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A experiência religiosa, o sagrado e o profano

Quando o assunto é religião, de imediato vem à memória a expressão própria do senso comum: “religião não se discute, cada um tem a sua”. Na verdade, é muito saudável e necessário discutirmos sobre a religião, até mesmo para entender que existem diferentes formas de expressão religiosa, que a religião está presente em todas as culturas desde os primeiros grupos humano,  e que o respeito à fé e às crenças alheias é necessário para um bom convívio social. Afinal, seja pela visão aristotélica do homem como “animal político” ou sartreana de “condenados à liberdade”, vivemos em sociedade com nossas diferentes escolhas, em que até mesmo não escolher já é uma escolha.

Mircea Eliade, estudioso da religião, afirma que o universo religioso sempre envolve a noção de sagrado e de profano e a experiência religiosa acontece através do símbolo, do rito e do mito. Sagrado é todo aquele espaço, objeto, símbolo, que tem um significado especial para uma pessoa ou grupo. Profano é tudo que não é sagrado, toda a vida comum do dia a dia, os fatos e atos da rotina. Contudo, a diferença entre profano e sagrado só acontece na experiência individual e dos grupos, ou seja, aquilo que é profano ou comum para uns, pode ser sagrado para outros, dependendo de sua experiência religiosa. Enquanto para uns a pedra é uma pedra, para outros ela é objeto de culto, assim como um lugar para uns é comum ou profano, para outros é sagrado. 

Como o fenômeno religioso é universal e inerente ao ser humano, negá-lo seria negar a própria essência humana.  Já a experiência religiosa é sempre pessoal e relacional, condicionada ao indivíduo na sua forma de ser e situada em um contexto histórico e cultural, numa vivência relacional com o mundo, com o outro e com o grupo familiar, comunitário, político, etc. Se dá numa dimensão individual, dos projetos de vida, dos desejos e frustrações, amparando e direcionando os homens diante da constatação de sua finitude e da necessidade de crescimento em todas as suas dimensões, desde a biológica, intelectual, material e transcendente, um ser em constante busca. 

Ao caráter fragmentário e finito soma-se a falta de sentido para a vida. Diante disso, A. Camus, filósofo existencialista, através do mito de Sísifo, leciona que a vida do homem é um “absurdo”, sem necessidade, só acidente, e a única coisa que este homem pode fazer é dar sentido aos seus dias, enquanto os tem.

Assim, é na experiência religiosa que questões básicas de nossa limitação natural se contempla, da fragmentação para o estado de plenitude, completude no sagrado, da finitude para o eterno, glória eterna, vida eterna e, da falta de sentido para a direção dos modelos “divinos” e “educativos” de luta, sofrimento, resignação e vitória final. Isto porque essa experiência tende a causar uma cegueira no intelecto, vez que não é um conhecimento intelectual e nem somente uma visão de fé, mas uma vivência relacional e irredutível da realidade humana com o transcendente, que busca a solução de todas as necessidades e problemas: os físicos pelo milagre, os psíquicos por ascensão à glória, amor plenificante e as socioculturais por uma intervenção divina na história.

A experiência religiosa também pode trazer mudanças imprevisíveis para o sujeito em seu meio social, pela mudança de valores. Ao convertido, o sentido do mundo muda completamente e suas relações se confundem, as conversas, o lazer, os amigos, tudo toma um novo sentido e, na maioria das vezes seu julgamento radicaliza por uma razão “maior”. Contudo, já assistimos o império dessas “razões superiores” apresentando resultados como o nazismo e a “Santa Inquisição”, e o que é pior, é possível perceber essa “razão absoluta” renascer hoje na ação de grupos religiosos migrados para a política.   

Enfrentar esse desafio com serenidade e dentro da razão conquistada pela humanidade é nossa tarefa constante, em que o fundamental é a capacidade de lidar com questões em aberto, pois embora toda a certeza que a experiência religiosa possa nos dar da “verdade”, a história humana já demonstrou que os grandes equívocos são comuns e possíveis, e que é melhor aceitar a diferença do que pagar para ver.


Everaldo Barreto é licenciado em Filosofia.

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