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‘O agronegócio sempre teve ingerência política no governo do Estado’

No segundo dia da III Feira da Reforma Agrária do Espírito Santo, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o economista João Pedro Stédile, membro da coordenação nacional do MST, participou de um debate, nessa sexta (14), ao lado da Antônia Ivoneide (Neném). 

Confira a entrevista concedida ao Século Diário:

– Qual a importância das feiras da Reforma Agrária na construção de um projeto popular para o país?

As feiras de Reforma Agrária e de produtos agroecológicos que temos realizado em todos os estados do Brasil, e algumas de caráter nacional, como no Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, têm sido um instrumento especial de diálogo com a população urbana, para eles conhecerem a importância de produzirmos alimentos saudáveis. E alimentos saudáveis para o povo, somente a agricultura familiar e os camponeses podem produzir com as técnicas da agroecologia, que respeitam o equilíbrio com meio ambiente.  Com isso também denunciamos que o modelo do agronegócio é apenas um modelo do capital para produzir lucro, mas eles não produzem comida de qualidade para o povo. O agronegócio está centrado na pecuária extensiva, soja, milho, algodão e cana.  E o povo tem uma culinária riquíssima em todos os biomas de nosso país.  Na Feira Nacional da Reforma Agrária foram comercializados mais de mil tipos diferentes de alimentos. O nosso projeto de Reforma Agrária Popular, tem como paradigma que precisamos distribuir a terra, combater o latifúndio e o modelo do agronegócio, para produzir alimentos saudáveis para todo povo, estimulando a cultura da culinária de cada região, que é esta que garanta a saúde do povo.  E o latifúndio e o agronegócio jamais farão isso, porque eles só querem lucro, destroem a natureza e o meio ambiente e ainda trazem muitos prejuízos para a saúde pública, pois todos os cientistas denunciam o agrotóxico.

No Espírito Santo, nos últimos 20 anos, foi criada meia dúzia de assentamento. Isso é um cenário similar ao que ocorre no resto do país? Ou há alguma especificidade capixaba?

O processo de Reforma Agrária, como desapropriação de latifúndios, está muito relacionado com a conjuntura política do país e com o processo de mobilização da classe trabalhadora, não apenas dos camponeses. Nesses anos todos do MST, tivemos períodos de avanço da Reforma Agrária, no final do governo Sarney, no final do governo FHC, depois do massacre de Carajás, e nos governos Lula. No governo Dilma a Reforma Agrária foi sendo desativada, e agora com o governo golpista ela está completamente paralisada. E está em curso uma contrarreforma agrária. Então, o cenário de avanços ou recuos do Espirito Santo reflete a situação nacional. Mas no Espírito Santo, se agrava ainda mais, pois na região norte, dominada pelo latifúndio, nós temos o monocultivo da pecuária extensiva e do eucalipto, que além de tudo, geram agressões ao meio ambiente, e por isso também, a região tem sofrido com secas intermitentes. E essas duas forças do agronegócio sempre tiveram uma ingerência política muito grande no governo do Estado.

– Por que a Reforma Agrária não deslanchou durante os governos do PT, Lula e Dilma?

Durante o governo Lula, tivemos um processo mais acelerado de desapropriações e também a combinação com políticas públicas que iam na direção também de mudanças para uma Reforma Agrária Popular.  E não apenas distribuir terras e largar os camponeses à sua sorte. Então nós tivemos o fortalecimento do Pronera [Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária], que é um programa que permite a entrada na universidade de filhos de camponeses.  E isso é muito importante. Tivemos as políticas do PAA [Programa de Aquisição de Alimentos], que estimulava os camponeses da Reforma Agrária e da Agricultura Familiar a produzirem alimentos agroecológicos para o povo da cidade, com garantia de compra pela Conab [Companhia Nacional de Abastecimento] e a política do PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar], que foi entregar os alimentos saudáveis na merenda escolar de cada município. Isso fortalecia a economia municipal e viabilizava o mercado para os agricultores locais.

Porém, a partir do governo Dilma, a crise econômica impediu avanços na Reforma Agrária e derrotou o projeto neo-desenvolvimentista que o governo aplicava em parceria com setores da burguesia industrial brasileira. Um projeto de Reforma Agrária, e ainda mais popular, só se realiza como parte de um projeto maior de desenvolvimento nacional. E isso foi derrotado.  Com a crise econômica, a burguesia abandonou a Dilma, e usou toda sua força da mídia, do Judiciário e do Congresso e deu um golpe.  O golpe foi para que a burguesia se salvasse sozinha da crise e jogasse todo peso da crise sobre a classe trabalhadora. Que foi o que aconteceu nesses últimos dois anos, em que os golpistas, em nome da burguesia, aplicaram um plano de retirada de direitos dos trabalhadores, assaltaram os cofres púbicos para seus interesses e o desmonte das estatais e entrega de todos os recursos naturais que temos, do petróleo, minérios, água, terras, energia elétrica e biodiversidade. Num plano tão concentrador e entreguista ao capital estrangeiro, não há nenhuma chance para avançar políticas distributivistas, como é a Reforma Agrária.  Assim, como destruíram o emprego na cidade, acabaram com os programas de inclusão social na universidade e de moradia popular.  Nós temos hoje, segundo a Folha de São Paulo, 66 milhões de trabalhadores à margem do mercado! Isso é uma insanidade, inclusive para o capitalismo.

Ou seja, não foi só a Reforma Agrária que parou, pararam todos os programas e políticas a favor do povo. Hoje no Brasil só se salvaram os bancos e as empresas transnacionais ou vinculadas a ela.

– O que se enxerga possível de realizar, nesse sentido, numa possível gestão de esquerda?

Bem, as eleições atuais, como poucas vezes aconteceu na história do Brasil, se revestem de um verdadeiro caráter de luta de classes.  Temos a disputa de apenas dois projetos.  Os que querem a continuidade do golpe, ou seja, a burguesia está usando as eleições para tentar viabilizar seus candidatos, e assim ganhar legitimidade popular ao golpe que deram e a seguir a implementação de seu plano perverso e vende-pátria. E de outro lado temos o projeto da classe trabalhadora, que inclui revogar todas as medidas contra o povo dos golpistas, e reconstruir um projeto de desenvolvimento do país, recuperando emprego, renda, e todas as reformas necessárias para que resolver primeiro, os problemas do povo.

Felizmente, do lado dos golpistas e do projeto da burguesia, eles não conseguiram unidade e se apresentaram com seis candidatos, um pior que o outro, e ainda o que tem maior índice de votação, é o pior deles, que é o [Jair] Bolsonaro [PSL, RJ]. Felizmente o Bolsonaro não tem base social nem entre a burguesia. Seu apoio vem de policiais, militares da reserva, os ruralistas e parte da maçonaria. Mas essa base social jamais representará a maioria da sociedade.  E por isso, que já há declarações de setores da burguesia, que no segundo turno entre Bolsonaro e [Fernando] Haddad, parte deles vão apoiar o Haddad.

Do lado da classe trabalhadora tínhamos o Lula, que ganharia as eleições no primeiro turno.  Então a burguesia mobilizou a imprensa e o Judiciário e inviabilizaram injusta e ilegalmente, ferindo a constituição, da possibilidade do Lula concorrer.  Em seu lugar, temos agora o Haddad. O Haddad é apenas o porta-voz de um governo Lula.  O governo será um governo Lula, no sentido de termos um novo projeto de pais, que recupere o crescimento e encaminhe o país para as reformas estruturais necessárias.  O Plano do Governo Lula é muito interessante, porém, mais do que ideias, logo após a eleição, temos que realizar grandes mutirões de debates com todo povo, em todo país, para debater quais as reformas estruturais necessárias. Primeiro teremos que revogar todo entulho dos golpistas, da retirada de direitos, da PEC [Proposta de Emenda Constitucional] 55, dos assaltos às reservas de petróleo e minérios. Temos que revogar a Lei Kandir, que inviabilizou as contas públicas, pois as empresas exportadoras de matérias primas não pagam ICMS, e isso afetou inclusive as finanças do governo do Espírito Santo.

E, a partir daí, ter uma reforma na economia, que inclui a Reforma Tributária, para reindustrializar o país, e produzir os bens que o povo precisa. Precisamos de uma reforma na educação e retomada de uma reforma urbana profunda, que reorganize os transportes públicos e a moradia popular.

É neste cenário que a Reforma Agrária, agora Popular, terá um papel fundamental para produzir alimentos saudáveis para todo povo, segurar o êxodo rural, ampliar o emprego no interior, desenvolver a agroindústria e a indústria produtora de insumos para a agricultura.

E no segundo semestre, encaminharmos uma assembleia constituinte para fazer uma reforma política e do Judiciário, que passe a limpo a forma de fazer política no Brasil.

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