra perdeu seu sentido.

– Qual a importância de Jesus Cristo como norte a nos guiar numa atuação política compassiva e corajosa nos dias de hoje?

Creio que Jesus Cristo foi simultaneamente um ator religioso e um ator político. Ele nos anima em duas atitudes: é corajoso em anunciar algo que era um crime político na época. Ao Reino de César ele contrapõe o Reino de Deus, que se manifesta já neste mundo sempre que há amor, compaixão, sentido de justiça e defesa dos invisíveis. Anuncia, portanto, um projeto alternativo. E denuncia também os agentes do anti-Reino que são os fariseus, os publicanos, as autoridades religiosas mancomunadas com as forças de ocupação romana. Pode gritar “ai de vós ricos” e logo após “bem-aventurados vós, os pobres”.

Sua segunda atitude que reforça nosso compromisso é ter lado, claramente, do lado dos pobres, doentes, marginalizados e os considerados socialmente pecadores. Suscita neles esperança e confiança de que Deus está próximo deles e eles têm o privilégio de serem os primeiros beneficiários da nova ordem, chamada Reino de Deus. Na verdade Jesus veio para nos ensinar a viver, viver aquilo que nós chamamos os bens do Reino que são: o amor aos invisíveis, aos desclassificados socialmente, a compaixão para com aqueles que sofrem e principalmente viver um amor incondicional, envolvendo até os inimigos. Que tudo isso implica em risco, foi mostrado por sua própria vida: foi caluniado, perseguido, preso, torturado e assassinado na cruz. Portanto, somos herdeiros de um preso político, de um crucificado que não morreu porque simplesmente é mortal como todos, mas morreu crucificado em razão da causa que defendeu: um apaixonado amor a Deus que chama de Paizinho e um ardente amor aos pobres e oprimidos. Devemos unir estes dois valores que nos inspiram em ter uma prática semelhante a dele.

– O que mais falta acontecer para que a consciência ecológica – Ecologia Profunda – consiga ser despertada na maior parte das mentes e corações da humanidade?

Há mais de 20 anos tento unir meu discurso teológico com o discurso ecológico. Percebo que no mundo todo cresceu, de certa forma, a consciência ecológica, vale dizer, a nossa responsabilidade pelo futuro da vida e da Casa Comum. Mas ele é insuficiente face às agressões que o sistema do capital faz seja contra o mundo do trabalho seja contra a própria natureza, exaurindo os bens e serviços naturais escassos e erodindo inteiros ecossistemas. A Carta da Terra, um dos documentos mais importantes do início do século XX e assumido pela Unesco e pela ONU faz uma severa advertência: 'Como nunca antes na história, o destino comum nos conclama a buscar um novo começo. Isto requer uma mudança na mente e no coração. Requer um novo sentido de interdependência global e de responsabilidade universal…Só assim alcançaremos um modo sustentável de vida aos níveis local, regional, nacional e global'. O mesmo repete o Papa Francisco em sua encíclica 'sobre como cuidar da Casa Comum'. Mudança de mente significa ter um outro olhar sobre a natureza e a Terra, não como algo morto ou um baú cheio de recursos que hoje sabemos estarem no seu limite máximo. Deve-se ver a Terra como um superorganismo vivo e nossa Casa Comum. Novo coração significa ter não apenas uma visão fria e científica da situação do mundo, mas uma visão a partir da inteligência sensível e emocional, sentindo simultaneamente o grito do pobre com o Grito da Terra. E, por fim, devemos dar-nos conta das redes de relações que nos envolvem de cuja manutenção reside a salvaguarda da vida no planeta e o futuro da Casa Comum.

– A Carta da Terra acabou de atingir a maioridade, desde sua ratificação, em 2000. Mas continua muito atual. Como anda a missão de divulga-lá e implementar seus princípios pelo mundo e no Brasil?

A Carta da Terra é um documento de referência para alternativas ao atual paradigma de civilização altamente destrutivo da natureza e das relações entre as pessoas. Seu sentido reside na busca de valores e princípios universais que poderão nos salvar face às ameaças objetivas que pesam sobre o sistema-vida e o sistema-Terra. A Carta foi assumida em alguns países, como os novos que se libertaram da União Soviética, dentro da própria constituição, em outros entrou como matéria obrigatória nas escolas a partir dos ministérios de educação. No Brasil não conseguimos que entrasse nas escolas como subsídio de estudo. Ela é assumida por movimentos sociais populares que trabalham a ecoagricultura orgânica e outros movimentos ligados à ecologia. Não podemos dizer que ela tenha significado mudanças fundamentais em nenhum campo, como na verdade aconteceu na Costa Rica e no México onde o próprio Estado se empenhou em seu estudo nos currículos escolares.

– O senhor atualmente participa do grupo de reforma da ONU, especialmente quanto à Declaração Universal do Bem Comum da Terra e da Humanidade. Em que consiste esse trabalho? Quais as metas e prazos previstos?

Quem levava avante este projeto com os vários departamentos era o ex-presidente da Assembleia da ONU e ex-chanceler da Nicarágua Miguel d’Escoto, Fraçois Houtart, Joseph Stiglitz e eu, entre outros especialistas em direito e economia. Ocorre que as duas figuras principais, d’Escoto e Houtart, morreram. Ficamos todos meios desorientados, especialmente, pela recusa frontal que os USA continuam fazendo a este tipo de iniciativa. Queremos retomá-la, depois que baixar a virulência com que Donald Trump conduz as relações internacionais. Quem mais apoia esta iniciativa é a China, pois tem consciência de que a globalização mais e mais ganha um rosto chinês.

 

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