O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio de Noronha, admitiu um recurso extraordinário impetrado pela Procuradoria-Geral da República (PGR) que pede a federalização do julgamento dos militares envolvidos na greve da Polícia Militar, ocorrida em fevereiro de 2017, o chamado Incidente de Deslocamento de Competência (IDC). Como a anistia aprovada pelo Plenário da Câmara Federal, nessa quinta-feira (6), ainda depende de aprovação do Senado e sanção do presidente da República, há a possibilidade de transferência de todos os processos que correm na justiça estadual capixaba para a esfera federal, anulando os trâmites judiciais realizados até então no Espírito Santo.
O recurso extraordinário foi interposto pela Procuradora-Geral da República contra acórdão da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, que havia negado o pedido em outubro deste ano. Com a admissão do recurso, o processo será submetido a novo julgamento, desta vez, no Supremo Tribunal Federal.
O ministro João Otávio de Noronha, relator do processo e também presidente do STJ, assinou a decisão no último dia 21 de novembro. Segundo Noronha, sustentando o acolhimento do recursos extraordinário: “… o recorrente sustenta configuradas a grave violação de direitos humanos e a possibilidade de responsabilização internacional do Brasil pelo descumprimento de obrigações assumidas perante a comunidade internacional, diante do ‘elevado risco de contaminação do aparato estadual para a apuração do ocorrido”.
Em outubro deste ano, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, teve o pedido de federalização negado em acórdão do STJ. Para a PGR, em cenário conturbado como o que viveu o Espírito Santo, o julgamento de crimes militares por seus próprios pares “é temerário, seja pela extensão do movimento, com adesão de praticamente 100% do efetivo policial militar (fato notório), seja pelos indícios de participação de oficiais na própria organização do movimento”.
De acordo com o recurso, na visão do Ministério Público Federal, o movimento grevista dos policiais militares, sua proporção, os efeitos sobre a população capixaba, o comportamento e a opinião das autoridades governamentais e a repercussão do caso preenchem os requisitos constitucionais e jurisprudenciais a autorizar e recomendar o deslocamento de competência.
A procuradora-geral também destaca a parcialidade na apuração dos fatos. Ela cita no recurso que, no período dos acontecimentos, em declarações à mídia, parcela significativa dos integrantes da Polícia Militar considerou a paralisação legítima.
“Não há maneira de se formar, nesse contexto, conselhos isentos para o julgamento que passa, necessariamente, por juízo acerca da legitimidade do movimento”, aponta Raquel Dodge.
O IDC 14 foi ajuizado iniciado em julho de 2017 pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot. O pedido destacou a presença dos três requisitos necessários para o deslocamento de competência: a constatação de grave violação de direitos humanos; a possibilidade de responsabilização internacional, decorrente do descumprimento de obrigações assumidas em tratados internacionais; e a evidência de que os órgãos do sistema estadual não mostram condições de seguir no desempenho da função de apuração, processamento e julgamento do caso.
A PGR relata que durante mais de 20 dias, sem a atuação efetiva da Polícia Militar em todo o Estado, foram registradas mais de 210 mortes, saques, arrombamentos de estabelecimentos comerciais, atos de vandalismo e depredação do patrimônio, roubos, queima de ônibus e tiroteios.
Anistia
Nessa quinta-feira (6), dois dias depois de a Justiça Militar do Espírito Santo concluir o primeiro julgamento de oficial acusado (o capitão Evandro Guimarães Rocha) de participação no movimento paredista da Polícia Militar (PMES), ocorrido em fevereiro de 2017, o Plenário da Câmara dos Deputados aprovou a anistia a militares, policiais e agentes penitenciários grevistas do Espírito Santo, Ceará e Minas Gerais. A anistia abrange os movimentos ocorridos entre 1º de janeiro de 2011 e 7 de maio de 2018.
Foi aprovado o Projeto de Lei 6882/17, do deputado Alberto Fraga (DEM-SP), focado nas greves do Espírito Santo, e duas emendas que incluíram no pacote de anistia os movimentos grevistas do Ceará e Minas Gerais. A medida segue para análise do Senado e cancela investigações, processos ou punições contra militares ou seus familiares pela participação em atos reivindicatórios por melhores salários ou condições de trabalho.
Até então a auditoria da Justiça Militar capixaba, especializada no julgamento de crimes cometidos por PMs, está realizando o julgamento dos PMs por crimes militares. Em primeiro lugar, a denúncia imputava a 14 PMs do 7º Batalhão da PM, de Cariacica, os delitos de motim (art. 149, inciso I, do Código Penal Militar) e incitamento à prática de indisciplina ou crime militar (art. 155 do Código Penal Militar).
Paralelo ao trabalho da Justiça Militar, a 4ª Vara Criminal de Vitória também tem em curso julgamento de militares por crimes comuns. No dia 18 de maio deste ano, 10 policiais militares indiciados como réus na ação civil pública impetrada pelo Ministério Público do Estado (MPES) foram interrogados, apesar de os advogados de defesa terem pedido transferência do foro para a Justiça Militar, o que foi negado pelo Tribunal de Justiça do Estado. As alegações finais já foram feitas e os acusados aguardam divulgação das sentenças.
Responsabilidade do governo
Quase dois anos depois da paralisação, no dia 22 de outubro deste ano, o Ministério Público Estadual (MPES) resolveu publicar portaria para investigar a responsabilidade do alto comando do Governo do Estado na paralisação da Polícia Militar do Espírito Santo (PMES), ocorrida em fevereiro de 2017. Entre eles, o próprio governador do Estado, Paulo Hartung; o então secretário de segurança, André Garcia; Laércio Oliveira, ex-comandante da PM; Nylton Rodrigues Filho, também ex-comandante da Corporação e atual secretário de Segurança; e Carlos Marcelo D’Isesp Costa, comandante-geral do Corpo de Bombeiros.
A portaria 003/2018 foi assinada por Elda Spedo no exercício do cargo de procuradora-geral de Justiça, no lugar do Eder Pontes, procurador-geral titular.
A decisão veio ao encontro, finalmente, do desejo das entidades que representam os militares investigados, condenados e expulsos da Corporação. Até então, a responsabilização do movimento tem sido atribuído apenas aos PMs, sobretudo os praças, excluindo a cúpula do governo, que se mostrou inábil para negociar e por fim à paralisação, conforme relatos até da procuradora geral da República, Raquel Dodge, no parecer que pedia a federalização do julgamento.
Durante o interrogatório, o Capitão Lucínio Assumção, eleito à Assembleia Legislativa pelo PSL, que chegou a se preso, afirmou que coronéis que estavam no comando de batalhões e companhias independentes e impediram militares de sair para o policiamento entre os dias 4 e 7 de fevereiro, também deveriam ser responsabilizados, assim como os integrante da alta cúpula do Governo.
“Arrolei o ex-secretário de segurança como testemunha para o meu processo, mas ele se negou a colaborar. Estou esperando aparecer um homem pra desarquivar a investigação dos oficiais que impediram a tropa de ir às ruas. Existe uma hierarquia na PM, os praças cumprem ordens. Não é possível que o comando não poderia ter retirado um grupo de mulheres para sair para o policiamento. Os oficiais acharam que o movimento daria certo, mas depois recuaram. Essa investigação foi arquivada pela Corregedoria”, afirmou.