“As duas situações são trágicas. E vivenciam nesse momento um processo evidente de invisibilidade, desaparecendo do cotidiano da vida”, afirma o professor Sergio Brito, analista de Gestão em Saúde da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), coordenador do programa Videosaúde na regional da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e integrante do Grupo de Pesquisa Comunicação e Saúde da Ufes.
A analogia entre os atingidos pela tragédia-crime da Samarco/Vale-BHP e as vítimas do zika vírus foi trabalhada no II Seminário Capixaba de Comunicação e Saúde (Secacs) – Zika Vírus e Rio Doce: (IN)visibilidades, silêncios resistências, realizado nos dias 6 e 7 de novembro últimos, no campus de Goiabeiras da Ufes,sob coordenação de Sergio Brito e outros professores.
O objetivo foi abordar a situação de milhares de vidas afetadas por essas tragédias – “ambas passíveis de serem controladas” – e que “conheceram essa coincidência temporal em novembro de 2015”.
Foi em cinco de novembro de 2015 que a Barragem de Fundão, da Samarco/Vale-BHP, rompeu, jorrando um tsunami de lama ao longo de 650 km do Rio Doce, de Mariana/MG, até Regência/ES, dali se espalhando por todo o litoral capixaba e além, ao norte até Abrolhos/n o sul da Bahia, e, ao sul, até a cidade do Rio de Janeiro.
Em novembro de 2015 também foi detectado que, além da dengue, o mosquito Aedes aegypti transmite a Chikungunya e a Zika. O alerta do Ministério da Saúde para a epidemia de zika se deu em abril de 2015 e, em novembro, foi declarada emergência pública de saúde no Brasil e depois mundial, pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
“Que coisa mais cruel: cinco de novembro é o Dia Nacional da Cultura e Internacional do Cinema. E nesse dia, em 2015, o que vimos foram Imagens cinematográficas da lama, exterminando todo um ambiente natural e humano, extermínio toda uma cultura, mudando completamente o senso de pertencimento naquele território”, lamenta.
Para Sergio Brito, o rompimento da barragem de Fundão não é apenas a maior tragédia socioambiental do Brasil ou da mineração mundial, mas a maior do mundo, uma tragédia-crime que superou em muito a do Alaska e do Golfo do México.
Lá, explica, “a contaminação ficou circunscrita a um trecho do mar. Aqui envolveu todo um rio, que é mais do que um rio”. “Zerou o oxigênio no rio. Morreu toda a vida!”, diz, lembrando o povo Krenak que tem o Rio Doce como seu Deus e lamentou, há três anos, a morte de seu Watu.
“Matando mosquito com bala de canhão”
A síndrome congênita do Zika vírus foi confirmada em 39 crianças no Espírito Santo, havendo ainda 232 suspeitos, no período entre 2015 e 2017. Elas ficaram quatro meses no noticiário, durante o verão 2015/2016, e depois, diz o professor, não se falou mais no assunto. Mas essas crianças e mães continuam existindo, sofrendo, resistindo, sozinhas. “São pessoas que estão precisando de reparos do Estado brasileiro e não estão tendo”, reclama.
A forma de controlar o avanço da doença, com “batalhões de caça-mosquito”, não funciona, critica Sergio Brito. “São 40 anos combatendo dessa forma, é ineficiente”. O que precisa ser feito é investimento consistente em saneamento, para verdadeiramente “controlar vetores que se dão na base da vida comunitária das pessoas”, explica.
O Brasil, no entanto, tem delegado investimentos parcos ao setor e, mesmo o volume de recursos previstos a cada orçamento anual, não é cumprido na totalidade. “Sem esse investimento, vamos continuar desperdiçando dinheiro com inseticida, com fumacê, que além de ineficiente, desequilibra a biodiversidade”, descreve, citando vários insetos que morrem nas cidades, como abelhas, borboletas, besouros. “Usar o fumacê para combate o Aedes aegypti é querer matar um mosquito com bala de canhão”, metaforiza.
De fato, o Aedes aegypti já tinha sido controlado por Osvaldo Cruz no início do século XX. Ficamos 60 anos sem problemas com ele, até que ele reapareceu na década de 1980. “Infelizmente os profissionais de comunicação pública ficaram aprisionadas ao combate ao mosquito, quando deveriam estar atentos à falta de saneamento e à derrubada de florestas, que os faz invadirem as cidades”, consigna.
Faltam estudos
A relação entre um possível aumento da infestação do Aedes aegypti em decorrência da tragédia-crime da Samarco/Vale-BHP, apesar de ter sido levantado por alguns profissionais de saúde & meio ambiente, inclusive da própria Fiocruz, não foi ainda devidamente estudada. A Fundação Renova investiu fortemente em ações para minar iniciativas nesse sentido e a hipótese continua em aberto.
“É um fato tão inédito e tão avassalador, que ainda é muito difícil estabelecer verdades nesse momento. Sabe-se que o desequilíbrio é radical, agora daí a saber se há mesmo relação com o mosquito ou não, só com pesquisas de longo prazo”, reconhece.
O II Secacs não tratou desse aspecto ambiental e epidemiológico das tragédias, mas sim se propôs a evidenciar o sofrimento de suas vítimas diretas, que perdura, passados três anos, apesar do silêncio da mídia e devido, substancialmente, à inação do Estado e das empresas criminosas.
O licenciamento ambiental da nova barragem, a Cava Alegria Sul, em Mariana, para a Renova, objetiva não só construir mais uma estrutura para armazenar rejeitos, mas também apagar a memória do crime.
Humanidade
Em ambas as tragédias, ressalta o pesquisador, há atingidos direta e indiretamente. No caso do zika, há dezenas de mães e crianças que passaram a viver em função da doença, num total abandono do Estado. “Isso me afeta! Sou humano!”, agasta-se.
No caso da Samarco/Vale-BHP, há comunidades inteiras sofrendo com falta de trabalho e renda, com doenças como depressão, suicídio, problemas de pele, com a perda de sua identidade cultural, de seu lazer. E há quem seja atingido pela contaminação da água do rio e do mar, e com os pescados. “Se você não se sente atingido, tem que rever seu conceito de humanidade, não é possível! Nós somos todos atingidos!”, brada.