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Avanço do eucalipto ameaça um dos poucos córregos em meio ao deserto verde

“Se plantar a gente arranca!” A exclamação, contundente e corajosa, foi dita repetidas vezes, por diferentes vozes, em núcleos familiares distintos do Território Quilombola Tradicional do Sapê do Norte, entre os municípios de Conceição da Barra e São Mateus, no norte do Espírito Santo.

O motivo é o desejo, anunciado pela Aracruz Celulose (Fibria) e Suzano (as duas papeleiras se fundiram em março último, numa operação ainda por ser homologada em definitivo pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade), de plantar eucaliptos na área de canaviais abandonados pela Destilaria Itaúnas S/A (Disa), em terrenos da Agropecuária Aliança (Apal).

A substituição é vista como uma grave ameaça a um dos poucos córregos que sobrevivem na região, o Córrego Sapucaia, que tem sua nascente chamada de Rebentão, nas proximidades da comunidade de Retiro.

Cuidado há mais de meio século pelo ancião Romildo Aires Silvares, com mais de 80 anos, bem como seus descendentes que por ali vivem e resistem, o Sapucaia garante a segurança hídrica das famílias e ainda abastece os carros-pipa que periodicamente o utilizam para regar os plantios de eucaliptos das proximidades.

“Se ele secar, o que vai ser da gente? É o único que ainda existe nessa região toda!”, suplica Rosa Silvares, uma das filhas de S. Romildo.

Ao seu lado, Alci Conceição Silvares aponta a medida que considera ter sido roubada pela Apal, quando S. Romildo vendeu quatro alqueires de terra, na década de 1970. “Comeu três metros da rua”, mostra, dando largos passos no trecho até onde a rua originalmente se estendia, em sua memória.

A sorte, explicam Rosa e Alci, foi o terreno ter sido coberto da cana-de-açúcar ao invés de eucaliptos.  “A cana não acaba com a água. O eucalipto, sim”, afirma, com segurança, outro filho do patriarca, Edinaldo Conceição Silvares.

Diante da falência da cultura da cana na região, no entanto, os terrenos da Apal e da Disa estão sendo ocupadas, gradativamente, por eucaliptos, uma ameaça extra ao já tão castigado território quilombola.

Além de secar os mananciais, a monocultura também polui a água. “É uma covardia. A gente fica muito triste. A empresa bate muito veneno”, diz Edinaldo.

“Antigamente existia muita água. Vinha gente de São Mateus, Pedro Canário, pra tomar banho aqui. Hoje não vem mais. Tá tudo cheio de veneno, não tem peixe mais. Ninguém toma banho. Nem animal bebe essa água”, relata, referindo-se aos últimos 35 anos da história do Sapê.

Nenhum de seus filhos, nem a mais velha, de 27, conheceu o que é um banho no rio perto de casa. “Tenho 50 anos. Sou nascido e criado aqui. Mas hoje nós estamos no meio da escravidão”, lamenta.

Rosa conta que os técnicos da Aracruz estiveram por três vezes este ano em sua casa e na dos vizinhos. Mas que, diante da resistência das famílias, em não permitir o plantio de eucaliptos a tão poucos metros do Sapucaia, dizem sempre que vão respeitar, que irão embora dali.

“É verdade, Rosa? Eles vão embora mesmo, se vocês não deixarem?” “Eles falam que sim. Mas se não forem, e plantarem eucalipto aqui, a gente arranca”, repete, corajosa, determinada, ecoando a fala dos seus, de agora e de ontem: pai, irmãos, filhos e ancestrais.

A preservação das águas é parte indissociável da identidade quilombola. Oxalá permita que ela perdure e prospere, diversificando a castigada paisagem do Sapê com a cultura genuína desse povo que ainda tem a memória viva do que são florestas de verdade, rios de verdade, liberdade e dignidade.

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