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Por detrás do verde-amarelo

O resultado das eleições gerais de 2018 demarca um trágico e invisibilizado paradoxo sociopolítico no Brasil contemporâneo. Uma onda verde-amarela varreu o país. Notadamente, bairros nobres e cidades com maior índice de desenvolvimento humano, como apontam dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), foram tomados por eleitores trajando as cores da bandeira em um aparente ato cívico em defesa da “família”, de “Deus”, da “Pátria”, da “anticorrupção” e da “renovação política”, mas que esconde, por trás de si, um caráter extremamente autoritário e de negação da democracia.

A aparência, a magnitude e a virulência do fenômeno, no entanto, não devem ofuscar suas profundas contradições, nem tampouco devem nos fazer ignorar o fermento que lhe deu origem.

Um verdadeiro projeto democrático de nação só pode se sustentar se fundamentado na ideia de que o Estado protegerá da mesma forma todos os seus filhos, independentemente de qual religião, orientação sexual, gênero ou cor da pele possuam. Um projeto verdadeiro de nação há que ser, antes de tudo, pluralista e universal. Democracia não é governo da maioria em detrimento da minoria. É, e sempre deverá ser, governo de todos e para todos, no qual todas as vozes sejam ouvidas e respeitadas. Qualquer coisa diferente disso não é democracia, e sabemos bem o que é.

Uma das questões centrais a ser considerada nesse processo de ascensão do autoritarismo como saída para a conjugação das crises que vivemos é pensar no arremedo de democracia que foi cuidadosamente estruturado pelas classes dominantes pós-1988. Uma democracia essencialmente “blindada” aos interesses do povo, negociada pelo alto, com aparência de representação e participação de todos, mas que, em verdade, representa interesses da elite e, embora, formalmente baseada em liberdades, é materialmente fundada no autoritarismo e na desigualdade. 

A deliberada indisposição do andar de cima em transformar a democracia em algo vivo, substancialmente verdadeiro, no modo de vida de milhões de brasileiros, é parte do projeto de desconstrução, no plano ideológico e concreto, do conceito de democracia. Passamos, pois, a achar que os males que estamos vivendo são culpa da democracia e não daqueles que propositalmente a subverteram em benefício próprio!   

Isso explica, em parte, a enorme adesão a um projeto autoritário verde-amarelo. Há ali muitos que agem conscientemente em defesa de um governo autoritário, já que só ele é capaz de garantir seus interesses particulares no campo econômico, político e social. São essencialmente contra a democracia, porque são essencialmente contra qualquer ideia de igualdade. Mas há uma enorme multidão que veste verde-amarelo porque, na sua desilusão cotidiana nutrida pelo sentimento de revolta pelas injustiças sofridas e pelo abandono do Estado, foi convencida, da maneira mais odiosa possível, de que a democracia não mais compensa.  

É por dever ético a essa multidão desesperançosa, que precisamos tirar o véu e mostrarmos as gritantes contradições que permeiam o atual verde-amarelismo.  

Afinal, o que significa, por revolta, apoiar um projeto de nação baseado nos valores de “Deus” e da “família tradicional”? Seria, então, defender um projeto radicalmente baseado no amor ao próximo, na solidariedade cristã, no diálogo e no perdão tais como ensinados por Cristo? Ou estamos fundamentando nosso projeto em um “Deus” que ensina que governos devem distribuir armas ao seu povo para que se matem uns aos outros? 

Nosso projeto se inspira em um Deus que acolhe a prostituta e a salva do apedrejamento da massa enfurecida ou em um “Deus” que abençoa a tortura de alguns de seus filhos e que outros sejam metralhados porque pensam diferente? Estaria mesmo esse projeto fundamentado nos valores cristãos ou apenas se utiliza do lugar da fé das pessoas para impingir um projeto de aniquilamento de “populações indesejáveis” ao tempo que se garante exorbitantes lucros para os amigos da indústria armamentista? Se a democracia falhou na busca da paz, seria esse projeto “cristão” que a garantirá?

Nada mais autoritário do que basear um projeto de nação em apenas uma religião, desconsiderando a pluralidade de credos de seus cidadãos, e nada mais perverso do que o fazer desvirtuando a essência das religiões: a paz e a harmonia entre os homens.

O que significa, efetivamente, um projeto político que se coloque em defesa da pátria e que vista a camisa verde-amarela com tanto orgulho? Seria um projeto que defenda nosso território, nossa soberania, nossas riquezas e nossos direitos, que preze por nossa autodeterminação acima de tudo ou significa vestir a camisa verde-amarela e colocar o boné dos EUA? 

Este projeto ultranacionalista é, em verdade, um projeto de retiradas de direitos e claramente entreguista, que se coloca de joelhos para o capital internacional e para os interesses norte-americanos ao defender a privatização de nossas empresas, como a Petrobras, e de nossas riquezas como a Amazônia, o petróleo do pré-sal e o aquífero guarani.  

Nada mais sórdido do que enganar milhares de brasileiros com discurso de amor à pátria durante o dia e à noite, a pouca luz, traí-lo retirando seus direitos e vendendo seu futuro nos convescotes do poder.   

Por fim, como sustentar que esse projeto e todo esse movimento trazem consigo a “renovação política”, e que, portanto, instalaria novas práticas políticas, quando 48% dos eleitos para o congresso nacional são milionários, quase a metade pertence à bancada latifundiária, 75% são brancos e 10% das mulheres eleitas são parentes de tradicionais políticos? 

Lutamos por renovação contra a corrupção, mas ignoramos a prática de funcionário fantasma e ironizamos denúncias de caixa-dois para disseminação de fakenews que podem ter fraudado as eleições. Seria isso uma renovação ou apenas uma simples reciclagem do velho modo de se fazer política? Estamos, assim, bradando por renovação e aplaudindo o retrocesso!

É, desse modo, que a justificável desilusão do povo brasileiro com a política tem sido cruelmente usada para legitimar movimentos e projetos autoritários de poder que são absolutamente contrários aos seus interesses. 

Os muitos vícios de nossa democracia só serão superados com mais democracia e jamais com o autoritarismo que não nos permita qualquer questionamento. Os erros de quem nos governa – e sempre haverá – e o abandono dos mais pobres e sem voz só poderão ser apontados em um regime democrático, por mais capenga que ele seja. 

Assim, vestir verde-amarelo deveria, antes de tudo, simbolizar nossa decisão coletiva pela democracia, firmes de que não há espaço para o acerto em qualquer outro regime. 

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