Uma das instalações da exposição Malungas, realizada no Museu Capixaba do Negro (Mucane), ganhou nova vida e significado. Após o término do tempo de exposição, Quarto de Cura, de Castiel Vitorino Brasileiro, subiu o morro da Fonte Grande e pode ser visitada até o dia 31 de dezembro, mediante agendamento.
O local de instalação é um quarto utilizado para guardar instrumentos na casa Renato Santos, mestre da banda de congo Vira Mundo, da qual Castiel fez parte quando criança. A exposição inclui diversas ervas medicinais, pomadas, garrafadas, receitas, velas, pedras, patuás, fotografias e outros objetos, relacionados também com fé, cura e espiritualidade. A estas soma-se na nova versão os próprios tambores e casacas de congo que ali costumavam ficar guardados, além de outros objetos inseridos pelo mestre Renato.
Se no Mucane, o quarto foi um espaço adaptado dentro de um salão de museu, na Fonte Grande o local ganha um caráter mais rústico e ao mesmo tempo autêntico, lembrando um tipo de habitação que não era incomum nas casas de tantas benzedeiras que existiram naquela comunidade. “É preciso ter uma dimensão de cuidado. Não é uma intervenção no sentido de que vou intervir e não ser intervida, é mais um diálogo”. Assim, a artista preferiu preservar o local como estava, compondo com o cenário já existente, suas rachaduras, sobreposições de tintas nas paredes e outros elementos.
“Não entendo como apenas uma exposição ou galeria. Estou criando uma experiência instalativa em que as pessoas podem vir conhecer. Mas quero transformar também em local de pesquisa e atendimento aos modos da psicologia e das benzedeiras”. Por conta disso, as visitas acontecem com agendamento por telefone.
“A cura exige que as pessoas se movimentem. Não dá pra ir lá buscá-las. Mas quero entender como se dão os processos de cura nesse morro marcado pela crueldade, pelo genocídio, pelos conflitos armados”.
Estudante de Psicologia e seguidora de religião de matriz africana, Castiel conta que estudou muito a saúde mental, o adoecimento, mas encontrou pouco espaço para pensar a cura.
Na Fonte Grande, ela observa a ausência ou escassez de profissionais para atendimento psicológico. Assim veio o questionamento sobre como essas pessoas sobreviveram sem a psicologia, como a saúde mental delas foi produzida.
“Aí que as benzedeiras ajudam a entender que a cura não é propriedade da psicologia, que deve servir para auxiliar e criar autonomia. As benzedeiras, padres ou qualquer pessoas pode produzir cura”. A imagem das benzedeiras e dos “bentos”, ainda são bem presentes na memória de Renato Santos, que ao visitar o museu convidou Castiel a levar o Quarto de Cura para sua casa.
Pensar no trabalho das benzedeiras implica uma reflexão não só sobre ancestralidade, mas também sobre a o poder da indústria farmacêutica, que ao criar seu produtos industriais, apaga as tradições e seus elementos de cura. “Essa indústria ganha muito dinheiro e produz violência. Para um remédio circular a nível global precisa ser muito testado e as populações colocadas para teste são populações negras, indígenas, racializadas de modo subalterno”, critica Castiel
Sua pesquisa está intimamente ligada a esse território e também a um tema fundamental: o racismo. A abordagem, porém, é diferente do mais usual, pois busca ir além da denúncia e apresentar estratégias de cura e de sobrevivência diante deste mal, o que implica uma busca por espaços de liberdade e segurança para o povo negro. “Todas minhas obras são dimensionadas na minha experiência de corpo. Não existe uma distância entre minha obra e eu. Quando falo de racismo, é preciso pensar qual racismo estou dizendo, porque sou uma bicha preta e sofro bichafobia todos os dias. Então tem essa dimensão do gênero e do racismo”.
As visitas ao Quarto de Cura na comunidade da Fonte Grande devem ser agendadas pelo telefone (27) 99739 5420.