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‘A guerra cultural está no cerne do governo Bolsonaro’

“A guerra cultural está no cerne do governo Bolsonaro. Podem sair até Paulo Guedes ou Sergio Moro, mas a guerra cultural não. O tempo todo se mantém uma milícia digital animada para a execução simbólica de adversários”, afirma João Cezar de Castro Rocha, doutor em Letras e professor titular de Literatura Comparada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Ele entende que isso produzirá uma tensão que vai agravar a incapacidade administrativa e pode provocar um grave problema institucional no País.

João Cezar publicou artigos sobre essa leitura para meios de comunicação de Portugal, França e México e vai fazer palestra pela primeira vez sobre o tema neste domingo (1), às 17h, no espaço Thelema, Centro de Vitória. Seu objetivo em breve é recompilar análises e informações e escrever um livro curto sobre essas ideias como convite ao diálogo e reflexão.

Para o professor, não se pode confundir a guerra cultural bolsonarista com as guerras culturais norte-americanas ou europeias. Estas estariam mais ligadas ao confronto de visões de mundo do que a imposições de valores, elaboradas por pensadores cultos. “O bolsonarismo realiza uma transposição inesperada da Doutrina de Segurança Nacional Desenvolvida na Escola Superior de Guerra no Brasil para a área da cultura, com consequências terríveis”, alerta.

Nesta doutrina, o objetivo é a eliminação do inimigo. Não só do inimigo externo, estrangeiro, mas também do chamado inimigo interno, como nos tempos da ditadura se refletia no combate aos guerrilheiros ou supostos subversivos. 

A base ideológica que vai fundamentar a nova guerra cultural, agora encampada pelo bolsonarismo, vai encontrar pilares também no Ovril, uma espécie de tentativa de construção de um “livro negro” sobre a atuação guerrilheira no Brasil feita por militares como forma de resposta ao livro “Brasil Nunca Mais“, que revelou os horrores cometidos pela ditadura entre 1964 e 1985, como perseguições, torturas, sequestros e assassinatos. O Ovril foi elaborado durante o governo de José Sarney, mas circulou por muito tempo por círculos restritos de militares e militantes de extrema-direita, incluindo os gurus ideológicos do bolsonarismo, até o advento da internet. 

O professor entende que nessa narrativa, que está na base das crenças do governo, a história do Brasil republicano é a história de tentativas constantes de impor-se o comunismo ao país. A doutrina de extrema-direita destaca momentos fundamentais como a fundação do Partido Comunista do Brasil em 1922 e depois uma série de tentativas ou supostas tentativas derrubadas militarmente. A Intentona Comunista em 1935, o governo de João Goulart interrompido pelo golpe de 1964, e as guerrilhas armadas atuantes entre 1968 e 1972.

Na leitura do bolsonarismo, durante a ditadura tem início uma estratégia da esquerda de não mais tomar o poder pelas armas e sim pelos livros, por meio da cultura, o que teria aberto caminho para os governos petistas.

“O esforço da guerra cultural bolsonarista nada tem a ver com cultura. Se trata de destruir o inimigo interno, qualquer pessoa que pensa de maneira diferente é simbolicamente vítima dos linchamentos virtuais das milícias digitais, vemos isso quase todos os dias”, diz o acadêmico, lembrando de figuras como a deputada federal Joice Hasselmann, antes ícone do bolsonarismo, que após trocar farpas com os filhos do presidente passou a sofrer inúmeros ataques nas redes. Para manter essa guerra cultural insensata, é necessário alimentar bodes expiatórios, traidores, o tempo todo, para reforçar a ideia da eliminação do outro. 

O professor da Uerj entende que a política persecutória também encontra ressonância com a lógica imprimida por muitos pastores evangélicos neopentecostais. “Se você transfere o inimigo de satanás para o comunismo, pode ter cristãos que defendam assassinatos e mortes. Resta perguntar que cristianismo é esse…”. 

Mas como não pode eliminar fisicamente as pessoas, o governo Bolsonaro está destruindo as instituições, analisa João Cezar. A falta de orçamento para a Educação, a má ou não utilização do orçamento designado são alguns dos fatores apontados. “A guerra cultural, como vem sendo desenvolvida pelo governo, é incompatível com uma administração minimamente eficaz no país”, considera o acadêmico.

Os problemas reais na vida dos brasileiros parecem se acumular enquanto o bolsonarismo se fecha paulatinamente em sua bolha militarista e anti-comunista. “A paralisia administrativa é inevitável. Trata-se de eliminar o outro, não há política”. E se não há política, fica praticamente impossível gerir a complexa máquina pública.

O governo tem sistematicamente negado fatos evidentes, como lembra o professor sobre o acontecimento recentemente em que Bolsonaro disse que o vídeo que compartilhou convidando a manifestações é de 2015, sendo que há cenas de eventos posteriores a essa data. Mais grave ainda foi a demissão do presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inep), que alertou sobre o aumento das queimadas na Amazônia, que o governo atribuiu absurdamente à atuação criminosa de ONGs ecologistas. “Sem base na realidade não tem como fazer políticas públicas”, alerta o professor.

Caso siga colocando essa guerra cultural no centro do governo, o presidente pode ter dificuldade de terminar o mandato. “A ineficiência da máquina pública tem limites. Até hoje o governo não encaminhou uma proposta definitiva para o Fundeb, fundo da educação básica. Isso pode implicar que no próximo ano muitos municípios não tenham aulas nas escolas”, exemplifica.

Mas o que fazer diante desse cenário assustador? Para o professor é necessário parar de responder às caricaturas bolsonaristas e apostar na necessidade de oferecer informação fidedigna. “Diz-se que a imprensa está em crise, mas hoje, dada a quantidade de meios que divulgam informações falsas, o bom jornalismo se torna ainda mais importante para assegurar a qualidade informativa”. Por isso ele aponta a necessidade de se criar observatórios de mídia, para multiplicar as informações corretas para a população.

Outra defesa do professor é pelo Direito à Leitura Literária, considerando que a literatura cria uma relação especial do leitor com o tempo, diferente da temporalidade impulsionada pela chuva de memes e fake news dos tempos atuais. “Esse tipo de relação com o tempo implica outra relação com o mundo”.

O Direito à Literatura Literária será o tema que João Cezar de Castro Rocha poderá aprofundar em uma segunda palestra, proferida como aula inaugural do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) na segunda-feira (2), às 14h15, no Auditório do IC-2, no campus de Goiabeiras.

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