Gregório de Matos Guerra, uma vez inserido num mundo dividido entre profano e religioso, temos que estas duas dimensões do homem tipicamente barroco estão interligadas, não são duas faculdades poéticas estanques, pois Gregório leva de seus pecados justamente o móvel para a religião, como uma forma de contrição, de seu desvario ele se volta logo após a seu espírito, uma vez no gozo pleno da existência carnal, ele tem exatamente a partir deste ponto sua inflexão espiritual, como num ir e vir que busca equilibrar-se entre demandas que poderiam ser contraditórias, mas que em Gregório se complementam e fazem a dicotomia de sua poesia, mesmo que duas frentes, a imagem de um homem complexamente integrado, inteiro, pois ele precisa tanto do profano como do aspecto religioso para construir-se como poeta e como humano.
A sátira aparece então em Gregório como um dos impulsos em que a religiosidade conventual, por exemplo, se revela em perspectiva caricatural. A crítica mordaz também faz parte, portanto, da complexa religiosidade de que a poesia de Gregório se alimenta, o que não constitui heresia, contudo, mas uma poesia que lê com fidelidade a catequese mas que não se furta de apontar e pintar costumes que podem se degenerar e se tornar um pastiche.
Na figura do campesino, por sua vez, temos uma poesia de fuga em que Gregório se afasta de um mundo atribulado de injustiças e tiranias, em que o mundano é deixado para trás e temos uma pequena morte simbólica em que o idílio pode ser um simulacro da eternidade, e que no prazer que suscita pode ser a verdadeira vida, a beleza de que sempre fala toda poesia.
Seguindo na análise dos temas da poesia de Gregório, temos, adiante, a sua poesia amorosa, parte de sua poesia profana, carnal, em que desponta um poeta muitas vezes pornográfico, bem distante da imagem cristalizada do poeta romântico que surgirá no século XIX, da mulher ideal, etérea e, portanto, irreal, até mesmo sem nome, abstrata, mitológica e vazia. O que temos na poesia de Gregório é o amor carnal e bem real, mais afeito ao corpo e seus encantos do que a um estro evanescente e dorido de poetas imaginosos e de pouca sedução carnal, o amor em Gregório tem carga biográfica e se nutre de nomes reais, em que importa a conquista e em que a lírica é pragmática e não melosa, temos um Gregório que cita Custódia, Brites, Martha de Jesus, Babu, Moralva, Joana Gafeira, etc.
É a partir de um estro amoroso carnal que temos a produção contrita, de outro lado, de sua poesia religiosa. Gregório é um religioso real, distante de figuras impostadas e renunciantes dos prazeres, ele é humano, portanto, une em um único espírito o profano e o religioso e assim é um ser inteiro, autêntico e mais real do que se ficasse num extremo ou no outro, como um ser incompleto. A lírica entre estes dois mundos produz angústia também no poeta, mas é a isto que eu chamo de uma experiência poética e vivencial completa e plena, o destino de um poeta que sempre se quis amplo, sem amarras.
POEMAS
AO MESMO [SANTO ANTÔNIO] QUE LHE DERAM A GLOZAR./MOTE/Bêbado está Santo Antônio : O poema retrata um santo bêbado, e o humor de Gregório aqui desponta luminoso, no que temos : “Entrou um bêbado um dia/pelo templo sacrossanto/do nosso Português Santo,” (…) “a gente, que ali assistia,/cuidando, tinha o demônio,” (…) “gritando-lhe todos, tá,/tem mão, olha, que acolá,/Bêbado, está Santo Antônio.”. A coda genial encerra um poema direto e sem meneios, pois.
A CERTO SUGEYTO DE SUPPOSIÇÃO, QUE TENDO-SE RETIRADO DA CÔRTE E VIVIA NA SOLEDADE DE HUMA QUINTA MANDOU AO POETA A SEGUINTE DÉCIMA. : O poema faz troça da corte, e rascante canta o gozo pleno dos sentidos, no que temos : “Goze a Corte o ambicioso/de aplausos, e vaidades,/que eu cá nestas soledades/o melhor descanso gozo :” (…) “que o melhor estado, cuido,/é aquele, em que o descuido/vem a ser todo o cuidado.”. O cuidado que do ócio é pleno de prazer, aqui é poesia, sátira e existência pessoal em seu gozo.
TERCEYRA VEZ IMPACIENTE MUDA O POETA O SEU SONETO NA FORMA SEGUINTE. : O poema retrata o feminino aqui, o canto poético se volta aqui ao efêmero, em que a beleza da mocidade decai com o tempo, no que temos : “Discreta, e formosíssima Maria,/Enquanto estamos vendo claramente/Na vossa ardente vista o sol ardente,/E na rosada face a Aurora fria :”. A decadência do corpo aqui é o frio, imagem poética que vem nos lembrar do tempo do corpo, e a luta da poesia por preservar o viço, no que vem : “Gozai, gozai da flor da formosura,/Antes que o frio da madura idade/Tronco deixe despido, o que é verdura./Que passado o zenith da mocidade,/Sem a noite encontrar da sepultura,/É cada dia ocaso da beldade.”
PONDERA QUE OS DESDENS SEGUEM SEMPRE COMO SOMBRAS O SOL DA FORMOSURA. : A formosura, tema caro ao poeta Gregório, aqui aparece em Babu, e ele teme e deseja ao mesmo tempo, podendo ser um dilema poético entre desgraça e ventura, no que temos : “Cada dia vos cresce a formosura,/Babu, e tanto cresce, que me embaça,/Se cresce contra mim, alta desgraça,/Se cresce para mim, alta ventura.”. O poeta nos dá então mais uma vez esta luta poética por manter firme o que passa como brilho efêmero, no que vem : “Tal rosto se não mude, antes se faça/Mais firme do que a minha desventura./De que pode servir, seres mais bela,/Ver-vos mais soberana, e desdenhosa?/Dai ao demo a beleza, que atropela,/Bendita seja a feia, e a ranhosa,/Que roga, que suspira, e se desvela/Por dar-se toda a troco de uma prosa.”. E a fealdade, diante do desdém do que tem beleza, é a saída do poeta que não se furta a sua aventura carnal e poética, esta que se dá a troco de uma prosa, por fim.
QUIZ O POETA EMBARCAR-SE PARA A CIDADE E ANTECIPANDO A NOTÍCIA À SUA SENHORA, LHE VIO HUMAS DERRETIDAS MOSTRAS DE SENTIMENTO EM VERDADEYRAS LAGRYMAS DE AMOR. : Temos o poeta aqui quente, o ardor queima, e o estro é repleto de desejo, no que temos : “Ardor em coração firme nascido!/Pranto por belos olhos derramado!” (…) “Tu, que um peito abrasas escondido,/Tu, que em um rosto corres desatado,/Quando fogo em cristais aprisionado,/Quando cristal em chamas derretido.”. A imagem poética é potente, mas tenta se equilibrar, por fim, no frio, no que vem : “Mas ai! que andou Amor em ti prudente./Pois para temperar a tirania,/Como quis, que aqui fosse a neve ardente,/Permitiu, parecesse a chama fria.”
AO MESMO ASSUMPTO E NA MESMA OCCASIÃO. : O poema desata e canta e vai na corrente e já vê a cor mudada, no que temos : “Corrente, que do peito desatada/Sois por dois belos olhos despedida,/E por carmim correndo desmedida/Deixais o ser, levais a cor mudada.”. Aqui agora prata e rubi enchem o poema de brilho, no que vem : “Essa enchente gentil de prata fina,/Que de rubi por conchas se dilata,/Faz troca tão diversa, e peregrina,/Que no objeto, que mostra, e que retrata,/Mesclando a cor purpúrea, e cristalina,/Não sei, quando é rubi, ou quando é prata.”
AO MESMO ASSUMPTO : O poema aqui tem o tema da formosura, que enche a poesia de Gregório, e esta se associa ao natural e à pintura, no que temos : “Debuxo singular, bela pintura,/Adonde a Arte hoje imita a Natureza,/A quem emprestou cores a Beleza,/A quem infundiu alma a Formosura.” (…) “Pois ou bem sem engano, ou bem fingida/No rigor da verdade estás pintada,/No rigor da aparência estás com vida.”. A vida que se junta à aparência, tenta dar rigor à beleza, e a arte aqui é este senso de que o poeta canta a formosura, aqui tanto o feminino como a própria poesia.
CHORA O POETA A MORTE DE HUM SEO FILHO, CUJO PEZAR DEO MOTIVO A PRIMEYRA OBRA SACRA DESTE LIVRO. : O poema pesaroso é um luto da pior monta, o poeta que lamenta a morte de seu filho, no que temos : “Querido Filho meu, ditoso esprito,/Que do corpo as prisões tens desatado,/E por viver no Céu tão descansado,/Me deixaste na terra tão aflito./Tu mais do que teu Pai és erudito,/Muito mais douto, e mais experimentado,/Pois por ser Anjo em Deus predestinado/Deixaste de homem ser talvez precito.” (…) “Que muito, ó Filho, flor de um pau tão bronco/Que acabe a flor na dócil infância,/E que acabando a flor, dure inda o tronco.”. E o poeta canta o filho que se acabou na flor da infância, mais douto que o poeta que lamenta.
MORALIZA O POETA NOS OCIDENTES DO SOL A INCONSTANCIA DOS BENS DO MUNDO. : Aqui o poeta luta novamente contra o mundo do efêmero, num sol que não dura mais que um dia, da luz que dá lugar à noite, em que a formosura se desmancha com as agruras do tempo, no que temos : “Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,/Depois da Luz se segue a noite escura,/Em tristes sombras morre a formosura,/Em contínuas tristezas a alegria.”. Alegria e tristeza também dão nome a esta angústia do efêmero, em que a vida brilha e depois acaba, luz e sombra compondo um cenário de prazer e dor, no que vem : “Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,/Na formosura não se dê constância,/E na alegria sinta-se tristeza./Começa o mundo enfim pela ignorância,/E tem qualquer dos bens por natureza/A firmeza somente na inconstância.”
CONTINUA O POETA EM LOUVAR A SOLEDADE VITUPERANDO A CORTE. : O poema quer se desvencilhar deste mundo da corte, quer a bem-aventurança de um ditoso longe das demandas vis, em que reina o roubo, a injustiça e a tirania, no que temos : “Ditoso aquele, e bem-aventurado,/Que longe, e apartado das demandas/Não vê nos tribunais as apelandas,/Que à vida dão fastio, e dão enfado.” (…) “Se estando eu lá na Corte tão seguro/Do néscio impertinente, que porfia,/A deixei por um mal, que era futuro;/Como estaria vendo na Bahia,/Que das Cortes do mundo é vil monturo,/O roubo, a injustiça, a tirania.”. A Bahia aqui aparece ao poeta como lugar decadente, e sua sátira julga a corte em seu vil monturo, por fim.
POEMAS
AO MESMO [SANTO ANTÔNIO] QUE LHE DERAM A GLOZAR.
MOTE
Bêbado está Santo Antônio
Entrou um bêbado um dia
pelo templo sacrossanto
do nosso Português Santo,
e para o Santo investia :
a gente, que ali assistia,
cuidando, tinha o demônio,
lhe acudiu a tempo idôneo,
gritando-lhe todos, tá,
tem mão, olha, que acolá,
Bêbado, está Santo Antônio.
A CERTO SUGEYTO DE SUPPOSIÇÃO, QUE TENDO-SE RETIRADO DA CÔRTE E VIVIA NA SOLEDADE DE HUMA QUINTA MANDOU AO POETA A SEGUINTE DÉCIMA.
Goze a Corte o ambicioso
de aplausos, e vaidades,
que eu cá nestas soledades
o melhor descanso gozo :
aqui vivo cuidadoso
de descuidos, e este estado
julgo bem-aventurado,
que o melhor estado, cuido,
é aquele, em que o descuido
vem a ser todo o cuidado.
TERCEYRA VEZ IMPACIENTE MUDA O POETA O SEU SONETO NA FORMA SEGUINTE.
Discreta, e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo claramente
Na vossa ardente vista o sol ardente,
E na rosada face a Aurora fria :
Enquanto pois produz, enquanto cria
Essa esfera gentil, mina excelente
No cabelo o metal mais reluzente,
E na boca a mais fina pedraria :
Gozai, gozai da flor da formosura,
Antes que o frio da madura idade
Tronco deixe despido, o que é verdura.
Que passado o zenith da mocidade,
Sem a noite encontrar da sepultura,
É cada dia ocaso da beldade.
PONDERA QUE OS DESDENS SEGUEM SEMPRE COMO SOMBRAS O SOL DA FORMOSURA.
Cada dia vos cresce a formosura,
Babu, e tanto cresce, que me embaça,
Se cresce contra mim, alta desgraça,
Se cresce para mim, alta ventura.
Se cresce por chegar-me à mor loucura,
Para seres mais dura, e mais escassa,
Tal rosto se não mude, antes se faça
Mais firme do que a minha desventura.
De que pode servir, seres mais bela,
Ver-vos mais soberana, e desdenhosa?
Dai ao demo a beleza, que atropela,
Bendita seja a feia, e a ranhosa,
Que roga, que suspira, e se desvela
Por dar-se toda a troco de uma prosa.
QUIZ O POETA EMBARCAR-SE PARA A CIDADE E ANTECIPANDO A NOTÍCIA À SUA SENHORA, LHE VIO HUMAS DERRETIDAS MOSTRAS DE SENTIMENTO EM VERDADEYRAS LAGRYMAS DE AMOR.
Ardor em coração firme nascido!
Pranto por belos olhos derramado!
Incêndio em mares de água disfarçado!
Rio de neve em fogo convertido!
Tu, que um peito abrasas escondido,
Tu, que em um rosto corres desatado,
Quando fogo em cristais aprisionado,
Quando cristal em chamas derretido.
Se és fogo como passas brandamente?
Se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai! que andou Amor em ti prudente.
Pois para temperar a tirania,
Como quis, que aqui fosse a neve ardente,
Permitiu, parecesse a chama fria.
AO MESMO ASSUMPTO E NA MESMA OCCASIÃO.
Corrente, que do peito desatada
Sois por dois belos olhos despedida,
E por carmim correndo desmedida
Deixais o ser, levais a cor mudada.
Não sei, quando caís precipitada
As flores, que regais tão parecida,
Se sois neves por rosa derretida,
Ou se a rosa por neve desfolhada.
Essa enchente gentil de prata fina,
Que de rubi por conchas se dilata,
Faz troca tão diversa, e peregrina,
Que no objeto, que mostra, e que retrata,
Mesclando a cor purpúrea, e cristalina,
Não sei, quando é rubi, ou quando é prata.
AO MESMO ASSUMPTO
Debuxo singular, bela pintura,
Adonde a Arte hoje imita a Natureza,
A quem emprestou cores a Beleza,
A quem infundiu alma a Formosura.
Esfera breve : aonde por ventura
O Amor, com assombro, e com fineza
Reduz incompreensível gentileza,
E em pouca sombra, muita luz apura.
Que encanto é este tal, que equivocada
Deixa toda a atenção mais advertida
Nessa cópia à Beleza consagrada?
Pois ou bem sem engano, ou bem fingida
No rigor da verdade estás pintada,
No rigor da aparência estás com vida.
CHORA O POETA A MORTE DE HUM SEO FILHO, CUJO PEZAR DEO MOTIVO A PRIMEYRA OBRA SACRA DESTE LIVRO.
Querido Filho meu, ditoso esprito,
Que do corpo as prisões tens desatado,
E por viver no Céu tão descansado,
Me deixaste na terra tão aflito.
Tu mais do que teu Pai és erudito,
Muito mais douto, e mais experimentado,
Pois por ser Anjo em Deus predestinado
Deixaste de homem ser talvez precito.
Se de achaque de um Sol, do mal de um dia
Entre um doce suspiro, e brando ronco
De toda a flor acaba a louçania :
Que muito, ó Filho, flor de um pau tão bronco
Que acabe a flor na dócil infância,
E que acabando a flor, dure inda o tronco.
MORALIZA O POETA NOS OCIDENTES DO SOL A INCONSTANCIA DOS BENS DO MUNDO.
Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.
Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.
CONTINUA O POETA EM LOUVAR A SOLEDADE VITUPERANDO A CORTE.
Ditoso aquele, e bem-aventurado,
Que longe, e apartado das demandas
Não vê nos tribunais as apelandas,
Que à vida dão fastio, e dão enfado.
Ditoso, quem povoa o despovoado,
E dormindo o seu sono entre as Holandas
Acorda ao doce som, e às vozes brandas
Do tenro passarinho enamorado.
Se estando eu lá na Corte tão seguro
Do néscio impertinente, que porfia,
A deixei por um mal, que era futuro;
Como estaria vendo na Bahia,
Que das Cortes do mundo é vil monturo,
O roubo, a injustiça, a tirania.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.