No dia em que subiu ao palco nas comemorações dos 10 anos no Parque da Cidade, na Serra, a banda Estrela dos Artistas completava nada menos do que 50 anos de sua primeira apresentação pública, que aconteceu no dia 15 de dezembro de 1968 na festa da cortada do mastro de São Benedito em Serra Sede. Se trata de uma banda marcial que sobreviveu ao tempo e às dificuldades e se mantém como uma marca na memória dos serranos, animando as diversas festividades, especialmente as do fim do ano.
O surgimento da Sociedade Musical Estrela dos Artistas (SMEA) remete a meados 1967, quando o grupo é fundado e inicia ensaios teóricos e práticos para formar os músicos e estrear um ano e meio depois. Mas suas origens podem ser buscadas ainda muito antes nas duas bandas que existiram desde o século 19.
A primeira foi o Recreio dos Artistas que foi criada em 1860 pela Guarda Nacional para recepcionar o imperador Dom Pedro II em visita ao Espírito Santo. A outra foi a Lira Estrela do Norte, fundada em 1892 e ligada às festividades católicas. Com a morte dos maestros em meados dos anos 40 do século 20, ambas bandas acabaram encerrando as atividades. Foram quase 20 anos em que o município ficou sem ter banda, embora alguns ex-integrantes de ambas se esforçavam para tocar nas festividades. Daí o surgimento da nova banda reunindo parte do nome de suas duas antecessoras.
No ciclo das festividades de São Benedito, a banda tem uma presença marcante e divide as ruas com os grupos de congo. A preparação da SMEA começa momentos antes em sua sede. É lá a “concentração”, quando os músicos vão chegando aos poucos, se encontrando e preparando para as apresentações, colocando o uniforme apropriado para cada ocasião podendo ser terno ou camisa da banda, com bermuda ou calça a depender do evento.
A sede possui três andares. Nos dois de cima estão salas onde acontecem ensaios e aulas, com uma boa estrutura. Uma parte fundamental do projeto é a formação dos músicos, algo que falaremos mais adiante. No térreo, o espaço está alugado para uma loja de utilidades domésticas, e o rendimento ajuda a cobrir algumas despesas que o grupo tem.
Ali em frente, quando todo mundo está pronto, instrumentos em mãos e pés nas ruas, é hora de sair, sem ter um horário tão preciso. Começa o show. Ou melhor, desfile. Nas festas de Serra Sede, sobre o asfalto o cocô de cavalo pavimenta o caminho, com a tradicional vinda dos cavalgadores dos distritos do interior até a cidade. Um centro com jeito de vila.
O calendário da Estrela da Cidade começa com as festas de Nossa Senhora da Conceição, padroeira do município. No dia 7 de dezembro, a banda levanta Serra Sede com a Alvorada, quando sai às 5h pelas ruas, anunciando o início das festividades. No dia seguinte, a SMEA acompanha a procissão católica pelas ruas.
No último dia 9 de dezembro, domingo, a banda participou como sempre da festa da cortada do mastro, a mesma em que estreou 50 anos atrás. Da sede caminha até a Igreja Matriz, onde se encontra com as bandas de congo e tocam juntos antes de começar a peregrinação pelas ruas.
Após a saída das bandas de congo, a Estrela dos Artista segue atrás com seus instrumentos de sopro e um repertório recheado de maxixes e sambas. O grupo tem canções próprias, a mais emblemática delas é o Vapo, que faz referência ao barco levado na procissão (chamado antigamente de “vapor”). Esta música virou praticamente um hino para as pessoas de Serra Sede.
A relação da banda com o local se explicita e culmina durante o trajeto. A primeira parada é em frente à casa de Galbo Benedicto, que participou por mais de 40 anos da SMEA, sendo compositor, músico, maestro e o principal historiador da banda. À varanda, Galbo e sua grande família saúdam a banda, que toca de frente para eles, em homenagem ao mestre.
Na casa se notam muitos rostos visivelmente emocionados. Na casa seguinte, muita vibração. O maestro chama para frente o saxofonista, um jovem, que seguindo os passos de familiares é integrante da banda. Na calçada, mãe e tia mal seguram as lágrimas. A banda é tradição. Continuidade. Formação.
Em outra parte do caminho, um minuto de silêncio. Calam-se os instrumentos e permanece apenas a voz dos foliões. O grupo passava em frente à casa de um integrante falecido num acidente. Mas o tributo não é só triste. Aplausos em agradecimento. E do silêncio volta o som com força, de frente para a casa, num tributo ao ausente. Vão-se as vidas, segue a banda. E o povo continua seguindo-a.
O grupo hoje tem cerca de 50 integrantes, que vão desde jovens com 14 ou 15 anos até pessoas com mais de 70. A renovação não se dá por acaso. A SMEA possui uma escola de música que atende anualmente 130 alunos, que dependendo da idade aprendem sobre musicalização, teoria musical e instrumentos, tudo de forma gratuita.
Assim, a banda contribui com a formação de músicos na cidade, alguns seguem carreira na área, como Claudio Antunes, que há 10 anos é o maestro da Estrela dos Artistas. Ele chegou à SMEA anos 8 de idade, e tocou diversos instrumentos. Seguiu carreira como músico tocando pelo Espírito Santo e Brasil e posteriormente se graduou em Música, sendo hoje professor e também maestro.
Outro integrante é Gessé Paixão. Nascido em Vista da Serra, foi levado pelo pai ainda criança junto com seu irmão Lino e na Estrela dos Artistas aprenderam a tocar. Hoje ambos integram o grupo a mesa, que foi destaque no programa Talentos Brasil na TV Câmara. Outros membros da sociedade musical seguem carreira na música em bandas militares, igrejas e outros espaços, com destaque especialmente para os instrumentos de sopro, dos quais há carência de formação de músicos no Espírito Santo. “A banda é um celeiro que permite muita gente aprender música e até sustentar suas famílias de forma profissional”, diz o maestro.
Além do formato de rua, a Estrela dos Artistas também possui um formato Big Band, que se apresenta nos palcos incluindo aos instrumentos percussivos e de sopro a guitarra, baixo, bateria, piano, percussão completa e vocal. O repertório surpreende, pois incorpora desde clássicos da MPB até música ultra contemporânea, de artistas como Wesley Safadão ou Marília Mendonça. “Esse repertório chama atenção especialmente do público mais jovem, que nunca atentou para uma banda de música. É uma maneira de chamar atenção para a música orquestrada”, explica Cacau. Assim aumenta o diálogo da banda com o povo.
Mas, apesar de todo esse trabalho e trajetória, as dificuldades são constantes diante de pouco apoio do poder público e da iniciativa privada. “Por isso muitas bandas e sociedades musicais têm fechado as portas, pois não conseguem se sustentar. A manutenção não é barata”, diz citando o cuidado necessário com o instrumentos e a importância das bandas civis em diversas comunidades. “No interior do Estado já encontrei muitas sedes das bandas sem instrumentos e maestro”. Cita alguns poucos municípios que mantém bandas civis em atividade como São Mateus, Conceição da Barra e Guaçuí.
Depois da apresentação no formato Big Band no Parque da Cidade, a banda se preparada para jornada mais intensa do ano, nas festas de São Benedito. No dia 24, o grupo abre os trabalhos, com mais uma Alvorada, se reunindo a partir das 4h em sua sede antes de acordar a cidade. Nos dias 25 e 26, durante a puxada e fincada do mastro, a agenda da banda começa de manhã e só termina à noite.
Quando a Estrela dos Artistas passa podemos visualizar a música A Banda, de Chico Buarque: “A minha gente sofrida / Despediu-se da dor / Pra ver a banda passar/ Cantando coisas de amor”. E depois é “cada qual no seu canto e em cada canto uma dor”. Tudo toma seu lugar, depois da banda passar.