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Pardo Moraes

Nada é mais trivial do que a morte, mas só nos damos conta de sua virulência quando ela passa a foice no nosso quintal. Ou no nosso jardim. E leva alguém próximo, querido ou muito respeitado – justo quando a gente menos espera.

 

Sirva este preâmbulo para registrar meus sentimentos pela perda de Carlos Moraes, gaúcho de Lavras do Sul, que foi padre, preso político nos anos 70, jornalista e escritor de excepcionais qualidades. Ele faleceu no dia 14 de dezembro passado, aos 78 anos. Nos seminários onde estudou, era chamado de Nego Moraes por ter a pele morena dos “pelos duros” (descendentes de portugueses, espanhóis e açorianos) do Pampa gaúcho. Ao ficar grisalho, na maturidade, gostava de usar o adjetivo “pardo” para tratar os contemporâneos e a si mesmo.

 

Como jornalista, trabalhou nas revistas Realidade, Psicologia Atual e Ícaro, publicação de bordo da Varig – todas sediadas em São Paulo, onde ele chegou em 1971, absolvido pela Justiça Militar e libertado dos votos religiosos pelo Vaticano. Na Paulicéia, achou que a grande cidade colocara sobre seus ombros “um capote cinza”, alusão ao anonimato e à solidão que ele tirou de letra exercendo o amor aos próximos. Como muitos sacerdotes, ele gostava de falar por metáforas — não necessariamente bíblicas. Torcedor do Internacional de Porto Alegre, apaixonou-se pela torcida do Corinthians, na qual encontrou uma espécie de manifestação da força divina.

 

Pai de dois filhos (nascidos no Chile) e avô de três netos (idem), Moraes casou-se duas vezes e escreveu outros livros como O LOBISANJO (Vozes, 1970), A VINGANÇA DO TIMÃO (2002) e COMO SER FELIZ SEM DAR CERTO, mas seu livro mais marcante é AGORA DEUS VAI TE PEGAR LÁ FORA (Record, 268 páginas, 2004), no qual conta, de forma muito bem-humorada, como foi sua temporada na cadeia pública de Bagé, onde esteve preso sob a acusação de pregar a subversão política mediante sermões sobre a escassez de justiça social no Brasil e no mundo.

 

Ao contrário do que se possa pensar, AGORA DEUS VAI TE PEGAR LÁ FORA é uma narrativa sem amargura ou ressentimentos sobre um dos “causos” mais bizarros da época da ditadura militar (1964/85). Se fosse menos tímido e tivesse se mantido no seio da Igreja, o padre de Lavras teria talvez galgado os degraus da hierarquia católica. Não nos olvidemos do padre argentino eleito Papa.

 

Como pregador, Moraes foi tão “subversivo” quanto o “cardeal vermelho” D. Helder Camara (vigiado e atacado, nunca foi preso), mas entrou em cana por pregar a igualdade numa cidade com cinco quartéis com o agravante de ser a terra natal do general Medici, que chefiou o governo no período 1969/1973, os “anos de chumbo”.

 

Como escritor, Moraes elevou-se um degrau acima do frei Leonardo Boff, “condenado” pela Igreja Católica a manter-se em “silêncio obsequioso”. Mas Boff se manteve fiel à teologia da libertação, enquanto Moraes preferiu pairar num “corredor” metafórico entre a esquerda e a direita.     

 

Nos seus últimos anos de vida, ele se dedicou a escrever um ensaio sobre a vida de Jesus  –  desde a infância até sua transfiguração em filho de Deus por decisão da Igreja Católica chefiada pelo imperador romano Constantino no século IV; e daí em diante, com Jesus sendo usado por charlatães, picaretas e outros líderes, foi um deus-nos-acuda.

 

Ainda não publicado (foi concluído alguns dias antes da morte do autor), EM BUSCA DO PRIMEIRO JESUS é um livro indignado com a exploração das carências humanas pelo mercantilismo religioso.

 

Cristão até debaixo d’água – apesar de dispensado dos votos religiosos, Moraes manteve seu trabalho como “pastor de almas”, comparecendo à casa de amigos que reclamavam sua presença para diversas funções religiosas  –, ele chicoteia todas as igrejas em seu ensaio.

 

Leia abaixo um trecho extraído do copião enviado por Moraes a amigos em meados de 2018:  

“Por que nos tempos modernos há tanta gente respeitável irritada com as religiões?

Já no século 18, Philippe Pinel (1745-1826), o pai da moderna psiquiatria, parece que não estava brincando quando afirmou que só conhecia duas doenças praticamente incuráveis: o inchaço do ego e o fanatismo religioso.

Chocado talvez com alguns horrores desse fanatismo, o  cientista Steven Weinberg, Prêmio Nobel de Física de 1979, chegou a dizer: “Com ou sem religião teríamos pessoas boas fazendo  o bem e pessoas más fazendo o mal. Mas para que pessoas boas façam coisas más é necessária a religião”.

Quando, em sua famosa música Imagine, John Lennon sonha um novo mundo, faz questão de ressaltar que ele será – sem religião!

Visões assim tão pessimistas suscitam perguntas igualmente incômodas.

Se todas as religiões se mostram tão plenas das melhores intenções, onde e como elas se pervertem?

Quando e por que, na história da humanidade, a pureza e a fé deram de matar mais do que o pecado e a dúvida?

Por que tantas religiões insistem em partir para um controle minucioso e totalitário das consciências em vez de uma serena e misericordiosa  iluminação da vida?

E por que, às vezes, dentre os grandes filhos de uma puta deste mundo, os mais convictos, os mais inatingíveis e, não raro, os mais cruéis são os filhos de uma puta em nome de Deus?

Uma resposta única para tantas e tão exasperadas perguntas não é fácil, mas tudo indica que esse desencanto todo diz respeito principalmente aos arreglos mundanos das instituições religiosas em si, sem levar em conta  todo o bem, todo o amor,  todos os rituais e cantos de  esperança com que  pessoas de fé  iluminam  e sempre iluminaram milhões de vidas   neste mundo. Um pequeno exemplo tirado de um jornal. Numa entrevista, dois brilhantes irmãos intelectuais de esquerda relembram suas vidas, os primeiros duros anos em que, órfãos de pai, viram a mãe aguentar a barra da família toda com extrema valentia. No fim, um deles só lamenta: “É, ela só era meio carola, coitada”. Pergunta: e onde eles acham que ela buscou forças e confiança para aguentar a difícil barra? Em Marx, Engels ou Noam Chomski?

 

Mas é preciso reconhecer: as comunidades dos que crêem nunca haverão de ser  perfeitas e ainda bem que  cristianismo é a religião da extrema exigência e da extrema misericórdia.  Belamente diz o apóstolo Paulo que em vasos de barro carregamos nossos tesouros. Alguém igualmente inspirado escreveu que todos nós, de uma forma ou de outra, seremos sempre respingados pela lama do mundo, o importante é que ela não nos chegue ao coração. Por isso é tão crucial tentar distinguir, sempre,  o tesouro do barro,  que só assim  será possível, para uma Igreja e ou qualquer  cristão, sentir-se tentado e até respingado pelas sordidez  em volta,  mas sem nunca  entregar o coração.  Há muitos séculos o Livro dos Provérbios (4:23) já  sugeria que,  acima de todas as coisas deste mundo, o que mais importa é  preservar o coração, pois é dele que provêm as grandes fontes da vida. Era do que Jesus mais queria saber: o coração. Para o resto, para os sistemas locais de salvação e pureza,  ele não parecia  ligar muito.

 

Quando uma Igreja entrega o coração? Tudo sugere que o que o mais perverte as religiões é a facilidade com que se rendem aos deuses deste mundo, o poder, a ganância, as vaidades e assim  mundanizadas nada de novo podem de trazer – ao mundo. E é pena porque, como acabamos de ver,  elas representam  experiências e valores sagrados que vêm de longe, muito longe e ainda hoje teriam  muito a contribuir com os melhores sonhos da humanidade. Ou especialmente hoje, pois, apesar de toda a amargura com que a modernidade  foi vista pelos papas do século 19, ela só trouxe boas perspectivas não só para a Igreja Católica como  para todas as religiões que não queiram viver apenas da baixa escolaridade ou alto grau de desamparo dos seus fiéis.

 

Só para citar algumas das grandes bênçãos que o mundo moderno trouxe para as Igrejas:

Com o advento da democracia laica, elas ficaram livres da tentação de implantar na marra o Reino de Deus na terra, como tantas vezes  tentaram.

Com o advento do estado de direito, elas foram dispensadas de julgar a tudo e a todos, com grande economia, no caso da Católica, de latim e lenha nos tribunais eclesiásticos.

Com o fortalecimento das ciências, as Igrejas não precisam mais perder tempo explicando biblicamente a origem e funcionamento do Universo.

Com a evolução da medicina e da psiquiatria, elas foram dispensadas de curar ou atribuir ao demônio doenças que hoje contam com nomes e tratamentos bem definidos.

Com o advento do Estado de Bem–Estar Social, das ONGs e das Fundações, elas não são mais a única instituição a se preocupar com a educação e a miséria, embora todas tenham feito e continuem fazendo obras comoventes nessa área.

Livres enfim dos rolos e ambições mundanas, as religiões  podem agora, mais do que nunca cuidar de áreas de transformação do coração e do mundo onde a democracia, a ciência, a economia,  o direito e a medicina não têm obtido grandes resultados.”

 

 

LEMBRETE DE OCASIÃO

“Se falta lã para alguns, não é por culpa das ovelhas”.

Carlos Moraes (1941-2019) 

 

 

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