Documento elementar para a gestão das águas no Espírito Santo, o Plano Estadual de Recursos Hídricos (PERH) foi lançado nessa quinta-feira (13), no auditório da Agência Estadual de Recursos Hídricos (Agerh), em comemoração ao aniversário de cinco anos da Agência.
O Plano, no entanto, segundo avaliação dos conselheiros e membros de comitês de bacias hidrográficas ouvidos por Século Diário, foi feito com atraso, a toque de caixa, e com baixa participação da sociedade civil organizada.
“É um Plano mais político do que técnico. Demorou para ser iniciado e acabou sendo feito a toque de caixa, pra ser lançado nesse mandato””, critica o advogado Carlos Humberto de Oliveira, da ONG Juntos SOS ES Ambiental e membro do Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CERH), do Conselho Regional de Meio Ambiente – Grande Vitória (Conrema 1) e do Observatório Nacional da Governança das Águas (OGA).
“A participação da sociedade também não aconteceu como deveria. As reuniões foram realizadas sempre em cima da hora, prejudicando os representantes da sociedade civil, que participam de forma voluntária”, complementa, explicando que o correto seria ter havido uma discussão profundo em uma câmara técnica do CERH, com emissão de parecer do texto do Plano, para então ser apreciado pela plenária.
O resultado de todas essas falhas, ressalta Carlos Humberto, é que ele já nasce com prazo de validade curto, devendo ser atualizado bem antes do prazo legal previsto, ainda na gestão do governador eleito Renato Casagrande (PSB). “Daí a importância de que o novo governo, através da Agerh e Seama [Secretaria de Estado de Meio Ambiente), tenha uma atenção especial ao plano para adequá-lo ao que o Estado e a sociedade realmente precisam”, exorta.
Caso contrário, alerta o conselheiro, o Plano Estadual corre o risco de continuar sendo um documento sem qualquer utilidade prática na efetiva implementação das políticas públicas relacionadas às águas no Espírito Santo, pois seu diálogo com os planos de Bacias Hidrográficas e Resoluções do CERH será muito pequeno.
De fato, essa baixa influência sobre os programas e ações do governo já tem acontecido de forma dramática, pelo menos no caso da Bacia Hidrográfica do Rio Itaúnas, no norte capixaba, a mais devastada do Estado, com apenas 9% de cobertura florestal nativa e com disponibilidade hídrica negativa.
Prova cabal é a construção de algumas das maiores obras constantes no Programa Estadual de Barragens, apesar do PERH já apontar a necessidade de reduzir a taxa de reservação de água no Itaúnas e investir em reflorestamento e uso racional das águas.
“O Plano Estadual tem um viés de desenvolvimento econômico e não a disponibilidade hídrica do ponto de vista social e ambiental. Estamos vivendo a maior crise hídrica da história, sem perspectiva de sair dela”, critica a bióloga Marcia Lederman, da ONG Sociedade de Amigos Por Itaúnas (Sapi) e membro do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Itaúnas.
O setor de conservação muitas vezes fala sozinho nas reuniões dos planos de recursos hídricos, seja o estadual ou de comitês de bacias, lamenta Marcia. “Para que eles de verdade sejam plurais e considerem as visões social, ambiental e econômica do desenvolvimento, as turmas do social e do ambiental têm que participar. Porque o viés econômico está sempre forte”, convoca.
'Plano de migração'
Nas reuniões do Itaúnas, por exemplo, Marcia chegou a propor, em tom de ironia: “Em função dos dados que dispomos sobre a Bacia, qual é a nossa proposta? Nós não vamos mais morar aqui, vamos deixar esse território somente para o plantio de eucalipto, criação de gado e fruticultura? É essa a nossa decisão? Não precisamos mais viabilizar a nossa permanência das pessoas e fazer um plano de migração? 230 mil pessoas! Vamos migrar em etapas?”, provocou.
Pinheiros, informa, é o município que mais irriga no Espírito Santo e está entre os que mais irriga no Brasil, proporcionalmente. Os produtores rurais de Pinheiros formam um sistema produtivo que caracteriza agronegócio, alerta. “Agronegócio não é necessariamente grande proprietários de terra, latifundiários, mas também a concentração de um único tipo de produção numa mesma região”, explica.
Os caminhos que a Bacia do Itaúnas têm que adotar como prioridade, ressalta, passam, primeiramente, por um grande programa de recuperação da cobertura florestal e de eficiência hídrica dos sistemas produtivos dependentes da água. “Quarenta por cento do território é coberto por pastagens extensivas e quase 15% por eucaliptos!”, descreve.
Surpreende ainda mais a situação trágica das águas no Itaúnas quando se lembra que esta é a Bacia com o Comitê mais antigo do Estado, formado em 1998 e pioneiro no Brasil nos Acordos de Conservação Comunitária (ACCs) para resolução de conflitos por água.
Elio Castro Paulino, da ONG Sinhá Laurinha, membro do Comitê das Bacias Hidrográficas da Região do Rio Benevente e do CERH, diz que os CBHs capixabas não fazem gestão na plenitude estabelecida na legislação porque não estão devidamente instrumentalizados. ”Não há o instrumento cobrança”, exemplifica, além da ausência de estrutura administrativa para os membros, especialmente da sociedade civil. “Eu tenho que usar a minha internet, o meu telefone …”, completa.
Alertas vermelhos
Elio também se pergunta sobre a efetividade do PERH. “É um documento bom, mas só vamos saber se ele de fato consolida o acordo social e político pretendido, na hora em que for colocado em prática”, comenta, ressaltando, no entanto, o viés econômico apontado criticamente por Marcia. “O objetivo é garantir que a água não seja o elemento que vai impedir o crescimento do Estado”, afirma.
O Plano, conta, tem “dois mapas extremamente importantes”: um do quadro atual de disponibilidade hídrica, com muitos pontos em vermelho de norte a sul, onde já há uma tendência ou real situação de escassez hídrica; e outro mapa com o quadro futuro, daqui a duas décadas, com muitos mais pontos vermelhos, considerando um cenário em que as medidas de conservação e recuperação não sejam implementadas.
O problema é que, de fato, nada relevante tem sido feito, vide os números pífios do Programa Reflorestar e as sucessivas licenças para ampliação da monocultura de eucalipto, por exemplo. Elio cita ainda um Plano de Combate à Desertificação, discutido entre 2005 e 2007, mas ainda não elaborado.
É preciso que algumas questões sejam levadas à tona, declara. “Será que poderia mesmo ter sido plantado somente madeira e pasto no norte do Estado? Não foram avaliados os riscos. As mesmas atividades econômicas num mesmo território por décadas, é esse mesmo o caminho?”, questiona.
Vinte anos
O PERH estabelece diretrizes para a gestão das águas em 14 bacias hidrográficas do Espírito Santo para os próximos 20 anos. Aprovado pelo CERH em outubro, será implementado pela Agerh, que coordenou sua elaboração, com apoio técnico do Consórcio NKLac/Cobrape, formado pela empresa japonesa Nippon Koei Lac e pela Companhia Brasileira de Projetos e Empreendimentos (Cobrape).
Segundo divulgado pela Agência, entre os programas previstos para serem implementados pelo PERH, estão a consolidação do marco legal das águas, o Plano de Comunicação e Mobilização Social, o fortalecimento institucional, o inventário, a estimativa e o monitoramento das disponibilidades hídricas, o cadastro, a estimativa e o sistematização das demandas hídricas em qualidade e quantidade e a promoção de programas que visem ao aumento da eficiência nos principais usos setoriais, como na irrigação, no abastecimento público e na indústria.
Das 14 bacias contempladas no PERH, cinco já construíram seus planos locais, que estão desenhados para serem executados em curto médio e longo prazo, ou seja, quatro, doze e vinte anos.