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‘A identidade capixaba é tão extraordinária porque se baseia na diversidade’

Adilson Vilaça é um curioso. Já fez aventuras incríveis buscando entender mais da história e cultura do Espírito Santo, para escrevê-la. “Muita coisa de nossa história precisa ser contada e documentada. O livro é um grande documento. Então eu me sinto muito feliz por participar de um movimento que faça isso”, relata. Já foi aos rincões capixabas, onde se manifestam tradições tão belas como desconhecidas no Estado, e viajou lugares do Brasil em busca de vestígios que ligassem a personagens históricos cujo rastro de vida se perdeu de forma misteriosa.

Jornalista e professor universitário, Adilson se dedica atualmente a uma profissão que o apaixona e sempre o acompanhou: a de escritor. Encontra-se nos preparativos para lançar não um, mas três livros! Dois já estão impressos, outro em plena finalização.

Foto: Leonardo Sá

O primeiro deles será lançado no próximo dia 15, na ocasião da cerimônia solene em que toma posse na Academia Espírito-Santense de Letras, na Biblioteca Pública Estadual. A obra, Cartas Fantasmas, serve como uma espécie de continuação de um grande livro que lançou em 1997, Cotaxé, em que escreve uma romance histórico sobre o estado independente fundado por camponeses na região em que viveu sua infância, no noroeste capixaba, na fronteira com Minas Gerais.

Se em Cotaxé havia pouquíssimas testemunhas que participaram de fato dos conflitos, Cartas Fantasmas traz relatos de personagens reais entrevistados pelo escritor que permitem vislumbrar o período posterior do desmembramento do Estado União de Jeová, nos anos 50, quando ocorre uma revolta camponesa também abafada e sucedida por um acordo que leva a uma ampla migração dos lavradores de Ecoporanga para Rondônia e outros estados longínquos no Brasil.

As Cartas Fantasmas são inspiradas nos escritos de um jovem que hospedou na casa da família de Adilson quando ele era menino. O pai do personagem era um camponês comunista que foi assassinado, tendo ele sido vendido a um orfanato de um fazendeiro, que na verdade abusava sexualmente das crianças. Foi adotado por Todo Torto, um dos mateiros responsáveis pelo suposto assassinato de Udelino Alves de Matos, o grande líder do Estado da União de Jeová.

O jovem adotado passa a escrever então cartas ao que tinha de referência mais próxima de irmandade e fraternidade, que eram seus amigos do pseudo-orfanato. Cartas estas que Adilson não chegou a ler pois ainda não era alfabetizado, mas ouviu relatos de seus irmãos mais velhos. Junto a esse relato, somam-se outros, de um soldado doutrinado para perseguir os pobres, uma comunista lésbica que se refugiou na localidade, que se alternam na narrativa garantindo a superposições de diversos pontos de vista sobre os fatos históricos. Todos personagens, embora com nomes trocados e toques de romance, são reais.

“Uma ideia quando convence, vence. Mas a polícia não é uma ideia. Ela é forca bruta, terror. Por isso ela só tem que vencer. (…) Classe sem propriedade não precisa de polícia porque não tem o que proteger, precisa de porrete para não tomar os bens da classe proprietária. Muito porrete, muita bala na fuça”, diz num trecho o relato do soldado, contando como aprendeu sobre a luta de classes com seu superior.

Foto: Leonardo Sá

Cartas Fantasmas ainda será lançado no dia 10 de novembro no Encontro dos Ecoporanguenses Ausentes.

Outro projeto de Adilson, em fase de conclusão, vai às raízes da cultura popular capixaba. Espírito Santo: muito encanto em cada canto, que brinca em seu título com a cantoria muito presente em longínquas comunidades do Estado. Nele, o autor traz dez expressões culturais representativas do Espírito Santo, congregando manifestações de norte a sul, passando pela Grande Vitória: o Caxambu do quilombo de Monte Alegre (Cachoeiro de Itapemirim), o Boi Pintadinho de Muqui, o Bate-Flechas de Guaçuí, o Encontro de Folia de Reis também em Muqui, a Procissão Marítima de São Pedro em Vitória, o Congo representado por manifestações sincretizadas como a banda da Apae de Cariacica que dialoga com a capoeira e o Congo de Paul de Graça Aranha (Colatina) que inclui sanfonas e outros instrumentos, o Ticumbi de Conceição da Barra, o Jongo de Córrego dos Alexandres, o Reis de Boi, todos em Conceição da Conceição da Barra, além da manifestação teatralizada do Roubo da Bandeira que ocorre em Ecoporanga.

Muitas outras ficaram de fora por falta de espaço, é certo. E Adilson pode citar inúmeros, algumas certamente das quais a grande maioria dos capixabas nunca ouviu falar. E menos quem é de fora. Somos um lugar de passagem para muitos turistas. O escritor conta de viajantes paulista que encontrou num hotel em Conceição da Barra, que iam conhecendo o litoral, buscando chegar no Nordeste, mas nestas terras pararam apenas para dormir. Mas esbarraram com o cara certo. Terminaram vendo de perto a festa de Reis de Bois, e decidiram esticar por alguns dias mais no Espírito Santo, levando as dicas de Adilson.

Na narrativa do livro, o escritor traz diversos elementos curiosos que se entrelaçam com essa história da cultura popular. Fala do encantamento de célebres forâneos que por aqui passaram. Do Graça Aranha que aqui se inspirou para escrever sua grande obra Canaã. Quando seu cavalo atolou num brejo nos interiores de Colatina, este ganhou o nome que leva até hoje, Paul de Graça Aranha. Paul significa brejo, explica Vilaça. É o mesmo lugar que encantou, Elke Maravilha, que o visitou várias vezes e pediu para que seus restos mortais fossem levados para lá.

Lamartine Babo, um dos maiores compositores do início do século 20 no Brasil, aceitou um convite para os interiores para realizar uma caçada depois de fazer um show em Santa Teresa junto com Ary Barroso no Espírito Santo. Mas suas cadeiras não resistiram a uma viagem de 11 horas em cavalo. Teve que ficar de molho por uns dias, na rede com seu violão observando a rica natureza, quando compôs uma letra que tinha pendente entregar para o amigo Ary. “Num rancho fundo, bem pra lá do fim do mundo…”, sucesso da música brasileira. Sérgio Buarque de Holanda, que foi editor de um jornal em Cachoeiro de Itapemirim, onde ganhou o apelido de Doutor Progresso por sua visão de mundo adiantada, e conviveu com o Caxambú. Histórias de notáveis da história brasileira que dialogaram de alguma maneira com a cultura popular do Espírito Santo.

Um terceiro livro já entregue, Pedra Azul: inventário emocional, fala sobre Pedra Azul, mais especificamente a localidade de Aracê ou Aurora, dois belos nomes em tupi e português, ressalta Adilson Vilaça, lembrando da beleza única do local no amanhecer, registrada nas fotos de Tadeu Bianconi, que também o acompanha nas imagens de “Espírito Santo: um encanto em cada canto”. Em ambas obras, Adilson ressalta certa inspiração na forma de escrita da bielorrussa Svetlana Alexijevich, autora de A guerra não tem rosto de mulher.

Para além do distrito que encanta os turistas, o escritor buscou o relato de quem realmente vive ali. “Há uma introdução histórica sobre o local. Mas resolvi contar a história de outra forma. Fui ouvir as pessoas desse lugar que se tornou glamouroso. Os camponeses italianos, alemães, pomeranos, negros. Também os empreendedores que ali criaram iniciativas como restaurantes e certificações para produtos orgânicos. O agricultor que cuida da nascente do Rio Jucu em sua propriedade. Muito melhor que um pesquisador sabichão contar a história é dar a voz para falarem a história deles, como vivem, o que fazem, o que fez não irem embora dali”, dia Adilson.

Ele explica que a grande conexão entre os três livros está no fato de retratarem essa história e cultura tão pouco conhecida e registrada. Diz que desde que chegou a Vitória no fim da década de 70 ouve sobre o fato do capixaba “não ter identidade”, o que considera acientífico. A identidade, na verdade se dá a partir do contato com o outro. “A identidade capixaba é tão extraordinária porque se baseia na diversidade. As pessoas ficam querendo encontrar identidade como homogeneidade e aqui isso escapa. É um território não muito grande, com população pequena onde estão indígenas, italianos, alemães, pomeranos, afrodescendentes”.

Ele cita as origens dos últimos governadores, negra, libanesa, alemã, italiana, que o capixaba vota com a mesma naturalidade que come num self-service feijoada, tabule, macarronada, torta capixaba e outros pratos de diversas origem. Parece natural, mas indo a outros lugares, pode-se notar que não é bem assim. “A identidade é como o ar. Você respira o ar, não fica perguntando se tem ar para respirar, a não ser que falta ar ou ele esteja poluído. Você só pensa a identidade quando ela está em crise, e a nossa não tem motivo para estar em crise, ela é muito rica”.

AGENDA CULTURAL

Lançamento do livro Cartas Fantasmas, de Adilson Vilaça, que toma possa na Academia Espírito-Santense de Letras

Quando: 15 de outubro, 19h

Onde: Biblioteca Pública Estadual – Avenida João Batista Parra, 165, Enseada do Suá – Vitória/ES.

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