“A gente tá querendo paz, paz. O mundo precisa de paz, paz”. Foi com essa letra e ao som de funk que o ato da praça do Bairro da Penha arrancou, comandado por jovens moradores do Território do Bem, que reúne diversas comunidades periféricas de Vitória.
Seis dias após o assassinato do jovem Caio Matheus, de 17 anos, cerca de 300 pessoas entre moradores das comunidades, defensores de direitos humanos e apoiadores seguiram numa marcha triste, tensa, mas digna e aguerrida. Não apenas pelo jovem morto, mas pela política de segurança que consideram desastrosa para essas comunidades.
À frente, levada por jovens negros, a faixa que dizia: “Vidas periféricas importam. Parem de nos matar!”. Segundo os moradores da região, Caio Matheus foi alvejado por um tiro de fuzil da Polícia Civil quando fumava com amigos em cima de uma pedra. Tinha em mãos apenas o celular. “Quando descobri que meu filho estava mexendo com coisa errada, tentei tirar ele, lutei muito, mas não consegui. Só que nesse dia em que assassinaram meu filho, ele não estava armado, não estava fazendo nada contra a polícia. Foram atiradores de longa distância, deram para matar”, disse a mãe de Caio Matheus.
Ninguém nega que Caio tivesse envolvimento com o tráfico. Mas todos questionam o motivo de uma morte considerada covarde e desnecessária. A mãe conta que até esperava ver o filho preso, mas não contava com esse triste fim. “Vou lutar por justiça. Coloquei meu filho no mundo e eles tiraram”, declarou a mãe.
A presença de jovens no ato foi marcante. Quem mora na periferia, sabe que mesmo andando na linha o tempo todo, são alvos em potencial da violência que assola o cotidiano.
O ato caminhou até a sede da Polícia Militar. Tensão no ar. Do lado de fora, com expressão sisuda, os PMs fitavam os manifestantes enquanto seguravam seus fuzis. A marcha chegou e parou em frente, com sua faixa. No chão escorreu um líquido vermelho. Era tinta, jogada pelos manifestantes simbolizando o sangue derramado.
Velas foram acesas. Um minuto de silêncio. Os olhares duraram séculos.
Surgiu uma palavra de ordem que parecia sair da alma dos jovens presentes: “Parem de nos matar! Parem de nos matar! Parem de nos matar!”, tal como mantra eles insistem, enquanto com dificuldade alguém tentou retomar a fala no microfone.
E a marcha seguiu, descendo o morro, rumo à sede da Polícia Civil. Os cachorros de rua acompanharam a população tal qual nas manifestações no Chile ou na Grécia. Em meio à Reta da Penha, moradores observam um drone sobre a passeata e, mais preocupante, helicópteros sobrevoando suas comunidades ao fundo. Há operação nos morros. Há também burburinho, preocupação de quem está lá embaixo, enquanto esperavam o carro de som que ficou para trás.
Policiais militares que escoltavam o ato e organizavam o trânsito carregavam fuzis. Não me lembro de ter visto isso acontecer alguma vez em Vitória. O tratamento é sempre diferenciado na periferia ou quando o morro desce e não é Carnaval.
Na verdade já é quase Carnaval e uma jovem questionou ao microfone: “Devíamos estar curtindo os blocos e não aqui lutando contra a morte de jovens negros”. Havia muita revolta e também muita espontaneidade na manifestação. Enquanto alguém fazia um discurso ao microfone, os jovens puxaram um dos mais emblemáticos funks da história: “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci…” O microfone logo acompanhou, e as palmas faziam ritmo de funk. Segundos depois um jovem já o assumiu, fazendo as vezes de MC: “E poder me orgulhar, e ter a consciência que o pobre tem seu lugar…”
Além da família de Caio Matheus, acompanharam o ato parentes de Ramon Lucas, morto em 2017 numa ação policial que também gerou protestos nos bairros e avenidas, como na semana passada. A grande mídia destacou que Vitória viveu horas de terror na última sexta-feira. Mas parece se referir sempre ao terror que ocorreu no asfalto. O terror cotidiano dos morros é secundário.
Em frente à sede Polícia Civil, o clima seguiu tenso. Separados por uma grade de ferro, os manifestantes gritavam, alguns mostrando muita raiva. Do lado de dentro da chefatura policiais riam, o que os moradores da comunidade entendem como deboche. Outra garrafa de tinta vermelha é jogada para dar um macabro colorido ao chão. “É sangue de verdade?”, pergunta uma pequenina que não deve chegar aos 4 anos de idade. “Não é não. É de água”, responde a outra, maiorzinha.
Uma jovem moradora do Bonfim, de 17 anos, diz ao microfone que sonhava em ser policial, agora não quer mais, criou ódio. Está no Ensino Médio e quer cursar Direito. “Quero chegar a ser juíza e ver se consigo ajudar a mudar o quadro do que está acontecendo nas comunidades”, conta.
Ela chegou a estudar com Caio Matheus e lamenta que a mídia apenas o trate como bandido, ignorando que veio para o Espírito Santo com a família em busca de emprego, passando necessidades. A mãe de Caio nasceu na Bahia e veio há 10 anos para Vitória, em busca de trabalho após 25 anos em São Paulo. Caio Matheus era o mais velho de quatro filhos e em breve ganharia mais um irmão, já que sua mãe está grávida outra vez do padastro.
A avó de Caio está indignada. Diz que as crianças não podem mais brincar nos morros. Na falta de infraestrutura de lazer, as brincadeiras são nos becos e vielas, onde está perigoso ficar. Se indigna também com a profusão de fake news. Um vídeo com um jovem morto havia sido espalhado pelas redes, mas não era Caio Matheus nem seus parentes que acudiam.
Caio foi alvejado, mas a polícia não socorreu. Foi levado por uma vizinha ao hospital e faleceu no caminho. A família só foi vê-lo no Instituto Médico Legal, de onde vazou uma foto de seu corpo ferido de morte pelo tiro, algo que a família está buscando as vias legais para processar.
O padrasto conta que o menino morto era alegre e querido. Seu apelido era Três Bocas por uma cicatriz que levava perto da boca. Gostava de dançar, era conhecido por isso entre os amigos.
Parece que olhando do asfalto muitos não conseguem distinguir. Que o menino que serve de “aviãozinho” de atividades ilícitas também brinca e dança, tem família, amigos, não merece morrer. Que enquanto não houver política pública e oportunidades reais, cada pessoa presa ou morta vai ser facilmente substituída no lucrativo mercado das drogas.
Dias depois da morte de Caio Matheus, uma bandeira de preta escrito Luto foi pendurada no farol no alto do morro de São Benedito. Numa mega operação filmada, policiais subiram e retiraram a bandeira. Entenderam como uma afronta. Entenderam? Ou não entenderam nada?
Não terá mais uma família ou comunidade o direito ao luto? Como pode o Estado executar num país onde não existe pena de morte?