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‘O sistema de justiça precisa ouvir mais as mulheres’

Fotos: Divulgação

Assistente social e pesquisadora, Emily Marques Tenorio lança na próxima quinta-feira (20), de 18h às 21h, o livro Lei Maria da Penha e medidas de proteção: entre a polícia e as políticas. O local é a livraria Don Quixote, na Praia do Canto, em Vitória. Apresentado no início deste mês no Encontro Nacional de Pesquisadores/as em Serviços Social, que aconteceu na Capital, a obra é fruto de sua dissertação de mestrado com algumas atualizações.

Confira a entrevista que a pesquisadora concedeu ao Século Diário:

Qual a importância da Lei Maria da Penha para o enfrentamento da violência contra a mulher no Brasil? Quais considera seus fatores mais positivos?

A Lei 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, é considerada pela Organização das Nações Unidas [ONU], desde 2012, uma das três melhores legislações no enfrentamento à violência contra a mulher em âmbito mundial, atrás apenas da Espanha e Chile. O acionamento da lei constitui-se como uma das diversas tentativas de romper com a violência doméstica e familiar. Tal expressão da violência não é a única vivenciada por nós, porém constitui-se uma forma específica de desumanização das mulheres, que ganhou visibilidade prioritariamente, ao nosso ver, com a luta do movimento feminista, com a construção e aprovação da Lei Maria da Penha, que foi precedida por marcos legais internacionais e com divulgação das trágicas estatísticas de violências contra a mulher que trazem em dados o que as feministas sempre denunciaram.

Quais as principais limitações que na prática têm dificultado a aplicação da lei? Como resolvê-las?

Os limites da proteção social na implementação dessa legislação se apresentam na dificuldade de acesso à Justiça, na continuidade do machismo institucional e na falta de transversalidade das ações. Como resultados, percebemos que a “proteção social” ofertada à mulher são as mais superficiais e imediatistas, que não demandam maiores investimentos em políticas públicas. Voltam-se para a restrição de direitos dos homens (principais denunciados), em detrimento de políticas públicas direcionadas à prevenção das violências ou acompanhamento para os envolvidos, trazendo um reducionismo ao próprio espírito da lei e conservando o tradicional papel do Direito. O sistema de justiça precisa ouvir mais as mulheres, considerá-las como sujeitos e não como papeis ou boletins de ocorrência. E em articulação com a rede especializada de atendimento, os mecanismos de controle social, como o Cedimes [Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Mulher do Estado], e os movimentos feministas, construirmos estratégias de melhoria na aplicação da legislação.

A lei prevê um tripé de atuação baseado em contenção, prevenção e assistência, em detrimento do viés apenas punitivo. Como avalia a atuação em cada um desses pontos? Tem sido adequada?

No atendimento às mulheres em situação de violência, devemos analisar as suas condições concretas de vida, em sua diversidade, as expectativas quando acionam o sistema de justiça, e os limites da proteção social nesse sistema que consideramos estruturalmente desigual. Não podemos uniformizar as mulheres. Elas têm histórias diferenciadas, assim as respostas às violências também não podem ser homogêneas. Muitas querem que a violência cesse, que seja contida, porém não desejam as respostas tradicionais e imediatistas do sistema, o que nos exige sensibilidade, capacidade técnica e criatividade nos atendimentos. As mulheres precisam ser preparadas e fortalecidas para o caminho que trilharão, por isso a assistência faz-se fundamental, assim como a prevenção de novas violências. Como a lei aborda violências perpetradas por pessoas com as quais elas têm vínculo familiar e /ou de afeto, se nos restringirmos à sedução do punitivismo, muitas desistirão de falar sobre as violências, além de ser a resposta potencialmente menos transformadora da realidade social.

Como analisa a questão no contexto da realidade capixaba, tendo em vista que o Espírito Santo costuma figurar entre os estados com maior índice de feminicídio no Brasil?

O alto índice de violência no Estado figura, desde o primeiro Mapa da Violência, em 2012, nos rankings nacionais. O Espírito Santo já esteve no topo como o estado mais violento para mulheres. O último Mapa da violência de 2015 expôs que o Estado desceu para segundo lugar no ranking, atrás somente de Roraima. Porém, destacamos que se nos detivermos ao recorte étnico racial, o Espírito Santo é uma das unidades com maiores taxas de homicídio de negras, com taxas acima de 10 por 100 mil. O estado capixaba, além de permanecer no ranking de homicídios femininos, sua capital Vitória, uma capital brasileira com nome de mulher, foi avaliada como a mais violenta entre as capitais brasileiras. Alarmante é o fato de que um Estado relativamente pequeno, formado por 78 municípios, possua 10 destes na lista dos 100 municípios com mais de 10.000 habitantes do sexo feminino, figurando com os maiores índices de violência letal contra as mulheres do Brasil.

Sobre os dados da versão do Atlas da Violência de 2017, a indicação é que o Espírito Santo sairia da lista dos cinco estados mais violentos do país, espaço ocupado desde 1980, caindo para a 15ª posição nacional, com uma diminuição do índice de homicídios de forma genérica em 27,6%. Porém, essa pesquisa dedica importantes sessões de análise dos dados referentes à evolução da letalidade da população jovem, negra e de mulheres no Brasil. Diante disso, o estado conserva-se no topo do ranking, com as maiores taxas de letalidade entre mulheres negras, com o índice de 9,2 . Apesar disso, O Atlas da Violência de 2018 tece comentários elogiosos à política de segurança pública do estado capixaba. confere a redução das taxas de homicídios ao programa 'Estado Presente', enquanto os movimentos sociais denunciam o 'austericídio' dessa gestão. Ao observamos os noticiários e as denúncias dos movimentos sociais relacionados às mulheres, à questão étnico-racial e a juventude, percebemos onde e para quem o Estado está 'presente' ou 'ausente', ou ainda, somente presente com políticas de segurança pública.

Precisamos compreender, portanto, elementos da formação sócio-histórica que fazem do Espírito Santo um estado reconhecido no cenário nacional por sua violência e conservadorismo. Podemos analisar questões como urbanização, industrialização tardia, migração, religiosidade e demais elementos que se entrelaçam e reforçam o patriarcado e o conservadorismo capixaba, desembocando em uma violência específica que não se direciona só às mulheres.

Ao longo dos anos há tentativas de modificações da Lei Maria da Penha. Como vê essa possibilidade diante do novo cenário político nacional, com um avanço dos setores ultraconservadores? Há um risco real de retrocesso?

A Lei Maria da Penha é uma lei nova, com 12 anos de existência, e constantes avaliações e sugestões são feitas a ela. Percebemos que projetos de lei visam alterá-la, por vezes deslocando-a de um caminho mais progressista para um mais punitivista ou desmantelador de direitos. Aparecem ainda propostas sobre o manto aparente de humanização e superação dessa justiça retributiva, apropriada de propostas de setores críticos e ressignificada de forma conservadora. Não podemos cair nas armadilhas de comemorar judicializações ou sentenças que, por vezes, nem a própria pessoa deseja.

A Lei Maria da Penha prevê a construção e ampliação de serviços especializados situados na rede de enfrentamento e de atendimento à mulher em situação de violência, mas isso ocorre num cenário neoliberal de redução de gastos com políticas sociais públicas. Isso se agrava frente ao conservadorismo explicitado no poder executivo e legislativo que assumirá o país nos próximos anos e nas declarações equivocadas, baseadas em fundamentalismo religioso da futura ministra das Mulheres e dos Direitos Humanos. Nos preocupamos para quais mulheres e quais humanos ela pensará políticas públicas, já que manifesta repúdio às feministas e à população LGBT.

Conte-nos um pouco sobre o livro que você está lançando…

Treze mulheres são assassinadas por dia no Brasil, somente esse dado já nos convoca a pensar essa realidade para transformá-la. Por isso, trabalhando como assistente social no judiciário, um espaço em que os papéis chegam antes dos sujeitos e que a lei os uniformiza, retomo diariamente minha preocupação em enxergar e atender às pessoas com suas complexidades, diferenças e contradições. Dessa forma, nesta pesquisa, apesar de estudar uma legislação, o foco não estará no debate de seus aspectos técnico-processuais, embora alguns sejam expostos.

O livro é fruto da dissertação de mestrado em Política Social, apresentada ao Programa de Pós-graduação da Ufes. Alguns elementos foram atualizados e acrescentados após a defesa, em virtude de avanços na pesquisa, mudanças na legislação, divulgação de novas estatísticas ou importantes debates em torno da Lei Maria da Penha. Nesse caminho, acompanhada pelas reflexões trazidas na formação em Serviço Social, pela lente feminista e pela crítica marxista ao Direito, percorro o debate acerca da proteção social oferecida judicialmente às mulheres que requisitaram medidas protetivas de urgência em virtude de violência doméstica ou familiar.

No processo de sucessivas aproximações com a realidade, busco dar 'voz' a esses anseios e necessidades materializadas nas histórias de Maria das Graças, Maria das Dores, Maria Perpétua, Maria Aline, Maria Flor, Maria José, Maria Betânia, Maria Carolina, Maria Clara, Maria de Lourdes, Maria Josefina, Maria Luísa, Maria Vitória, Maria Madalena, Maria Fernanda, Maria da Glória, Maria Paula, Maria Regina, Maria da Consolação, Maria Elisa, Maria Francisca, Maria Quitéria e Maria do Rosário. Esperamos promover reflexões entre trabalhadores das políticas sociais públicas e do sistema de Justiça, militantes do movimento feminista e das demais mulheres e homens que se interessem pela temática.

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