O juiz Osair Victor de Oliveira Júnior, da 6ª Vara Federal do Rio de Janeiro, proferiu sentença, na última sexta-feira (9), suspendendo a exoneração dos onze peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) decretada por Jair Bolsonaro no último dia 11 de junho. A decisão se deu em caráter liminar, no âmbito da ação movida pela Defensoria Pública da União (DPU).
Pelo decreto do presidente da República, os peritos deixaram de ser funcionários públicos para atuar apenas como voluntários, o que acaba por inviabilizar a atuação do Mecanismo, pois, para elaboração dos relatórios sobre violações aos direitos humanos são necessárias visitas aos presídios e todo um trabalho de análise e escrita, o que exige dedicação exclusiva.
“Essa decisão vem na linha da promoção dos direitos humanos e reforça os compromissos internacionais do estado brasileiro”, comentou o defensor público estadual Hugo Fernandes Matias, coordenador do Comitê Estadual para a Prevenção e Erradicação da Tortura no Espírito Santo (Cepet-ES), que realiza o seminário “Entre a tortura e a dignidade no cárcere”, na próxima sexta-feira (16) na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
Um dos assuntos a ser tratado no evento é a necessidade de implementar o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT), criado em 2013. Na ausência do Mecanismo Estadual e seus peritos, a Defensoria tem procurado monitorar as unidades prisionais e socioeducativas e discutido a criação de políticas públicas. Mas as dificuldades são muitas. “A carência de estrutura é muito grande. Não tem estagiário próprio do Cepet-ES [Comitê Estadual para a Prevenção e Erradicação da Tortura no Espírito Santo] e os servidores são divididos com outros conselhos”, relata.
Os dados sobre a prática do crime de tortura no Estado também são incipientes. “A sistematização de informações é rarefeita”, critica.
O que se sabe vem de relatórios de organismos nacionais e internacionais, como o próprio MNPCT e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Esta, em novembro de 2017, visitou a Unidade de Internação Socioeducativa (Unis) de Cariacica.
Em números
Em dezembro de 2018, o Conselho Regional de Psicologia do Espírito Santo (CRP-16) realizou, junto ao Mecanismo Nacional, Ministério Público Estadual (MPES) e Conselho Regional de Serviço Social do Espírito Santo (CRESS-17), uma inspeção no Hospital Adauto Botelho, atualmente chamado de Hospital Estadual de Atenção Clínica (Heac), em Cariacica, na Região Metropolitana da Grande Vitória, no Espírito Santo, flagrando situações de maus tratos e tortura.
Entre as irregularidades encontradas estão as contenções mecânicas irregulares, pacientes amarradas/os aos leitos, sem prescrição médica, sem registro em prontuário e por motivos ilegais, o que pode configurar prática do crime de tortura. Além de portas, grades, trancas e fechaduras em todos os acessos e para deslocamento interno no hospital.
Em novembro do mesmo ano, a Penitenciária de Segurança Média II, que integra o Complexo de Viana, região metropolitana da Grande Vitória, proibiu o registro fotográfico de uma inspeção do MNPCT, que vieram de Brasília ao Estado.
O motivo foi a deflagração de uma greve de fome, um mês antes, em que os detentos denunciavam uma série de maus-tratos e outras formas de tratamento cruel ou degradante.
Em agosto de 2018, uma decisão história do Supremo Tribunal Federal (STF) tornou possível que adolescentes internos da Unis Norte, em Linhares, fossem remanejados para o meio aberto (regime de liberdade assistida ou prestação de serviço à comunidade) até que a superlotação da unidade, que variava entre 270% a 300%, caísse para 119%. A decisão foi cumprida e vem sendo acompanhada por órgãos como a Defensoria Pública do Espírito Santo.
Em janeiro de 2018, a coordenação de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Espírito Santo (DPES), divulgou um relatório – “Relatório sobre Denúncias de Tortura: Análise de 112 Casos Catalogados em 257 dias nas Audiências de Custódia no Espírito Santo” – considerado um marco contra a tortura policial no Estado.
O documento de 27 páginas denuncia que, entre 23 de julho de 2015 e 10 de abril de 2016, foram registrados 112 relatos de tortura na Grande Vitória durante audiências de custódia realizadas pela DPES. Práticas que envolveram os nomes de 189 policiais, sendo 13 deles mencionados pelo menos duas vezes (os nomes não foram divulgados). Quase todos os casos (99,11%) tiveram algum tipo de agressão física. Uma delas, inclusive, culminou em morte.
De acordo com o relatório, as práticas de tortura mencionadas durante as audiências, que, na região metropolitana, acontecem no Centro de Triagem de Viana, englobam: espancamentos, sufocamento com sacola plástica, o popular “telefone”, enforcamento, estrangulamento, choque a laser, uso de spray de pimenta e ferimentos com armas letais (agressões físicas), além de humilhações verbais e de torturas psicológicas, como ameaça de estupro, de morte e de perseguição.
O Mecanismo
Criado em 2003, o Mecanismo é fruto de compromisso do Brasil junto à Organização das Nações Unidas (ONU) para erradicar a tortura no país, sobretudo no sistema prisional, onde ocorrem graves violações sob a tutela do próprio Estado. O MNPCT faz estudos sobre crimes de direitos humanos. Foram seus peritos, por exemplo, que elaboraram relatórios sobre a situação de presídios como o Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), no Amazonas, onde 111 presos foram mortos em massacres de 2017 a 2019.