Em menos de um ano e meio, foram realizadas ao menos 14 ocupações por movimentos de luta por moradia na cidade de Vitória. A luta tem tido efeito com algumas conquistas sobretudo nos edifícios públicos abandonados, porém muitos edifícios de propriedade privada que estavam abandonados por anos ou décadas tiveram reintegração de posse garantida pelos juízes aos proprietários, que aparentemente em todos os casos os mantém fechados, sem cumprir a função social da propriedade, prevista pela Constituição.
“Há uma atuação muito diferente do Judiciário quando se trata de propriedade pública ou privada. Se o abandono é privado, se percebe que a reintegração acontece de forma imediata e os ocupantes são tratados como invasores, não se questiona que o imóvel estava abandonado”, analisa Renata Helena Paganoto Moura, professora da Faculdade de Direito de Vitória (FDV).
Antiga Casa dos Brinquedos foi desocupa e tapada, mas movimento deixou sua mensagem. Foto: Vitor Taveira
Entre poucos metros de distância na Avenida Jerônimo Monteiro, próximo à Casa Porto, encontram-se, por exemplo, três das antigas ocupações que foram devolvidas mas seguem abandonadas pelos proprietários. A antiga loja Casa dos Brinquedos, o edifício Ada, e o prédio ao seu lado, apelidado pelos ocupantes de “Casa de Vidro”, depois de desocupadas tiveram como primeira iniciativa o fechamento de suas entradas com tijolos e cimento substituindo as portas, num sinal claro de que a preocupação não é com o uso da propriedade como manda a lei, mas com a proteção contra quem quer usá-la.
Quem está descumprindo a lei? Quem ocupa ou quem antes dá o devido cumprimento da função social da propriedade? “O Judiciário faz uma defesa intransigente do direito do proprietário”, considera Renata. O defensor público estadual Vinícius Lamego, responsável pela defesa dos ocupantes em muitos dos casos, tem o mesmo entendimento da professora da FDV.
Segundo ele, quando o imóvel é privado, a reintegração costuma ser muito mais rápida, inclusive com liminares que permitem retirar os ocupantes antes do término do processo. Uma exceção foi o caso do edifício Ada, em que por meio de recursos, apelando ao direito à moradia e à vulnerabilidade das famílias ocupantes, conseguiu-se adiar os prazos de reintegração e as famílias permaneceram por quase um ano no local.
Vinícius lembra que alguns acadêmicos falam de um “ativismo judicial às avessas”. “Existe um ordenamento do direito urbanístico que vai tratar da função da propriedade mas há também um viés civilista e privatista que vai focar só no direito civil e encarar o direito à propriedade como quase absoluto. O Judiciário tende a ignorar o ordenamento público que rege a propriedade e considerar apenas o direito privado, ignorando avanços legislativos”. Ele considera que há uma ideia de que o juiz quando vai tomar uma decisão busca avaliar o caso e achar a solução mais justa. Porém, algumas correntes jurídicas entendem que muitas vezes o juiz já tem uma predisposição a um lado e vai buscar o argumento mais adequado para justificar sua decisão.
Antigas entradas do Edifício Ada (lateral) e da Casa de Vidro (escadas), ambas vazias após reintegração. Foto: Vitor Taveira
No caso de Vitória, especificamente no Centro da cidade, onde ocorreu a grande maioria das ocupações, as principais conquistas se deram até agora em edifícios públicos, em que o Estado se sentiu pressionado a dar alguma destinação para os imóveis abandonados, que geram problemas sociais, ambientais, econômicos e de segurança para seu entorno. Em alguns casos, as decisões judiciais causam maior preocupação social, adiando as reintegrações ou exigindo certas contrapartidas do poder público.
O antigo IAPI, de posse da União, foi a primeira ocupação do ciclo que começa em 2017, e terminou destinada ao programa Minha Casa, Minha Vida Entidades, para atender a famílias de baixa renda. O anúncio foi feito em março de 2018 mas as obras para adequação do edifício ainda estão na iminência de iniciar.
O Hotel Majestic, foi outro que teve uma destinação depois da ocupação e reintegração de posse, por meio de um edital do governo do estado para concessão do espaço para se tornar um centro cultural.
Já o Edifício Santa Cecília teve reintegração de posse aceita com a condição de que seus moradores ocupantes recebessem apoio do poder público ainda que provisório para sua moradia, que resultou no auxílio-moradia por um ano por parte da Prefeitura Municipal de Vitória (PMV). A promessa do governo municipal é que o local também seja destinado à políticas habitacionais para pessoas que estão com déficit de moradia.
Um estudo da Associação de Moradores do Centro de Vitória (Amacentro) apontou mais de 100 imóveis abandonados apenas no bairro. A Campanha Função Social da Propriedade, realizada pela associação e outros parceiros está preparando um novo mapeamento das construções nesta situação.
Além das dificuldades já existentes pelo caráter conservador do Judiciário brasileiro, Renata lembra que o momento político é delicado e alguns projetos de lei no Congresso Nacional buscam criminalizar as ocupações, o que implicaria uma criminalização dos movimentos sociais.