“A nossa comunidade Guarani sabe como deve cuidar da natureza pra manter o equilíbrio, não precisa ser ensinado pelos civilizados. A civilização que eu entendo é o que nós temos. Esse civilizado que se acha superior, mas não sabe de nada, não é civilizado, é uma ideologia que pode estar destruindo até o que foi criado por Deus, civilização destruidora”.
A afirmação é de Werá Kwaray, o Toninho, Cacique da aldeia Guarani Boa Esperança, em Aracruz, norte do Estado. Liderança indígena nacional, defensor dos direitos dos povos originários em fóruns e lutas dentro e fora do País. Candidato a deputado federal nas últimas eleições, não alcançou o número de votos suficientes para ingressar na Câmara Federal, mas afirma que continuará fazendo o seu trabalho de articulação política, contribuindo para ladrilhar um caminho para que mais indígenas consigam representação direta no Congresso Nacional.
Suas palavras chegam a este Século Diário em decorrência de uma multa aplicada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação (ICMBio) contra uma família guarani que habita uma terra, a eles doada, que foi incorporada à área do Parque Nacional do Caparaó, no sudoeste do Estado, na divisa com Minas Gerais.
A multa refere-se a armadilhas para caça de animais silvestres, encontradas nas imediações da aldeia. Foi aplicada em 2015, mas o processo prossegue, tendo sido já realizadas algumas reuniões entre as lideranças Guarani, a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Ministério Público Federal e o ICMBio.
Pelo rigor da legislação ambiental brasileira, a prática da caça dentro de uma unidade de conservação de proteção integral como o Parna Caparaó é de fato sumariamente proibida. Até aí, nenhuma ilegalidade pode ser atribuída aos gestores e fiscais do Parque.
A questão, no entanto, passa pela falta absoluta de adequação da lei aos direitos dos povos indígenas, de entendimento de sua cultura milenar e de sua contribuição inconteste à conservação das florestas tropicais, como diversos estudos científicos já comprovaram. Racismo e perseguição contra os indígenas, em outras palavras.
Desde a ampliação do Parque Caparaó, em 1997, centenas de proprietários rurais tiveram o uso de suas terras limitados pela legislação que protege a unidade de conservação, não podendo desmatar, erguer construções, nem caçar, pescar, entre outras atividades. São centenas e uma parte ínfima deles, até o momento, teve suas terras indenizadas e legalmente incorporadas à área do Parque.
Um boom de regularização fundiária está acontecendo nos últimos dois anos, em função da concessão de serviços turísticos à iniciativa privada, pois apenas as áreas regularizadas poderão ser concessionadas.
As agressões contra a biodiversidade do Parque são incontáveis e impossíveis de serem satisfatoriamente fiscalizadas pela equipe da unidade, em função do sucateamento da mesma – perdeu cerca de metade de sua equipe – e do ICMBio, ao qual está vinculado.
Onde, quem e o que fiscalizar, então? Esta própria repórter já ouviu, presencialmente de um ex-chefe do Parna Caparaó, sobre escolhas aleatórias feitas pela fiscalização. “Eu poderia, se quisesse, pela força da lei, demolir a casa deles [referindo-se a uma família branca e da cidade que se instalou dentro da área incorporada ao Parque em 1997, em um loteamento irregular], mas eles são tão legais, não vou fazer isso”.
E centenas de casos assim engrossam a lista de ameaças não punidas pela combalida equipe. A escolha por multar os Guarani se deu após a gestão do citado ex-chefe. Mas os motivos teriam sido menos aleatórios, subjetivos e mais criteriosos?
Multar em R$ 500,00 – ou em um valor maior, o cacique ainda não sabia ao certo, diante das várias páginas do processo, e aguardava esclarecimentos da Fundação Nacional do Índio (Funai) em reunião por acontecer após nossa conversa – uma família que utiliza a caça tradicional de subsistência de forma consciente, respeitosa e mesmo sagrada, segundo sua milenar cultura conservacionista. Será essa escolha realmente a mais justa?
Cultura conservacionista
Os Guarani, povo nômade originário da América do Sul, têm como sua principal área de ocorrência no Brasil a Mata Atlântica, bioma em que os remanescentes florestais são poucos, pequenos e espaçados entre si. Próximos a alguns desses últimos refúgios, (re)existem aldeias e guardiãs naturais da floresta.
Um caso interessante ocorreu recentemente em um parque estadual em Sete Barras, litoral sul de São Paulo. Depois de muita perseguição, a Justiça decidiu em favor dos Guarani permanecerem no parque. “Foi uma vitória importante, porque a resistência dos Guarani foi acima da ideologia dos não-branco”, comenta Kwaray.
Na Amazônia, terra de outras etnias sul-americanas, estudos do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) dão conta de que é nas terras indígenas demarcadas e nas unidades de conservação de proteção integral que a floresta está mais bem protegida. Os índices são equivalentes para ambas as situações, provando que, mesmo passados 518 anos de genocídio e subjugação branca-europeia, a cultura indígena ainda está essencialmente alicerçada na proteção das matas, da biodiversidade, da natureza.
“A pessoa civilizada é aquela que nunca faz mal pra ninguém. Se tem ensino superior pra escravizar a força física de outro, é covardia. Nem os animais fazem isso. Os animais são mais sábios ainda”, assevera Werá Kwaray.
“Os animais também sentem quando é destruído uma área de preservação, quando é liberado pelo Ibama e ICMBio pra fazer hidrelétrica, estrada, plantio de soja, de pasto …”, conta o cacique.
No caso da caça Guarani, explica, são seguidas regras milenares de respeito ao ciclo reprodutivo dos animais e a quantidade que é permitida, pelas leis da Natureza. “Se por acaso uma aldeia tem vinte famílias, não vai matar vinte caças. Vai matar uma caça pra dividir, um pedacinho de carne pra cada família. E também sabe a época que está de filhote e a época pra fazer armadilha. Em começo de reprodução, os nossos conselheiros antigos sempre falavam sobre isso. No mês que vai entrar na reprodução, nós proibimos”, descreve. “Pro Juruá [pessoas não-indígenas] isso é invisível, mas pra nós é visível, nós sentimos através do nosso coração e da nossa mente”, depõe.
Direitos constitucionais
A conversa com o Cacique capixaba também acontece no rescaldo das incendiárias declarações do recém-eleito presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL), que voltou a afirmar que, em seu Governo, “índio não terá mais um centímetro de terra”.
Impossível não perguntar como os Guarani estão lidando com essa expectativa de novo endurecimento do ininterrupto genocídio indígena na terra brasilis. “Eu acredito que esses desafios, esse tipo de fala, esse tipo de ideia, a gente já teve desde o primeiro dia de 1500, quando o branco chegou aqui. Desde aí, a gente já sofre. Mas a gente vai mantendo a nossa luta”, inicia a fala.
“Mas vai ter algumas diferenças, sim, reconhece”. “Aquelas ameaças que ele fez, se ele praticar, é como se fosse a gente ter mais uma luta pelos direitos já conquistados. Mas a gente não vai deixar barato assim, não. Vai manter a nossa força unida como povo. E também o que está ao lado da gente é a força da natureza, de Nhanderu, o criador. Até hoje nós temos a nossa crença, os nossos direitos como povo. Tentaram acabar com o povo, tentaram acabar com a cultura, tentaram de tudo, mas não conseguiram. Vamos manter a luta”, consigna.
Citando os artigos 231 e 232 da Constituição Federal, Toninho afirma que os direitos conquistados não serão perdidos e que o direito à terra é essencial e defendido pelos indígenas de forma muito diferente da sociedade dos juruás.
“Nós não temos interesse em vender a terra porque foi Deus que criou a Terra, fez o mar, fez a mata, fez o rio. Se nós vendermos a terra, nós poderemos fazer um genocídio pra nós mesmo. Nós estaríamos esquecidos nas periferias das cidades ou nas favelas”, pondera.
Quem está nas periferias e favelas, esquecidos pelas autoridades, prossegue, está ali não por opção. “Há muita monocultura que não deixa espaço pro ser humano morar ou os animais viverem com a sua vida digna”, critica.
Civilização
Essa civilização juruá, de exclusão e extermínios, profere, é o oposto da civilização milenar indígena, que respeita a dimensão sagrada da vida e atua seguindo as leis naturais. “A pessoa civilizada é aquela que nunca faz mal pra ninguém. Escravizar a força física de outro, é covardia. Nem os animais fazem isso. Os animais são mais sábios ainda”, diz. “Civilizada é a pessoa que respeita os direitos de outros, não somente os direitos humanos, mas também de todo ser vivo da terra”, roga.